3.10.23

Injustiças indocumentadas (197)

Águas furtadas;

e ninguém se queixa.

#2921

Que meças as meças

antes de as pedires.

Injustiças indocumentadas (196)

Cansados

à primeira

vista.

2.10.23

O maestro que erradicou a melancolia

Erradicaste a melancolia

com o alto patrocínio da UNESCO.

Os teus pares

 

(e os ímpares também 

– que não és de discriminar 

por feição aritmética)

 

rasgaram os maiores elogios

e tu ficaste sem saber aonde estacionar;

não é de agora

nunca soubeste abraçar as loas

tu que, amoedado na humildade,

sempre habitaste na penumbra

e nunca aceitaste do desanonimato.

 

Hoje dizem-te

que por “serviços inestimáveis à comunidade”

vão imortalizar o teu nome

na toponímia da cidade.

 

E tu

que outrora erradicaste a melancolia

aos outros prestando o serviço 

agora sujeito a menção honrosa,

vês-te preso 

nos insidiosos barbantes 

de uma odalisca chamada

angústia.

Injustiças indocumentadas (195)

Prescrita uma quinzena 

na mais pútrida das trincheiras

a quem usar a expressão

“teatro de guerra”.

 

[Teatro

não se pode casar com guerra 

como sua palavra sucessiva]

Injustiças indocumentadas (194)

Sem carne

não há canhão.

#2920

É o cobre que cobre 

a pele desprotegida,

o antídoto contra 

a modernidade.

1.10.23

Baunilha

Ontem esteve um vento arrematado

um vento de ir aos ossos

e num instante ao acaso

deixei que o sangue subisse a eito

podia ser que apanhasse as rédeas do vento

mesmo que fosse sinuoso o vento

e deixasse em apneia

as consumições terçadas por vultos 

sem remorsos.

#2919

O contrabando perene

arrevesa a autenticidade.

Ninguém se importa

com a farsa dos sentidos.

#2918

Não é a meia-haste 

o nervo atraiçoado.

30.9.23

#2917

Tira 

a gola da alta da angústia

afinal, 

é Outono com ares 

de Verão.

29.9.23

Disco riscado

Veja-se como é

um disco riscado:

a iteração exaustiva

um gaguejar apoplético

o síndrome

do cão que corre atrás da cauda

a beleza extinta do silêncio ausente

uma teimosia que desassossega

os acrobatas públicos que se repetem

à exaustão

a matança da criatividade

sem pena a preceito.

O disco riscado

que vai e vem sem sair do sítio

miragem de um patíbulo fingido

e gente em forma de farsa

ou farsas ocupando o lugar de gente

e uma loucura incandescente

tomando conta do chão

subindo pelas paredes

ciciando no rosto desprevenido

colonizando as raízes onde se esteia

o pensamento

– o pensamento:

esgotado por dentro

um enorme vazio vacinado e contínuo

contra os outros.

O disco riscado

em surdina

com-pa-ssa-da-men-te

de três em três segundos

esvaindo a loucura.

Injustiças indocumentadas (193)

Motivo

de força menor.

#2916

A meação 

de duas verdades

faz uma mentira 

completa.

28.9.23

#2915

Sete são os cães

um só o osso

já rabos de palha

contam-se aos milhares.

Bolo mármore

Pólvora húmida

a rabear entre as folhas caducas

(sim, é Outono)

farejando o mijo das divindades

como se houvesse carestia de epifanias.

Se outros Moscovos viessem em barda

os passaportes não precisavam de validade.

Cumpriam-se no luar extático

e as pessoas

em imoderado encantamento

seriam lúdicos aprendentes de idiomas

e, peritas em diplomacia sem ardis,

apanhariam o vento marmoreado

na passerelle sobre o rio habitado.

Não se assustem os gentios:

não é um terramoto

é só o barman

a abanar o shaker.

Injustiças indocumentadas (192)

Disseram-lhe

és um diamante em bruto.

Levou a mal

e cobrou em moeda bruta

(ao tresler que era 

um diamante bruto).

