18.4.24

Radicalismo

As rodas-vivas

só para contrariar a morte

espelhos que avivam as cores

delas fazem disfarces propositados

um galanteio à estética em forma de verso

ou apenas 

um logro

para manter a anestesia geral

em forma de letargia. 

 

O que seria de uma roda-viva

se fosse atirada 

para o poço da morte?

 

Mecenas autorizados

esclarecem

o sentido da vida:

é como uma levedura

empolada na fermentação

frouxa quando esfria

à saída do forno. 

 

Os luditas 

mergulham nas profundezas das farsas

encolhem a noite 

para não serem seres inanimados

e se os idiomas párias estremecem em pesadelos

é porque deixaram aos demónios 

a curadoria dos dias

espaçados entre as cortinas 

que se agitam no caudal do entardecer. 

 

As guitarras arranham um som descolorido

arrematam as sílabas furibundas

e na melhor escotilha

sem esperar pelo rastilho

os homens aturdidos recolhem o arco-íris 

levantam com as mãos a âncora funda

só para deixarem 

um envelope com versos

pois não acreditam 

no fado de garrafas deitadas borda fora. 

 

Ninguém sabe o paradeiro das marés. 

Ninguém se sequestra no convés ermo. 

As muralhas do medo não se escondem

não se agigantam 

no perdido movimento banal

dos amantes do estertor

dos sibilinos generais dos arsenais 

desarmados. 

Injustiças indocumentadas (333)

Troca-tintas,

as cores

estavam do avesso.

#3126

Disse

o não-dito,

no refúgio

da inverdade.

17.4.24

Desacontecimento

Leve o vento

que te leva

entre as levas

que levitam.

 

Leva o vento

antes que em ti leve

o vento te leve

e não te subleves.

 

Lava o vento leve

que atira a lava

a favor da leva 

que se levanta.

#3125

Não imaginas

o que a imaginação

imagina por ti.

16.4.24

Interrupção

O casario sobe a colina

no seu dorso o açaime do silêncio

o refúgio das casas habitadas

todas aquelas vidas sem nome

anónimas

como a parte do rio feita de urina desaguada. 

 

Não são segredos que se desembaraçam

na coutada das mãos arrefecidas

é a maresia arrancada ao mar amaciado

o remorso tingido de medo

na sepultura avivada que entontece

no divã do futuro desalinhado. 

 

Os olhos são como idiomas

juntam-se à pele amanhecida

no cofre das sílabas desenhadas

com o ouro da língua. 

 

Os versos

não são sobre os moradores

ou o lugarejo com as casas como presépios. 

 

Os versos

não são sobre a perfeição confecionada

ao anoitecer

pela coreografia de corpos sem número

ou do desejo que fora feito património. 

 

Os versos

são um feixe de luzes combustíveis

que irradiam no céu avulso

deixando o chão ornamentado

pelas vozes litorais

em cores arrancadas ao siso.

#3124

O chapéu sem sol

adormece 

na litania de um pesadelo.

15.4.24

Assanhado

As rosas sangram o carvão fervido

desencontradas do vulcão amordaçado

procuram nas raízes a água módica. 

 

Sangram a lava messiânica

dançando no viés das nuvens

enquanto há precipício para amar. 

 

Lava o chão puído

a lava debitada da boca irreparável

no freio solto da língua aferroada. 

 

Do chão falam os sepultados

o idioma tartamudeado entre vírgulas

dado ao suor noturno em vez de pesadelo. 

 

Não houve elegia no planalto varrido a vento

os dedos cruzados suplicam cores extasiadas

e dos rostos intactos sobram áleas cumpridas. 

 

O socalco esculpido deita-se no ocaso

as arcadas da noite quase juradas

no mercadejar silencioso dos artífices. 

 

As contas que nunca são feitas

na conspiração de anónimos zeladores

deixam órfãs as dádivas sem manhã procuradora.

Injustiças indocumentadas (332)

As cartas

em cima da mesa

ou em temporada no correio?

#3123

O mar

entre o seu murmúrio

e o segredo condimentado

guardado no peito dormente.

14.4.24

Roll the dice

Joga-se com o caos

à espera 

do idioma da vingança

e ninguém repara

que o caos pode encomendar

a vingança 

como paga da usura. 

#3122

Arrefece

no sangue solene

a bala ao acaso,

o paradeiro incerto.

Injustiças indocumentadas (331)

Beco,

com saída.

 

[Vigília]

13.4.24

#3121

As asas sentadas no devaneio

conspiram com as nuvens:

doces são as horas a seguir

não o mosto arrancado ao torpor.

12.4.24

Baldio

Jorro

num jato

a jactância

e não cubro

nem cobro

o cobre acabrunhado. 

Luto

pelo luto

num lugar

em que medram

mortos em profecia

dos marcos finitos. 

Enceno

sem seno

o sino sentinela

depois do sono

sonso. 

Mondo

o mando métrico

sem mando

o monstro mancebo. 

Calço

o calço que cansa

na calça camba

que coça a cedilha. 

Um penso

no que penso

para não ter de pesar

o peso apenso.

#3120

O carrossel desfalece

no crepúsculo diuturno

arrumando a sombra capataz.

