22.9.23

#2908

O rosto visceral fala do medo

como quem o arranca

da faina tumultuosa.

21.9.23

Cem fronteiras

Um natal avulso

contratado à pressa:

os aprendizes

com trauma verificado

protestam compensação.

O que melhor se arranja

é um natal a destempo.

Não há agasalhos

que o outono nem arrimou

e os publicitários ainda estão

a uma enorme légua mental.

Os aprendizes assentam as cicatrizes

prantam por parvulez

candidatos à eterna puerilidade

a serem

gente a menos para corpo a mais.

Uma nova modalidade

de discriminação positiva.

Só falta reverenciar

os didatas da indulgência

e perguntar-lhes

(não vá ser importuno)

por que é devida aos aprendizes

uma compensação

se ainda nem tiveram tempo

para aprender a sofrer o mundo.

Estas alfândegas sem passaporte

ainda vão matar

e antes do tempo

gerações por haver.

#2907

O riso exuberante,

a drenar as entranhas

do mundo mau.

20.9.23

Congruência

Percebes a luz inaugural que desmata o dia. 

O refúgio prometido aloja-se no silêncio

o silêncio por enquanto. 

Ouves 

o bramido das folhas acorrentadas ao vento

o leve ciciar do vento

que desassossega já o porvir próximo. 

Sentes-te como as raízes das árvores 

– não há nada que cause uma razia

e a razão dirá se se compõe em teu tesouro. 

Ao longe

onde o horizonte põe termo ao olhar

levanta-se um leve torpor

como se o mar estivesse vigilante

o viável fundamento que aconselha. 

Os contratempos arrumam-se na fila de espera. 

Sem se darem à visibilidade

pondo os cotovelos em cima da mesa

fruindo a angústia de quem sabe

o que é uma rasteira dada por um contratempo. 

Desvias o olhar

empurras o horizonte 

inventas as tuas próprias impossibilidades. 

Um esboço de luz espreita pelas mãos

deixas o papel deitado no estirador

e adormeces a alma

sufragada pelo sonho que entreteces. 

Às vezes

os domínios que ocupas remoçam

emprestam ao dia um dia inteiro

sem recusar a sublevação dos ossos

apátrida

generoso. 

Se pudesse ser

fazias um poema 

na tela que espera as aguarelas. 

Encurralavas os dentes furtivos da noite

para fingires a solidão

para fugires das multidões. 

Não foges de ti. 

Toma-lo como compensação 

contra os solavancos

o autêntico terramoto

que fragiliza a imensidão do mar 

em que habitas.

Injustiças indocumentadas (183)

Se aos gauleses encomendassem

“rua”

eles aprovariam, 

com prazer,

a interpelação.

#2906

Atira os dados

mas antes

passa os dedos pelo mel

não vá a lotaria fugir.

19.9.23

Arrelias (ou avarias)

É voz corrente

o mundo está arreliado. 

Ele são dignos suseranos

que explicam terramotos

com as alterações do clima

outros que carregam 

o estigma da pederastia

e por aí fora

numa procissão de conspirações

que levitam em forma de teoria

no mais profundo insulto 

à teoria das teorias

uma boémia demencial

em que grotescos clérigos 

escondem a inveja da boémia

e inadvertidos dignitários 

bolçam uma espuma pútrida

que almeja disfarçar 

um não saber. 

Não

o mundo não está arreliado:

se estivesse 

tinha de vomitar para dentro

a arreliação de si mesmo

como se desencavilhasse uma granada

para dentro do próprio bolso. 

E se o palco for virado do avesso

depressa se intuí

que o mundo não pode estar arreliado

ao parir tão risíveis personagens. 

O mundo

nisso é dileto

pródigo nos momentos circenses

e nas distrações com que nos habilita.

#2905

As vozes em vão

caladas pelo silêncio 

que invade a sala vazia.

Injustiças indocumentadas (182)

Espelho mau

espelho mau...

 

[Colóquio do anti-narcisismo]

18.9.23

Boas maneiras

O escansão não foge da ardósia

disseram-lhe que é velho

para a ardósia o querer como fóssil.

Não quer saber.

Do escansão

depende uma turba:

apurado, o seu legítimo palato,

oferece mandamentos

seguidos por uma caterva de aficionados.

Antes de se saber

o escansão foi o primeiro dos influencers.

Injustiças indocumentadas (181)

Ditador.

Dita dor.

Dita a dor.

 

[O da Coreia do Norte, a subir ao comboio, dizendo adeus à Rússia]

#2904

Tinha voz AM

era pena

as pilhas serem

de longa duração.

#2903

Não é 

por indulgência

que se adia 

o passado.

17.9.23

Injustiças indocumentadas (180)

Fotossíntese.

Foto.

Síntese.

Injustiças indocumentadas (179)

Se são outros quinhentos

façam-me o obséquio de revelar

onde estão os primeiros quinhentos.

