20.6.24

Matilha & mendigos

A boca do cão

fermenta a saliva 

e as palavras embaciam

esbracejadas contra o cais tardio.

 

Mendigos disputam a madrugada

no ainda sono para os demais;

arrastam-se

as ácidas pestanas

disfarçam o dia nascido puído 

– e eles, 

robotizados no sofrimento fatiado, 

arrastam-se pelo dia fora.

 

O ladrar dos cães 

sente-se distante

mas ninguém sabe da matilha.

Houvesse ossos rejeitados por um talho

para a matilha ganhar um fio condutor

e os mendigos escolarizados

teriam então a arte de serem gregários.

 

Os cães 

(dizem)

ficam a léguas da racionalidade

mas são os mendigos que mendigam.

Mordaça

Confissão,

um avesso escondido

quase a perder a linhagem

de segredo. 

 

E:

 

segredo

verbos proscritos

no desembargo 

de uma confissão. 

#3188

Apanhado em falso 

sem o chão sob os pés

à mentira disse presente.

19.6.24

Seara dos ventos

Um adeus salgado

desaprova a melancolia.

A floresta funda

desamanhece os animais

os ramos ainda crepitando de sono.

Um filão esconde-se no silêncio.

Sujas são as águas

povoadas pela fala domesticada

reservadas num enquanto hesitante

como se fossem um robe matinal.

O orvalho escreveu uma estrada

e sei que não desfalecem 

os mapas autistas:

se seguir as mãos superlativas

elas levam-me à harpa

que enfeitiça a História.

Injustiças indocumentadas (379)

Isso passa

com uma passa 

que passa e passa.

#3187

No olho de lince

vertida 

a certidão de lucidez.

18.6.24

Banda larga

Esteiros de águas paradas

a banda larga no sonho das mãos

cavalgam marés iracundas

no salão de festas sem diplomatas.

 

Arroios inflacionados por tempestades

debandam detritos pretéritos

perdidos no tempo gasto

a caminho de um paradeiro ao acaso.

 

Motejos caídos no pano avulso

combinam com a leveza da tarde

deixando senhores de queixo caído

dantes sisudos por ora estrelares.

Injustiças indocumentadas (378)

Tanto ultimam,

tanto ultimam 

que a última

não acontece.

#3186

O silêncio 

foge da fogueira

onde os tolos 

se incensam.

17.6.24

O holofote dos deuses

Atiravam palavras incendiadas

contra a muralha secular

porfiavam no coalhado estio das ideias

sem saberem o que é a diáspora

e a locomotiva que transporta a lua.

E assim ficaram

hibernados

num azulado dia ludita

falando com os azulejos

empurrando as horas contra o entardecer

deixando os bolsos cheios de alma.

Injustiças indocumentadas (377)

A morte da bezerra 

a tal em que muitos pensamos 

sistematicamente

sem que da bezerra saibamos um avo.

#3185

Entre sílabas mortiças

o guerreiro saliva a audácia,

sua a nenhuma glória

na sepultura onde há de morar.

16.6.24

Injustiças indocumentadas (376)

Fala, 

Woke: 

racista, 

o negro humor. 

#3184

Desta matéria fecunda

o caudal espigado

perto do estuário frondoso

traz à tarde o olhar desembaraçado.

15.6.24

#3183

Dançamos na margem

sentados sobre a opulência

de um atlas que desenhamos 

com as mãos.

14.6.24

Injustiças indocumentadas (375)

Um fundo

no fundo

ninguém sabe

o que no fundo é.

Injustiças indocumentadas (374)

Mata-se as saudades 

e ninguém paga o crime 

com prisão.

#3182

Sente-se 

à distância 

o uivo doloroso 

dos soldados.

13.6.24

Arestas demasiado limadas

Da última vez 

que limei arestas

os dedos ficaram puídos.

 

Agora 

deixo a função 

em hasta pública

e as mãos voltaram a ser 

santuário.

 

Agora

as arestas

já não me incomodam

e todas as formas me parecem

a perfeição de sólidos 

sem arestas.

 

Nem que seja

só por fingimento

uma liga metálica a dar consistência

ao desejo de ilusão.

Injustiças indocumentadas (373)

É desta 

que viro à esquerda(?):

 

the left is right

the right is (being) left.

#3181

O que fazer

com estas mãos 

contrabandeadas?

12.6.24

A noite clara

Emancipados da noite 

no solstício do Norte 

concebemos as palavras 

na assembleia 

onde se terça a cortesia. 

A noite extinta 

devolve a saudade do sono 

o sangue convulsivo acelera 

na máscara do Verão abreviado. 

 

Ficou por responder a pergunta 

sobre o efeito curativo 

da noite que não desterra a claridade.

Injustiças indocumentadas (372)

O testa-de-ferro

é o que tem a cabeça dura.

#3180

No úbere das ideias 

vencem as que se perdem 

no atraso do tempo.

11.6.24

Reminiscência

Amanheço no luar estático

apuro o jeito distraído

como se estivéssemos

estremunhados. 

Ajeito o sono antecipado

para o deixar em ebulição contínua:

nunca se sabe

se a lua adormece

e com ela serei refém de Morfeu

 

(de acordo com os sábios

temos um incorrigível défice de sono).

 

As horas mal dormidas

pressentem

as horas mal amparadas:

ele há hemisférios gémeos

não separados à nascença. 

Se for para devanear

prossigo lateral ao rio

um caudal cheio com disparates averbados. 

Uma correria

acompanhar este caudaloso rio

que não se esconde nas fendas subterrâneas

nem conspira com os estetas da moral. 

Se houvesse ao menos

uma leve desconfiança

uma metódica desconfiança

as conspirações deixavam de ser 

o verbo centrípeto

o lúgubre casario entulhado de esqueletos

a farsa sem nome completo

as facas puídas com todo o sangue extinto

a tropa circense que faz peito

um anátema contínuo em forma de fingimento. 

Não seríamos a matéria vã;

não seríamos

matéria,

ponto.

Injustiças indocumentadas (371)

Se noves fora nada:

que serventia tem

a prova dos nove?

#3179

Fui incendiário:

sobre o gelo acasmurrado

verti o calor do meu hálito.

Injustiças indocumentadas (370)

As revoluções

foram anestesiadas.

10.6.24

Longitudinal

Ainda não

afogo os instintos

hesito

o dia errado em flor

e eu

refém do quê

involuntário do saber

meço as peças do arrependimento

só para me arrepender

do arrependimento. 

 

Cultivo o olhar desembaraçado

as póvoas desabitadas

em mapas graníticos 

que rompem as serranias

cavando os caudais

os juros colhidos dias depois

na lhaneza de uma torneira franqueada.

 

Invisto no imprevisto 

abraço o arnês lasso

fautor de conspirações

dissipado no atestado

mentor do impudor:

o invariável coturno soturno

por falta de arrumação

por falta

de desconfiança.

#3178

A cortina desejada

o biombo necessário;

o olhar defendido 

dos males avulsos.