18.7.23

Neopantagruélico

Levamos os remos ao rosto furtivo.

As arcadas desacertam a baunilha do dia.

Atemorizados

os abutres fogem da carne vivaz

o sangue retesado engana-os por mal:

estamos a salvo.

 

Fala-se de vingança

de brio e de destemperança

dos bolos artesanais que avivam a lembrança

sem ser sempre esta usança.

 

Os cardeais não são apenas pontos.

Servem-se, sumos,

que matar a sede não se recusa.

 

Já a vagem do dia:

para ser espremida até ao magma

até ficar apenas a casca derruída

o farol que dispensa 

instrumentos de navegação.

 

Os remos não se escondem das mãos.

São o seu arnês

nas águas agitadas que fogem da gastronomia.

 

Lemos os remos

somos agiotas dos temperos

inventamos os compêndios

e agitamos os sentidos.

Injustiças indocumentadas (138)

Matar a sede

não é homicídio.

#2849

Calígula ou barítono,

a hesitação agoniante

antes de responder à pergunta

“o que queres ser em crescido”.

17.7.23

Dólar, dólar

Queria um dólar

o câmbio fortaleza

e nem sabia

que no lugar em que estava

o dólar não tinha serventia

valia tanto

como uma nota de monopólio

ou a palavra jurada dos solenes coveiros 

que condenavam a mátria

à irremediável dissolução do futuro.

Dessas juras solenizadas

não se extraía em memória futura

o saldo em mitomania 

– e ninguém se lamentava

ninguém queria contas prestadas.

Invocassem não ser o caso

sobrava

aos mandantes hasteados com o aval popular

a imperícia;

tal como 

a do dólar naquela mátria

que não sabia da serventia do dólar

a tão glosada nota verde

ali,

estranha como idioma não aprendido.

Injustiças indocumentadas (137)

Um, 

armado até aos dentes

vai perder a peleja

porque o outro,

armado até aos olhos,

lhe passa a perna

(e os dois, talvez,

a caminho da autofagia).

#2848

Não se escureça o momento

a censura 

não tem pernas para andar.

Injustiças indocumentadas (136)

Perdeu a cabeça.

A quem a encontrar

solicita-se devolução

aos perdidos e achados.

16.7.23

#2847

Precisas de molduras

se queres aprender

a transgressão das fronteiras.

15.7.23

#2846

Pergunta 

ao futuro

e fica 

à espera.

14.7.23

Injustiças indocumentadas (135)

Contra os karmas

murchar, 

murchar.

Injustiças indocumentadas (134)

Fazer a vida negra

é racismo sistémico

ou desumanidade?

#2845

Só deixamos de ser estaleiros

quando nos olham

moribundos.

13.7.23

Plural

Sabes do crepúsculo

o sabre luminar de que é feita 

a bainha do dia

o lampejo de mediania que é suficiente

sabes

do furacão circuncidado

a ametista escondida no bolso

o microscópio por onde arde a angústia

sabes

de que matéria é feita a fala continua

nos antebraços do esqueleto ancestral

se ruínas são elevadas a património armilar?

#2844

Os sonhos são maiores

quando são

sem o sono por perto.

12.7.23

Late harvest

O sol de julho

é como as fornalhas

onde se funde o aço:

se houvesse metáfora do inferno

o Verão que nos tortura

seria a metáfora entre todas. 

 

(Não se confirma

que inferno 

rima com Inverno.)

#2843

Croissant.

Croix sante.

#2842

Como coiotes

de atalaia

à espera 

da próxima presa.

11.7.23

Manual da impossibilidade

As facas em descanso

deixam a pele na letargia

os acasos justapostos pelo ocaso da memória

e nada se credita à devoção

o amor tem os braços de um polvo

para não fugir nos interstícios do sono. 