Injustiças indocumentadas (191)

É igual ao litro

mas

não é igual ao quilo.

 

[Apologia da diferença]

#2914

Apadrinhas

o miradouro do tempo

para não caíres 

nas suas más graças.

27.9.23

Furacão

O poente

deixa de soar o dia

abriga um porto esconderijo. 

Tudo é falado em surdina

as paredes travam as palavras

que emudecem 

na fronteira da casa. 

É o tempo preferido dos sortilégios

que assentam coreografias

com o estuque dos vultos arrematados 

a argamassa retirada ao anonimato

preparando de véspera 

a urdidura do dia consecutivo. 

Sucessivamente

num ritual que não veste regras

sem autoria determinada,

até ao momento em que escrevo. 

É o dia que vai contar o futuro

ornamentando a gramática com entorses

assim como os dias madrastos

que compõem um palco a que os pés não subiriam

se soubessem do futuro antes do tempo. 

Deposto o medo

o idioma fica como testemunha. 

O úbere da memória não tem paradeiro certo

os procuradores da angústia foram demitidos

e as preces dos desafortunados foram decantadas

tudo se compondo numa mirifica paisagem

onde se combinam urze e mel

chuva teimosa e fertilidade

os rostos que irradiam leveza

e as montanhas escarpadas 

onde a vida se leva difícil. 

Não se exorcize o olhar estremunhado:

o sangue pulsa nas paredes das veias

arrebata as bandeiras que são uma farsa

e o corpo insubmisso atira-se ao precipício

sabe que o pode domar. 

Dizem-se palavras avulsas 

– o auge da autenticidade

como se fosse preciso mostrar credenciais

como os embaixadores da lucidez. 

Mas não é de lucidez que se cuida;

o vento que assobia o desmedo

desafia a angústia que procurava atestado

os ossos são a matéria que não se transaciona

assumem os esteios que uma identidade afigura

antes que deuses assassinos colonizem o bem,

assim disfarçado, 

e todos nós,

distraidamente 

(ou apenas sitiados pela letargia)

sejamos matéria fungível

um longo bocejo refém do acaso.  

Injustiças indocumentadas (190)

Raspadinha

já que não se raspam

para paradeiro certo.

#2913

No abismo do carrossel,

quando a respiração se avessa

e as dioptrias se exacerbam,

celebramos a vertigem.

Injustiças indocumentadas (189)

Dar a palavra

pode não ser 

o vértice da bondade.

26.9.23

Com as letras todas

E como se ameaça dizer

com as letras todas

ninguém contesta a possibilidade

de as letras todas 

ser um manancial de fortuna

a irradiação do alfabeto

a petição da suprema igualdade

a abnegação de um letrado

que não suprime letras à existência

e ensina

a quem interessado estiver

que usar as letras todas

não contém uma ameaça bélica

antes pelo contrário

encerra a riqueza das palavras

que procuram 

pelo alfabeto inteiro.

#2912

Fala

panteão

sobre a têmpera

de um país.

25.9.23

Arnês

Eu 

não acreditava 

em quimeras.

Desde 

que conto 

os teus aniversários,

converti-me.

Diluente

Não se cumpre o ocaso 

a não ser 

que digamos aurora boreal, 

e chamemos

a vontade sem adjetivos, 

a pele recíproca que se funde, 

os lugares avulsos à nossa espera. 

Não se cumpre o acaso, 

porque somos 

os arquitetos do ocaso. 

Injustiças indocumentadas (188)

Palavra

de 

desonra.

#2911

A autoestrada desfila

impulsiva,

como os sonhos.

A direito

Da manhã 

que se levanta nos rostos, 

rejeitamos a bruma 

que adia a impaciência. 

 

Fazemos a manhã 

com o aval

dos nossos dedos. 

 

Já não somos apenas 

silhuetas.

Projetos em estiradores 

que se confundem 

com estilhaços. 

 

Somos suseranos 

do que quisermos ser. 

 

À espera 

de um dia qualquer, 

porque não devemos nada 

ao futuro.