21.7.23

#2852

A manhã desce sobre o sonho

os versos regressam 

à impureza inicial.

20.7.23

Anatomia do silêncio

As vozes urdem o silêncio medonho

espreitam pelos poros das laranjas

como se por eles inventassem escotilhas

e condenassem o mar a ser um cais.

 

O silêncio já não é medonho

ao concorrerem as vozes gongóricas

um certame impraticável 

onde todos falam

uns em cima dos outros

outros por cima de outros mais

num emaranhado de palavras demencial.


O silêncio é medicinal

quando deixa de ser medonho

e os mecenas 

desfraldam os seus melhores tapetes

para receberem a gramática do silêncio.


O silêncio

recebeu o prémio Nobel

da igualdade.  

Injustiças indocumentadas (140)

Vamos 

ao estado da nação 

– ou 

ao estado da noção

ou à noção do Estado.

Injustiças indocumentadas (139)

Passagem de nível.

Passagem

de 

nível.

Com nível.

#2851

Não risco do futuro

o dedo diligente

no estuário

onde o futuro se congemina.

19.7.23

Trovoada seca

Não seja pormenor a denúncia

os despojos não aceitam dádiva

sem o fermento que valida a demanda

e o exílio não conta para o currículo.

Amanhece o diadema

em conspirações avalizadas por druidas

não se consuma a poção macerada

ou os ossos puídos derruem.

O espelho fortuito desaprova a privação;

esperam-nos

comboios de mel

uma contígua alfinetada na angústia

os favos em forma de espada 

e a boca que aguenta a obturação do medo.

#2850

Aliso o estuário

onde se avistam as palavras

o dorso caiado

não adormece no penhor do luar.

18.7.23

Neopantagruélico

Levamos os remos ao rosto furtivo.

As arcadas desacertam a baunilha do dia.

Atemorizados

os abutres fogem da carne vivaz

o sangue retesado engana-os por mal:

estamos a salvo.

 

Fala-se de vingança

de brio e de destemperança

dos bolos artesanais que avivam a lembrança

sem ser sempre esta usança.

 

Os cardeais não são apenas pontos.

Servem-se, sumos,

que matar a sede não se recusa.

 

Já a vagem do dia:

para ser espremida até ao magma

até ficar apenas a casca derruída

o farol que dispensa 

instrumentos de navegação.

 

Os remos não se escondem das mãos.

São o seu arnês

nas águas agitadas que fogem da gastronomia.

 

Lemos os remos

somos agiotas dos temperos

inventamos os compêndios

e agitamos os sentidos.

Injustiças indocumentadas (138)

Matar a sede

não é homicídio.

#2849

Calígula ou barítono,

a hesitação agoniante

antes de responder à pergunta

“o que queres ser em crescido”.

17.7.23

Dólar, dólar

Queria um dólar

o câmbio fortaleza

e nem sabia

que no lugar em que estava

o dólar não tinha serventia

valia tanto

como uma nota de monopólio

ou a palavra jurada dos solenes coveiros 

que condenavam a mátria

à irremediável dissolução do futuro.

Dessas juras solenizadas

não se extraía em memória futura

o saldo em mitomania 

– e ninguém se lamentava

ninguém queria contas prestadas.

Invocassem não ser o caso

sobrava

aos mandantes hasteados com o aval popular

a imperícia;

tal como 

a do dólar naquela mátria

que não sabia da serventia do dólar

a tão glosada nota verde

ali,

estranha como idioma não aprendido.

Injustiças indocumentadas (137)

Um, 

armado até aos dentes

vai perder a peleja

porque o outro,

armado até aos olhos,

lhe passa a perna

(e os dois, talvez,

a caminho da autofagia).

#2848

Não se escureça o momento

a censura 

não tem pernas para andar.

Injustiças indocumentadas (136)

Perdeu a cabeça.

A quem a encontrar

solicita-se devolução

aos perdidos e achados.

