4.8.23

Injustiças indocumentadas (146)

O terço 

que se ora 

– fica 

apenas 

pela terça parte.

#2866

Trespasso a noite boreal,

o ânimo sufragado no miradouro

fatura à pele os juros da avidez.

3.8.23

O homem que apanhava furacões

Era pelas ideias tresmalhadas.

Não esperassem elegância

vinho sumptuoso

mineração da angústia

votos pírricos

ou ideias lajeadas a purpurina

nem um módico de petróleo

 

só para amostra.

 

Era pelos ventos arcanos

aqueles que murmuram o halo vindouro

e muito embora acreditasse em anjos

(anjinhos, para melhor se expressar)

não seria vítima dos algozes avulsos:

ele era só

 

o homem que apanhava furacões.

#2865

O turismo

não tem

férias.

 

[Servidão]

2.8.23

Morgados

O corsário desmatado cobra os juros por junto

e o rosto remoça no orvalho ditoso

que aveluda a pele massacrada. 

Os dedos agarram-se ao vento mendaz

não se importam que seja mendaz

desenham a geometria das curvas

como se de retas fosse a estrada. 

Os impossíveis confundem-se com farsas

o fardamento circunstancial do dia vetusto

como se fossem andrajos condecorados 

e as assíduas personagens puídas 

em pose agonicamente importante

insultando o momento 

com pose de superioridade

(ah! os procuradores da república). 

Levanta-se a ira fermentada na lente baça

o areal enfastiado pelas marés rotineiras

o tempo, que parece imóvel,

uma sucessão de pesadelos hauridos

os roteiros excretados por figuras boçais

que lavram a sala pútrida com falas malsãs

e nós, intencionalmente indiferentes,

medramos por dentro do luar poético

uma biblioteca quimérica que cabe na alma

enquanto esperamos

que o sangue 

destile os morgados que se insinuam

no espelho do futuro.

#2864

O poema a não:

o poema anão.

1.8.23

Desenfado

Em apneia

a ler de olhos fechados

os ramos das árvores

como pauta literal

e as juras,

ah! as juras, 

a caminho de serem desenfado

 

(sendo o desenfado

o desmame 

de um fado).

#2863

Assim

como um solipsista

desabrocha o território murado

regateado na geografia do eu.

31.7.23

Schnaps

O diretor abusava do schnaps

num lugar onde ninguém sabia

o que era o schnaps.

Mas gostavam 

que ele desse dois dedos de schnaps

pois ficava afável

deixava de deitar olhares de intrusão 

nas senhoras

deferia a eito

e contava histórias anedóticas

sobre um seu alter ego

que não assumia ser ele

porque talvez tivesse vergonha

dele próprio

fora das imediações do schnaps.

O diretor

tinha trejeitos de germanofilia

mas nunca tinha ido à Germânia

mas dizia ser perito

nas variedades conhecidas de schnaps.

O diretor

assoava-se convulsivamente

depois de beber schnaps.

Bebia schnaps

primeiro às escondidas

depois escancaradamente

precisava de um aditivo

para ser respeitado pelos que tutelava.

O schnaps ganhou fama

e, sem que se possa dizer em público,

muitos e secretos admiradores.

Injustiças indocumentadas (145)

Fervia

em pouca água

e “quase sempre”

a cem graus centígrados.

#2862

Um caudal sobressaltado

a sela amotinada

o dia 

que não fica por adiar.

30.7.23

#2861

O remorso

dispensa

correção monetária.

29.7.23

#2860

Atiradas as circunstâncias à vertigem

às mãos as flores audíveis.

28.7.23

M&M (no recato da ironia)

A mascote mastigada

amofina o mastro amanteigado

mantém-se miragem

dantes mosto medieval

um amanhecido mural

que amesquinha o marasmo.

A mascote mirífica

mendaz como musas amestradas

monta nas margens imóveis

mercando o mar almiscarado

na métrica malsã dos maestros

os que molham as mãos nos mastins

e medram na macilenta maçã

miando contra as murças 

que amaldiçoam os magos.

Injustiças indocumentadas (144)

A fina força

é uma força 

sem força

de tão delgada

o ser.

Injustiças indocumentadas (143)

Em prol

da prole.

#2859

Detesto detestar.

E isso

é detestável.

27.7.23

Analgésico

Cobrisse todo o ouro

o mar 

sistematicamente

 

coibisse a humanidade

de mutilar a alma

ilegitimamente

 

contasse todas as lágrimas

a pele

desmortificando o dia

militantemente

 

cobrasse o rédito íntegro

sem a avareza dos luditas

a luva sortílega

avisadamente

 

cortasse toda a neve tardia

as alvíssaras

coloquialmente

sentadas sobre o soberano

 

sem trono.

#2858

De acordo com o museu

os anjos precisam de dieta.

[Parece antiparlamentarismo primário, mas só parece]

A assembleia

é para

(nos fazer)

tolos.

É a barca dos fingimentos

e nós os idiotas lerdos

fabricando fingidores.

26.7.23

Talião não era boa pessoa

Dente por dente

vestimos a selva

e no lugar de um vulcão

no lugar de museus

e das grandes obras da humanidade

damos vida ao rosto da morte

à selvajaria de tirar as vidas do palco

só porque a vingança

faz as vezes 

de lei.

Do dente ao dente

passamos do olho ao olho

até sermos todos

obreiros da cegueira

e já nem sabermos

onde estão os olhos outros.

Injustiças indocumentadas (142)

Alguém sabe

a que sabem 

as águas de bacalhau?

#2857

Um murmúrio

deita-se na pele

verte o eco da manhã

e tudo ganha paradeiro. 

25.7.23

Ninguém diz nada

Tingidas as lágrimas

na baía dos acasos,

na vez 

dos destroços de um naufrágio

que adulteram o areal. 

Dos náufragos

não há notícia;

 

se foram doados ao mar

deles 

será a sepultura maior

um epitáfio com o salitre 

como verbo.

Injustiças indocumentadas (141)

O Restelo

não tem culpa

dos velhos que lá moram.

#2856

Dou de caução

o magma que eviscera

o ónus da angústia. 

24.7.23

O aparato da lua não se mede aos luares

Pelo meio do luar

as facas arquivadas no arnês

e só o luar

o bocejo apetecível da lua com boca grande

e uma pequena verruga numa das orelhas

afinal

apenas um piercing que a lua apostou.

A lua nunca diz adeus:

anoitece nas mãos gradas

e promete ser viável

enquanto o mundo se entretém

a dar umas voltas sobre si,

a transpirar saudades da lua.

Há quem diga

que a Terra devia ser o satélite da lua.

#2855

Um fio de medo

sobre o orvalho:

a manhã 

não se intimida.

23.7.23

#2854

O lamento sepulcral 

– ou luto fulcral – 

dádiva 

de uma evasão espectral.

22.7.23

#2853

Sitiados 

pelo sentimento precário

à espera 

da voz centrípeta.