#2902

Escudeiros adestrados

acordam de véspera:

apanham os despojos

da boémia dos senhores. 

Injustiças indocumentadas (178)

Dedos são dois

de uma conversa que pedia

(“eu sei lá”)

quinhentos, “assim” por defeito.

16.9.23

#2901

Voltamos

ao colo do outono,

que o verão está esgotado.

15.9.23

Injustiças indocumentadas (177)

Nunca edil

foi tão contíguo

evil.

 

[O Dr. Moreira queria armazenar uma estátua de Camilo e Ana Plácido porque esta estava nua]

A corda do basalto

O basalto contorce-se com o suor da noite.

Desprende-se das faúlhas e povoa o vinhedo

e as pessoas

ao longe

confiam no desespero

atestam o desespero:

já pressentem as vozes periciais

já as pressentem

a atirar a semente do remanso póstumo:

o basalto 

será o rosto físico 

de um vulcão cansado

entretanto adormecido

e, arrefecido,

receberá em seus poros a quimera depois:

as sementeiras serão consagradas

num parapeito inóspito do mundo

onde as lágrimas se converteram em suor físico.

Tempos depois

já a lava ficara esquecida entre as folhas frondosas

os pecados ficaram por arrematar

(segundo os pobres anciãos

reféns do paganismo ancestral:

o vulcão tirado ao sono

é a vingança dos deuses enfurecidos):

a ira dos deuses sem nome conhecido

escolheu aquele lugar

a paisagem acrisolada nos novelos de basalto

nos cachos de lava tornada pedra

entre dentes de leão e acácias

entre os bagos das uvas milagrosas

e o vinho repatriado das balsas da lava estática.

Injustiças indocumentadas (176)

Copérnico estava errado

pois tanto se evocam

os quatro cantos do mundo.

#2900

O dia fêmea

come a fome de miséria

deixa na boca

um odor a framboesa e maresia.

14.9.23

Voltagem

Insisto nos frutos maduros

que na boca arrumam lucidez.

Contrasto a fala amansada

com os lampejos de outrora

e contradigo os impulsos febris

a matéria volúvel que depressa

de extinguia:

são válidas as águas de agora

e os barcos navegam sem pesar.

Não falo para deuses inventados

nem para o futuro onde só estão

os anciãos.

Arrumo as perdas

como se não houvesse contabilidade.

No ábaco perene

as palavras são parentes dos algarismos

e não há equação distante

que fuja dos estábulos onde tudo fermenta.

#2899

Os rostos vertiginosos

a vertigem do silêncio

a multidão ensurdecedora.

Injustiças indocumentadas (175)

Se é selva

não tem lei.

13.9.23

Como aprender a ser algoz em cinco lições

Numa correria

como se tudo estivesse

em vias de extinção

e quase só sobrassem

memórias do futuro

não sabemos

se somos nós a passar 

supersonicamente

pelos acontecimentos

ou se é o tempo às talhadas

impronunciável e ascético

que nos condena à matriz da irrelevância. 

 

Confundimos tempo e modo

e por tanto sermos a esquadria de uma forma 

numa anestesia total dos sentidos

esquecemos das desconvenções

a fala arquétipo que condensa a maturidade. 

Esquecemos 

há um ser em nós

que não se resume a um eu

esse eu é uma fortuna sem valor

esquecido por nós 

arrematado num leilão de inconveniências. 

 

Os rios emagrecidos açambarcam o olhar

desfazem-se no mar que os coloniza

como se fosse uma clepsidra que anula a luz. 

 

Sabemos o que não sabemos

tanta a perícia costurada 

na reivindicação do fogo 

que acende o pensamento. 

Não sabemos

do caudal do tempo

esgotado no esquecimento;

não sabemos

da nitidez das silhuetas

que oferecem redenção;

só sabemos

desnatar os ossos

calar a fala funda

obliterar o desassossego 

– para sermos matéria domada

olhos pacientemente vendados

carne puída arrancada aos palcos amotinados

sitiados pelo torpor

ingénuas vítimas do despensar voluntário

nós,

os nossos maiores algozes.

Injustiças indocumentadas (174)

Gostava

mesmo

era de estar

quadradamente enganado.

Injustiças indocumentadas (173)

As ovelhas ranhosas

estão constipadas.

#2898

Estas fraturas

nem com gesso

se curam.

12.9.23

O militante perene

Esconjuros à parte

os confrades ofereciam 

pusilanimidade,

artesãos 

de sonoros amanhãs cantados

insistindo no logro

ou acreditavam sob o jugo da carne própria

na enciclopédia que repetiam 

como se fossem atores em cena

diligentemente repetindo o guião da peça

sem tergiversar

religiosamente.

O seu vaticano

era um museu de saudades

onde o frio do inverno

crestava à boca da melancolia.