16.7.23

#2847

Precisas de molduras

se queres aprender

a transgressão das fronteiras.

15.7.23

#2846

Pergunta 

ao futuro

e fica 

à espera.

14.7.23

Injustiças indocumentadas (135)

Contra os karmas

murchar, 

murchar.

Injustiças indocumentadas (134)

Fazer a vida negra

é racismo sistémico

ou desumanidade?

#2845

Só deixamos de ser estaleiros

quando nos olham

moribundos.

13.7.23

Plural

Sabes do crepúsculo

o sabre luminar de que é feita 

a bainha do dia

o lampejo de mediania que é suficiente

sabes

do furacão circuncidado

a ametista escondida no bolso

o microscópio por onde arde a angústia

sabes

de que matéria é feita a fala continua

nos antebraços do esqueleto ancestral

se ruínas são elevadas a património armilar?

#2844

Os sonhos são maiores

quando são

sem o sono por perto.

12.7.23

Late harvest

O sol de julho

é como as fornalhas

onde se funde o aço:

se houvesse metáfora do inferno

o Verão que nos tortura

seria a metáfora entre todas. 

 

(Não se confirma

que inferno 

rima com Inverno.)

#2843

Croissant.

Croix sante.

#2842

Como coiotes

de atalaia

à espera 

da próxima presa.

11.7.23

Manual da impossibilidade

As facas em descanso

deixam a pele na letargia

os acasos justapostos pelo ocaso da memória

e nada se credita à devoção

o amor tem os braços de um polvo

para não fugir nos interstícios do sono. 

 

Esta é a matéria válida

o desassombro 

das vozes que murmuram o paladar da alma

desarrumando os conspiradores

os que erguem

insatisfatoriamente

barragens elefantes brancos

e mesmo assim o caudal abraça-se 

ao rio restante. 

Tatuada a astúcia em forma de verbo

o corpo é um santuário à prova de derrotas

sem haver 

quem o consiga desfeitear. 

 

Podem ser medonhas as ondas

temível a lava de todos os vulcões por junto

podem todos os olhares açambarcar a tirania

deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade

podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas

e os pederastas da estultícia desfilar 

na passerelle

ostentando a sua indigência

podem os deuses, 

adormecidos, 

esquecer-se da bondade

que os padrinhos seculares 

descombinam do olvido

derruídos pelo esplendoroso labirinto

onde se terçam as solenes proclamações

o desejo que torna árida a aridez

e devolve ao avesso à fazenda legítima. 

Os cabelos 

cavalgam o dorso das ondas

dir-se-ia

amaciam o horizonte atrás delas deitado

como se o outro lado do mar

estivesse à distância de duas braçadas. 

Que ninguém proteste a impossibilidade. 

 

O seu antídoto

é a vontade arrematada

contra a indulgência 

que se disfarça de medo.

 

#2841

Perdidos e achados:

achados os perdidos

estamos

perdidos nos achados.

#2840

Não dirás

indiscutível

se não quiseres ser 

verdugo da tolerância.

10.7.23

Porto forte

A saliva foge das cicatrizes

o remorso incendeia-se na manhã

os sonhos são o prolongamento do medo

as sílabas obedecem ao quociente

para que nada fique 

sem raiz quadrada.

 

O pelourinho

foi demitido da praça

os inquisidores estão nus e ao deus-dará

e já nem as viúvas lamentam oxalás.

 

Honestos 

os chás orientais com rótulo disfarçado

e desonestos

os vinhos do Porto made in África do Sul.

 

Os reclusos estão viciados na biblioteca

e os catedráticos delinquem às escondidas.

 

E tudo, ou quase,

virado do avesso

como se do avesso

as coisas perdessem o avesso

e se tornassem

coisas.

Injustiças indocumentadas (133)

Por acaso

por ocaso.

#2839

O nome de uma flor

uma qualquer

em vez de heróis forjados

em livros de História.