11.4.24

Sem as asas de um anjo

O objeto imóvel

espera

na paciência enferrujada

ou 

imerso em ciência imponderável

contra a matilha enfastiada

atirando as pedras angulares.

 

Sonha 

com a de agência dos visionários

sonha

enquanto, imóvel, 

anoitece no sono.

Injustiças indocumentadas (330)

O tira-teimas,

a tiracolo.

#3119

Corrigiu o futuro

antes de perceber

o que é um paliativo.

10.4.24

Bíblia ambiental

Deste petróleo

não dás a beber

que a inveja farta

não cabe no alforje.

 

Deste o petróleo

na encenação generosa

e não soubeste parir

a fratura do pretérito.

 

Deste petróleo minado

à míngua destarte

que pilhas amontoadas

servem para ser arcaico.

 

Não é desse petróleo

que verdes empenhados

aceitam loas

antes que seja funda a cova

e a terra-mãe se exaura 

num simulacro de solução.

Injustiças indocumentadas (329)

Arroz,

malandro!

#3118

Não se menoscabe

a roda-viva

pois a roda está viva.

9.4.24

Ramal

Casual

o desprendimento de um ramo

uma palavra mal colocada

deixando a frase a azedar

um cão faminto à espera dos despojos

a menina corada

envergonhada pelo senhor 

tão estranhamente amável

o circo desfeiteado pela alarvidade da chuva

o mosto arrumado nos desperdícios

um planisfério em forma de candeeiro

(ou o contrário, se calhar)

a moeda metida entre os dentes salários

a vetusta matrona depois da dieta

o chocalho da vaca no testamento da manhã

o homem possuído pela coragem admirável

os navios numa nesga do rio

o corcel desemparelhado

as fuças de um lobo atrevido

a mata que esconde o calor

três mil seiscentos e quatro euros de multa

o diâmetro enfiado na culatra

as pegas com os dentes podres, a grasnar

o tira-teimas a tiracolo

a desseleção nacional, ah pois é!

a matriz dos selos usados

a catedral ruidosa

a central de cervejas confundida com oásis

o camartelo (apenas)

a senhora com a perna matematicamente cruzada

o arroz salgado

as portas com a serventia do avesso 

a pedra remendada antes que seja lousa

ou a ametista

o património da desumanidade

o acaso do ocaso

o miradouro esquecido na página anterior

o percutir assimétrico do comboio

a vantagem complementar

as gravatas colonizadas pelo bolor

o xadrez puído

o senhor engenheiro estacionado no lugar proibido

a maturidade à procura de paradeiro

o indexante asfixiante do mutante

a razia, a razia principal

o fumo denso do tabaco proscrito

(que a civilização avança

oh, se avança!)

a vingança frita no óleo dos rissóis

os zangões impecavelmente zangados

o florete perdido na paragem do metro

a trovoada que foge do entardecer

a câmara municipal não sabe do autarca

a moda saiu de moda

o esquilo a fazer pose

o ministro da pátria imovelmente esquecida

o desarranjo intestinal

o quadro em branco

as marias exiladas e os manuéis estatuados

a pose – silêncio – de – respeitinho – estadista

o curso de desinformação

mais o preço da moeda má. 

Uma ilustração. 

O eclipse a passar de rasante

e o canto dos pássaros 

a fazer lembrar 

o uivo dos lobos avulsos.

#3117

Os faróis nos máximos

para diluir a noite

na véspera dos olhos rasgados.

8.4.24

Rua direita

Acabou

o século vigente

na boca de demónios sem sangue

disfarçados em métricas errantes

bolos averbados no distante extinto

que se usa na manga arregaçada.

Injustiças indocumentadas (328)

O rei e o roque

o presidente e o rol.

Injustiças indocumentadas (327)

O pobre,

a lamber botas;

quando podia lamber

lascivamente.

#3116

Desminado o crepúsculo

seguia o dia o curso viável

esperando o sonho

incontroverso.

7.4.24

Mausoléu a dias

Mudas as chaves, talvez compense; 

da noite reclamas o apátrido silêncio

cultivas o fingimento para não seres 

inverosímil presa dos altivos marçanos

mobilizados a favor da indigência

e tu, solteiro de causas,

no sopé da perplexidade

desafias os dentes de tigre mordidos na carne

folgas com a obediência dos demais

sem saberes o que fazer

com tanta rebeldia estacionada nas mãos. 

 

Arrumas as sílabas ao canto esquerdo da página

para não seres surpresa para os conhecidos

e absolves as cordilheiras onde empilhada

descansa a volumetria do desvario. 

 

A lama adesiva 

esconde-se nos interstícios da alvorada

como se fosse 

um posfácio do dia vespertino

ou uma ponte fizesse a junção dos dias separados

e tu, provocador sem estrado,

estilhaçasses as bocas plausíveis

dos engenheiros da letargia. 

 

Não te comoves com a bondade apática;

deixas a escotilha aberta

para os enigmáticos pesares que arrebatas

dos lutos limítrofes. 

Convocas o adeus

essa sumptuosa declaração de finitude

convencido da probabilidade da morte.

#3115

Estendeu o dia 

até sair do perímetro dos braços 

só para sentir 

o que é a soberania.