28.2.24

#3077

Enfiou o barrete.

Nunca mais

desaprendeu.

27.2.24

Estado atual: a pregar uma partida a Narciso

Que pareçam balofos

os patriarcas tonitruantes

os que emprestam perfume garrido

à passagem

inebriados

constantemente inebriados

pelo secular espelho que os devolve

em sumptuosas silhuetas

que muito os envaidecem. 

Ainda bem:

enquanto se esgotarem 

na frivolidade das silhuetas 

de que não são mais

não causam grande dano. 

#3076

Onde 

a maldade

se faz miradouro

não é escaninho

é uma gramática assídua.

26.2.24

Eclipse

O eclipse aviva a penumbra

como se as sombras vivessem

nas costas das mãos.

As conchas cadáveres

exibem as praias da sua predileção.

Os mais velhos

sem sono

escondem da noite as rugas

só para a manhã não açambarcar 

os dedos trémulos dos relógios.

Injustiças indocumentadas (301)

Contam-se

as cabeças de gado.

O resto 

(dos corpos)

parece que não importa.

#3075

A régua 

sem o esquadro

também é gente.

25.2.24

Injustiças indocumentadas (300)

Lua 

cheia

de graça.

#3074

O ócio copioso

o óbvio capcioso

o ópio cavernoso.

24.2.24

Injustiças indocumentadas (299)

O que é feito

do tear

do diabo?

#3073

Uns pés que dispensam botas

uns pés a menos

que pesam de mais.

23.2.24

Narizes e matéria nauseabunda

Narizes aduncos

e outros adelgaçados

farejam os interstícios da vulgaridade

assim como porcos usados na apanha de trufas. 

 

A merda gravitacional

não se pondera na hora da soltura. 

 

Diremos:

chiqueiro

 

e não sabemos

mas afocinhamos na balsa fétida

o lugar onde descamisamos linhagens

e ficamos ao nível de uma escatologia sistemática. 

 

Não estranhem

que andem tantas moscas

por aí.

#3072

Antes que seja preciso desconversar

empurram-se os talheres para os dedos

e pergunta-se à lua se vai sair à noite.

22.2.24

Resumo

A boca desenha os frutos

não se importa que sejam 

depois

a medida da podridão:

os frutos também perecem

o que serve de conforto

para o embaraço que é

a finitude aplicada às pessoas. 

 

Os frutos vêm à boca

convocam a madurez 

incógnita para o sangue;

avivamos o magma

com o frescor dos frutos

e não há o que dizer

da boca assim domesticada.

#3071

Eu podia ser

a voz do Inverno

o silêncio dos prantos

o peito sem fronteiras

um poema adiado.

21.2.24

Injustiças indocumentadas (298)

Andar nas bocas do mundo

dá trabalho, e muito,

a muitos dentistas.

#3070

Tramita

o jurisconsulto

no justo travar do locupletamento

repristinando o equânime latejar

convertendo os pirómanos ao sinalagma. 

20.2.24

Partida

O fogo posto

 

tardio

 

convence déspotas

a cuidarem do devir

 

adivinham

que depois do chão

um verosímil precipício

 

inútil o varão que foi 

de torturas muitas. 

 

Fidalgo

 

impenitente

 

desova a possuída tença

da altivez

 

incapaz

de olhar por dentro dos olhos

 

incapaz

 

incapaz. 

 

Já não dorme

(assim sonha)

 

a ceifa sombria em cima dos dias

os dedos trémulos

a voz cegada

só tosse e escarro

 

um espelho

afinal

 

o testamento 

ainda 

em vida. 

 

Os pesadelos:

 

os de outrora

antes do sangue envenenado

pelo medo

eram os sonhos melhores. 

 

Agora

 

a prescrição

prova dos factos

 

a corrosão

 

sobe ao tabuleiro

 

ele

só à espera

de ser peça 

derrubada

 

mera folha 

apanhada

 

no sortilégio

de um vento

 

novo. 

 

O novo


na coroa do velho. 

#3069

Se deus é uma pessoa

tem NIF e CC e passaporte

(e de que país é o passaporte?).

 

[Uma fadista, destas modernas, teve uma epifania a dobrar: deus é uma pessoa]

19.2.24

Dicionário de antónimos

Da matança orgulhosa

não fogem em prantos

os carrascos sem sangue.

Escondem 

as ossadas do saque

e a ferrugem

cobre os rostos dos mercenários

deixa-os com uma pele sem idioma.

Atiram-se à manhã

na extinção do remorso

deles é uma voz sem rugas,

os farsantes que correm 

contra as serenatas sem intenções.

#3068

O presente 

não se conjuga 

no passado.

#3067

Estar na linha de trás 

sossegadamente 

vestido de anónimo.

18.2.24

Corpos entrelaçados

Cobro à noite 

o penhor da carne em combustão. 

Não sei do mais, 

a não ser das tréguas interiores 

que perfumam o tempo. 

Só de ti espero um campo de flores. 

Eu sou o perfume que delas arrancas. 

Só sei da noite a voz fulgurante, 

as tochas ateadas no chão que é pele. 

Até que seja manhã 

e dela a façamos miradouro 

por onde espreitamos 

os corpos nossos entrelaçados.

#3066

As fragas abrem-se ao sol

libertam-se

do seu nevoeiro interior

e falam, 

pródigas como nunca falaram.

17.2.24

#3065

O dedo daninho

dá em dobro

a dádiva do mesquinho.

16.2.24

O sabor do basalto

Os braços contorciam-se

pareciam agitar os fantasmas escondidos

até que fosse vaza a maré

e extintos pudessem ser recolhidos. 

Contorcido já o corpo inteiro

tirando as arestas da bússola

enquanto altiva uma voz advertia

que possivelmente o comboio estava atrasado

um exército de vultos

espreitava pela escotilha 

na diligente atalaia dos distraídos

a carne todavia sem canhão

por omissão das máscaras inválidas. 

Um tremor da mão

aconchegava o suor precipitado

a carne enfim deposta pelo cansaço:

oxalá viessem os procuradores da indigência

ensinar a infecunda aspiração a ser maior

e com eles levassem estas águas puídas

para depois ser noite pura

a porta vedada à insónia

aos lúgubres embaixadores da inocência. 

Pura noite púrpura

a cor odiada

por todavia adiado ódio

se por compensação

a insónia exorcizar.

#3064

[Variação do #3063]

 

Somos nós

que arrastamos decadência.

não é o tempo.

#3063

As cores puídas

à espera da fuligem

um retrato 

da decadência do tempo.

15.2.24

A aguarela sem moldura

Atiras os dados

o calibre das folhas caducas

estilhaçado no frangir das folhas

à mercê da fragilidade cadente

do estanho que tatua a pele.

 

Aos dados dizes segredos

inventas a sobriedade cozinhada

entre páginas consuetudinárias

e palavras coevas que desdizem o futuro.

 

Pela amostra dos sortilégios

não se esperam proezas com arnês:

já se pressente o abismo

antes de chegares ao promontório

e não abrandas o passo.

 

Sabes

que um salto de gigante

não está vedado

e ninguém te ensinou

a proibição dos sonhos.

 

À hora em que escrevo

não sei 

se já te chamam herói

ou 

se te vou visitar ao cemitério.

Injustiças indocumentadas (297)

Nas autoestradas

não há alminhas

é sempre a acelerar

sempre para a frente

é proibido

lembrar os mortos.

#3062

Baixas a arma:

entras no templo

dos heróis.