No salto da vida
o rancor do desvivido.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Cortês
o aspirante engoliu o ar com uma garfada
e bolçou o cavalheirismo untuoso
que só os distraídos apreciam.
Convenceu-se
que ia derrubar uma árvore
para transformar em paginas
à espera de palavras
quando lhe disseram
que faltavam os conhecimentos de química
e uma motosserra que não encravasse.
Desiludido
e já não cortês mas antes enfurecido
o estroina
estacionou na esplanada do jardim
e ditou alto o pedido:
rapaz
(dito com o desdém
de quem atinge a cátedra
ao encontrar quem esteja
num lugar inferior
na escala das castas)
traz-me uma caneca de meio litro
e um pratinho de caracóis.
Os dedos encardidos
escarafunchavam as cavidades dos caracóis
e ato contínuo
eram atirados para dentro da boca
onde era possível encontrar
“muitos e escurecidos
dentes cariados à mostra”.
Ocorreu-lhe desopilar
– ainda não se convencera
da impossibilidade de ser o artesão
na improvável demanda de transformar
uma árvore em resma de papel.
Meteu-se ao caminho,
não sem antes ter dobrado
a dose de cerveja,
ajeitando as calças puídas
que escorregavam pelas nádegas abaixo
e já cambaleante
pergunta à estátua do professor de medicina
se lhe vendia uma aspirina.
Indignado com o silêncio da estátua
chamou um táxi
para o levar até à outra margem
onde o esperava
o tubarão na companhia da esposa.
“Ó tubarão”
– enquanto apontava
na direção do bote encalhado no lodo –
“a tua mulher está a precisar de uma dieta”
fugindo aos tropeções
antes que uma gaivota
encomendada pela senhora tubarona
uma dose inteira de diarreia atirasse
em cima de si.
Saltou o tempo
como o atleta salta a corda
e acordou numa cama.
Disse
numa cama,
não era a sua cama.
Dado o conforto da cama
e as formas baças das paredes
e o pensamento que não conseguia ficar em pé
deixou-se ao vagar do sono.
Quando acordasse
seria a altura de ser cortês
a quem lhe deu abrigo.
(Mal sabia que era a rata da biblioteca
– explicação ao leitor
mais dado às coisas lúbricas:
rata da biblioteca
como feminino
dos ratos de biblioteca –
e nem assim se tomou de pânicos
muito embora da rata de biblioteca
muitos dissessem
que tentara vezes à prova de conta
que um homem da cidade
bem que fosse o mais obtuso
lhe tirasse a condição pura
com que viera ao mundo.)
Limpava o nevoeiro aos olhos
os garfos falando, exuberantes,
e tantos outros reféns ainda do sono.
Os ossos falam pela manhã invernal
como violoncelos que arranham a dor.
O miradouro esconde o luar caiado
na penumbra dos versos destroncados.
Pela voz dos lobos furtivos
a rebelião encosta-se aos dedos.
Atravessam a parede bocas famintas
logram o seu mantimento no avesso da pele.
E os desajeitados deuses
insistem na alfabetização das almas puídas.
Sozinho no escafandro
teimo no colóquio do medo trivial.
Sobram as candeias gastas
a tradução da decadência sem costuras.
O grito mancha o estuque neófito
os demónios (já) não aconselham a juventude.
Sob a aparência de corpos
a ostentação dos envaidecidos mastins.
À mão do poema as sílabas inteiras
um dicionário da audácia completa.
Estando o inferno
cheio de intenções benévolas
o inferno merece
(no mínimo)
uma estrela Michelin.
Lembro
os dias de fora
a boca pelo mar dentro
a pele povoada pelo verbo louco
as palavras que subiam pela mão.
Lembro
a chuva forasteira
um olhar a devolver o paradeiro
a carne amanhecida num tremor
um atlas com o teu nome.
