17.7.23

#2848

Não se escureça o momento

a censura 

não tem pernas para andar.

Injustiças indocumentadas (136)

Perdeu a cabeça.

A quem a encontrar

solicita-se devolução

aos perdidos e achados.

16.7.23

#2847

Precisas de molduras

se queres aprender

a transgressão das fronteiras.

15.7.23

#2846

Pergunta 

ao futuro

e fica 

à espera.

14.7.23

Injustiças indocumentadas (135)

Contra os karmas

murchar, 

murchar.

Injustiças indocumentadas (134)

Fazer a vida negra

é racismo sistémico

ou desumanidade?

#2845

Só deixamos de ser estaleiros

quando nos olham

moribundos.

13.7.23

Plural

Sabes do crepúsculo

o sabre luminar de que é feita 

a bainha do dia

o lampejo de mediania que é suficiente

sabes

do furacão circuncidado

a ametista escondida no bolso

o microscópio por onde arde a angústia

sabes

de que matéria é feita a fala continua

nos antebraços do esqueleto ancestral

se ruínas são elevadas a património armilar?

#2844

Os sonhos são maiores

quando são

sem o sono por perto.

12.7.23

Late harvest

O sol de julho

é como as fornalhas

onde se funde o aço:

se houvesse metáfora do inferno

o Verão que nos tortura

seria a metáfora entre todas. 

 

(Não se confirma

que inferno 

rima com Inverno.)

#2843

Croissant.

Croix sante.

#2842

Como coiotes

de atalaia

à espera 

da próxima presa.

11.7.23

Manual da impossibilidade

As facas em descanso

deixam a pele na letargia

os acasos justapostos pelo ocaso da memória

e nada se credita à devoção

o amor tem os braços de um polvo

para não fugir nos interstícios do sono. 

 

Esta é a matéria válida

o desassombro 

das vozes que murmuram o paladar da alma

desarrumando os conspiradores

os que erguem

insatisfatoriamente

barragens elefantes brancos

e mesmo assim o caudal abraça-se 

ao rio restante. 

Tatuada a astúcia em forma de verbo

o corpo é um santuário à prova de derrotas

sem haver 

quem o consiga desfeitear. 

 

Podem ser medonhas as ondas

temível a lava de todos os vulcões por junto

podem todos os olhares açambarcar a tirania

deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade

podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas

e os pederastas da estultícia desfilar 

na passerelle

ostentando a sua indigência

podem os deuses, 

adormecidos, 

esquecer-se da bondade

que os padrinhos seculares 

descombinam do olvido

derruídos pelo esplendoroso labirinto

onde se terçam as solenes proclamações

o desejo que torna árida a aridez

e devolve ao avesso à fazenda legítima. 

Os cabelos 

cavalgam o dorso das ondas

dir-se-ia

amaciam o horizonte atrás delas deitado

como se o outro lado do mar

estivesse à distância de duas braçadas. 

Que ninguém proteste a impossibilidade. 

 

O seu antídoto

é a vontade arrematada

contra a indulgência 

que se disfarça de medo.

 

#2841

Perdidos e achados:

achados os perdidos

estamos

perdidos nos achados.

#2840

Não dirás

indiscutível

se não quiseres ser 

verdugo da tolerância.

10.7.23

Porto forte

A saliva foge das cicatrizes

o remorso incendeia-se na manhã

os sonhos são o prolongamento do medo

as sílabas obedecem ao quociente

para que nada fique 

sem raiz quadrada.

 

O pelourinho

foi demitido da praça

os inquisidores estão nus e ao deus-dará

e já nem as viúvas lamentam oxalás.

 

Honestos 

os chás orientais com rótulo disfarçado

e desonestos

os vinhos do Porto made in África do Sul.

 

Os reclusos estão viciados na biblioteca

e os catedráticos delinquem às escondidas.

 

E tudo, ou quase,

virado do avesso

como se do avesso

as coisas perdessem o avesso

e se tornassem

coisas.

Injustiças indocumentadas (133)

Por acaso

por ocaso.

#2839

O nome de uma flor

uma qualquer

em vez de heróis forjados

em livros de História.

9.7.23

#2838

Não é em vão

que vão te tornas,

a escada da decadência

é o vau inadiável.

Injustiças indocumentadas (132)

Portugal

(não é)

dos pequeninos.

8.7.23

#2837

Era a oliveira falhada

os ramos ressequidos de fora

mas era uma oliveira.

7.7.23

Cem barreiras

Vou às portas de um país basco

sem medo do ricochete 

das balsas de exilados

com fome de colinas adelgaçadas

pária de um idioma sem paradeiro

das fronteiras que acabam depois

nas manhãs condensadas

que se acastelam

nas costas do mar.

Injustiças indocumentadas (131)

É quanto barata 

– quão de terceira classe –

a carne para canhão?

#2836

Dizer adeus

é encomendar alguém 

a deus?

6.7.23

Confissão

Que sabemos 

da árvore noturna

dos humores que fabricam o orvalho

da matéria-prima de que é feito o sangue

dos inviáveis dias 

que se arrumam no dicionário?

 

Toda a água contida no rio

desfaz-se num mar totalitário

e digo 

que não há maior gesto democrático. 

 

Se estamos à mercê da contingência

se só sabemos que do outro lado da página

medra a luz crepuscular 

de que serve sermos arquitetos do porvir

se depois acabamos engenheiros

a fazer o levantamento dos destroços

e repor o que do passado puder ser salvo?

 

Não aprendemos com o futuro

e ficamos à espera da fala do passado. 

É essa a nossa tragédia comum. 

 

Um lampejo de vozes exaustas

a pele que se gasta com o reviver

e o sangue em banho-maria

sempre à espera 

do próximo apeadeiro.

Injustiças indocumentadas (130)

Uma ação de formação,

ou deformação.

Injustiças indocumentadas (129)

Um pé de vento

quantos dedos tem?

#2835

As ruas arrumavam a solidão

sabiam que havia um dia

consecutivo.

5.7.23

A oficina do exilado

De cada rua demandada

a granada desaprovada

que se amotina na contramão

de um corpo que precisa de corrimão. 

 

Deste espólio que se agiganta

não há vivalma que se espanta

caem as mãos como um machado

no estio nunca atrasado. 

 

À água funda o oráculo resgatado

fundeia o espectro destinado 

o estuário tardio e sem bainhas

só deixa emergir as entrelinhas. 

 

No ocaso a jura pertence

o lugar deixado ao luar incense 

e os poros de matéria combustível

escondem a força invisível. 

 

As estrofes que atapetam o calendário

contrariam o provável mortuário

cortando a eito a temível passadeira

para no miradouro ser devolvida a canseira. 

 

O jacarandá incendeia a alma promissora

e avaliza a luz encantadora

a fala junta-se ao orgulho matinal

num diadema seminal.

#2834

Joga-se o jogo do fingimento

a fugir de todo este

fingir.