 

Esta é a matéria válida

o desassombro 

das vozes que murmuram o paladar da alma

desarrumando os conspiradores

os que erguem

insatisfatoriamente

barragens elefantes brancos

e mesmo assim o caudal abraça-se 

ao rio restante. 

Tatuada a astúcia em forma de verbo

o corpo é um santuário à prova de derrotas

sem haver 

quem o consiga desfeitear. 

 

Podem ser medonhas as ondas

temível a lava de todos os vulcões por junto

podem todos os olhares açambarcar a tirania

deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade

podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas

e os pederastas da estultícia desfilar 

na passerelle

ostentando a sua indigência

podem os deuses, 

adormecidos, 

esquecer-se da bondade

que os padrinhos seculares 

descombinam do olvido

derruídos pelo esplendoroso labirinto

onde se terçam as solenes proclamações

o desejo que torna árida a aridez

e devolve ao avesso à fazenda legítima. 

Os cabelos 

cavalgam o dorso das ondas

dir-se-ia

amaciam o horizonte atrás delas deitado

como se o outro lado do mar

estivesse à distância de duas braçadas. 

Que ninguém proteste a impossibilidade. 

 

O seu antídoto

é a vontade arrematada

contra a indulgência 

que se disfarça de medo.

 

#2841

Perdidos e achados:

achados os perdidos

estamos

perdidos nos achados.

#2840

Não dirás

indiscutível

se não quiseres ser 

verdugo da tolerância.

10.7.23

Porto forte

A saliva foge das cicatrizes

o remorso incendeia-se na manhã

os sonhos são o prolongamento do medo

as sílabas obedecem ao quociente

para que nada fique 

sem raiz quadrada.

 

O pelourinho

foi demitido da praça

os inquisidores estão nus e ao deus-dará

e já nem as viúvas lamentam oxalás.

 

Honestos 

os chás orientais com rótulo disfarçado

e desonestos

os vinhos do Porto made in África do Sul.

 

Os reclusos estão viciados na biblioteca

e os catedráticos delinquem às escondidas.

 

E tudo, ou quase,

virado do avesso

como se do avesso

as coisas perdessem o avesso

e se tornassem

coisas.

Injustiças indocumentadas (133)

Por acaso

por ocaso.

#2839

O nome de uma flor

uma qualquer

em vez de heróis forjados

em livros de História.

9.7.23

#2838

Não é em vão

que vão te tornas,

a escada da decadência

é o vau inadiável.

Injustiças indocumentadas (132)

Portugal

(não é)

dos pequeninos.

8.7.23

#2837

Era a oliveira falhada

os ramos ressequidos de fora

mas era uma oliveira.

7.7.23

Cem barreiras

Vou às portas de um país basco

sem medo do ricochete 

das balsas de exilados

com fome de colinas adelgaçadas

pária de um idioma sem paradeiro

das fronteiras que acabam depois

nas manhãs condensadas

que se acastelam

nas costas do mar.

Injustiças indocumentadas (131)

É quanto barata 

– quão de terceira classe –

a carne para canhão?

#2836

Dizer adeus

é encomendar alguém 

a deus?

6.7.23

Confissão

Que sabemos 

da árvore noturna

dos humores que fabricam o orvalho

da matéria-prima de que é feito o sangue

dos inviáveis dias 

que se arrumam no dicionário?

 

Toda a água contida no rio

desfaz-se num mar totalitário

e digo 

que não há maior gesto democrático. 

 

Se estamos à mercê da contingência

se só sabemos que do outro lado da página

medra a luz crepuscular 

de que serve sermos arquitetos do porvir

se depois acabamos engenheiros

a fazer o levantamento dos destroços

e repor o que do passado puder ser salvo?

 

Não aprendemos com o futuro

e ficamos à espera da fala do passado. 

É essa a nossa tragédia comum. 

 

Um lampejo de vozes exaustas

a pele que se gasta com o reviver

e o sangue em banho-maria

sempre à espera 

do próximo apeadeiro.