Olhou por dentro
a estranha locomotiva
negociava a paragem a tempo
o velho absorto
tirava partido dos versos embainhados
a musculatura dos rostos
adestrava um sorriso
antes
que a maré dissesse que era tarde
que as lâmpadas apagadas
cerceassem a noite
que imperadores errassem
em lugarejos especulados
e mestres de artes variegadas
empunhassem o cetro indiviso
e dissessem
com a respiração mineral
dos contadores de histórias
que tinham metido greve no calendário.
Se soubesse o idioma das marés
dispensava as pontes
os frugais heterónimos do Verão
um lugar no sol da meia-noite
como se as sinfonias alisassem as cicatrizes
e em vez de portas
as arrecadações no postigo espreitassem
o céu preparado para o ocaso.
O que nos vale
é que não há arco-íris à noite.
A chuva não se mistura
com os barcos estacionados
ensinada a cair onde a terra precisa.
Os velhos
já não acordam para as conspirações;
não acordam às conspirações
preferem usar a baioneta servida a palavras
do que esculpir sonhos que precisam de tempo.
Quando se amontoam os barões ajaezados
confundidos com o testamento dos tempos
as palavras engrossam no fino caudal da tarde
fingem que dão a volta ao mundo em meia hora
enganando os guardas-noturnos ensinados
no auditório encenado onde só os profetas
são esquecidos.
Não é deste esgrima que se alimentam
ou a greve de fome atraiçoa os sentidos
por mais que se esforcem por ser vulcões
outra vez vulcões
porventura derrotados pelo raiar de maio.
Entra
pelo nevoeiro inaugural
o barco altivo
pactuando com o silêncio
através das velas levantadas.
Através das saias do tempo
antecipo a luz que trespassa o dia
um rosto coibido no estirador do luar
a neve adiada na Primavera provecta.
As folhas esbracejam ao vento
fogem das palavras entardecidas
como se de um microfone se ungissem
e na pele de um lobo emudecessem
amotinadas em musgos sem preparativos.
A voz muda a conspiração
deixa-a, hibernada, no púlpito dos olhos torpes
levantando um auto contra os histriões
a maçada que se amanhã contra o dia suplício
e no fogo abraçado que caldeia tempestades.
Sou este lugar ávido
um limão separado das ramagens
olhando de atalaia para as rodas fluviais
precocemente endoidecendo os dedos gastos
como se pela praça centrípeta
passasse um circo mudo
um relógio perenemente atrasado
três anciãos derrotados pelo tempo madraço
volteando as cordas lassas que vêm do miradouro:
este
é o altar
sob o lume das candeias
os mares que cabem no colo
uma miragem tirada do caudal amarelecido
o cio confiante.
Dizem
o medo foi extinto
e eu era capaz de hipotecar
um pedaço de alma
era homem
para deitar a coreografia à sorte
só para ver
que número saía em sorte.
Cultiva o heavy metal
já que não podes deitar mão
ao light metal
nem a captura do carbono
participa nas empreitadas
verossímeis.
Os escândalos deviam ser
órfãos
para não ser ofendida
a virgem, dignidade democrática
e todos sabermos
de lição feita
que a igualdade (não) é uma patranha.
Se deres um pé de dança
onde deixas o outro?
Aloja os morcegos mentais
que disparam coreografias coerentes
que disparam fotografias indecentes
quando o entardecer beija a noite.
Por falar em beijos
quantos deste hoje?
(De tantos, ou poucos, dares
fica por conta do crédito
na santa horinha de subires ao céu,
sem ajuda da escada dos bombeiros.)
De cada vez a boca morde o mundo
estorva os logros arrematados no caudal invernal
absolvendo os párias alinhados na parada
em rima com o horizonte desembaraçado
que promete dias maiores do que espelhos.
Sou o mecenas literal que escolhe os baldios
a espada que se recusa a dilacerar
um ónus do avesso enquanto se cumpre a chama
as ondas revoltadas subindo o abismo adunco
um estaleiro inacabado que se não adultera.
Participo no afogueado despique de silêncios
atravessando as cordilheiras sem o espaço do tempo
cobrando a lava que amedronta pesadelos
na estreita enseada que não aceita embaixadores
antes que de mim façam etéreas cinzas
antes que seja um neto despojo
no alfabeto dos medos assinados.