21.8.24

Certificado de aforro

As pregas da velhice 

apoderam-se das páginas lidas

passam a ser o pavimento central

a orquestra onde todos tocam

de olhos fechados. 

 

O tempo é um entretenimento,

a resolução de um dos pares 

entre bolas de fumo que gravitam devagar

e olhares algures errantes na monotonia. 

 

Uns acordes avulsos

um rumorejo que vem do mar

o cabelo acetinado

ou o pouco cabelo

lembram o desinvestimento que é o futuro. 

Ou um tiro

de pólvora seca

que seca as secantes marmoreadas 

nos dentes compostos de raízes válidas. 

 

Não se pressentem 

os vultos prometidos

não vagam as horas fermentadas 

e as costas sentadas do dorso da melancolia

protestam

e protestam:

que adianta fugir do chão 

que se avizinha?

Injustiças indocumentadas (422)

O trabalho entre mãos

disfarça

o trabalho que está entre os pés.

#3254

Uma meia desfeita 

apenas 

para não ser inteiro 

desmancha-prazeres.

20.8.24

Injustiças indocumentadas (421)

Dizer da época estival 

que é a silly season

peca por excesso de autoindulgência, 

como se no resto das temporadas 

ninguém declinasse para o disparate.

Injustiças indocumentadas (420)

Dar duas a abater

e são as sucatas que ficam a lucrar.

#3253

Desinstalamos a angústia, 

penhores de uma espécie de desfuturo. 

19.8.24

#3252

A metáfora 

é um esconderijo. 

18.8.24

Injustiças indocumentadas (419)

É bom 

que se saiba 

que um par de botas 

está para além 

de tudo.

#3251

Um dia mau 

não é 

(necessariamente)

um mau dia. 

#3250

Antes seja o bisturi 

pelo nome da manhã 

a deter o silêncio aprendiz 

à mercê dos dedos filigrana. 

17.8.24

Injustiças indocumentadas (418)

Se passado a pente grosso 

muitas seriam 

as arestas em carne viva.

#3249

Não é desta pálida magreza 

a derrisão bolçada 

em sopapos de pretensiosa superioridade.

16.8.24

#3248

Vais dar troco ao Camões 

e não é em moeda fraca.

 

[Prolegómenos de um poeta]

15.8.24

#3247

Ó país desdentado 

que te despenteias na falta dentes 

e ficas à mercê de vampiros que mentem.

#3246

Atravessas as ruínas 

o coalho pendido nas paredes 

avança contra a imodéstia da desmemória.

14.8.24

#3245

A maldição do retrocesso 

continua a hipotecar 

a História do futuro.

13.8.24

#3244

A humanidade 

precisa de dez atos de maldade 

para compensar um de bondade.

12.8.24

Injustiças indocumentadas (417)

Pobres,

as saudades, 

que são tantos 

os que as querem matar.

#3243

(A) 

guerra 

(serve-se) 

fria.  

11.8.24

Somos a medula dos nossos sonhos

Somos a medula dos nossos sonhos

hino, bandeira, os corpos em segredo

a redenção do medo

o idioma murmurado em sílabas noctívagas

o espelho que contém o abraço do mundo

arrancamos ao suor honesto 

cordas de violino

um vinho tardio

glaciares que avivam o olhar

um beijo demorado

a maré tempestuosa que disfarça a melancolia

os apeadeiros sem porta da espera

o sangue em ebulição

participando na coreografia do desejo

em palcos inacessíveis.

#3242

Um palco à espera da manhã

enquanto a cortina se levanta 

atiçando os olhos íngremes

no miradouro sobre o devir. 

10.8.24

Injustiças indocumentadas (416)

Ninguém

no seu juízo 

precisa de caçar bruxas.

#3241

Bebo 

a alvorada vagarosa 

no festim do dia completo.

9.8.24

Azoto líquido

Sobre o rio

as asas abertas 

compõem o sonho. 

Os braços amarrados

adiam o cais

no provérbio ínfimo

que adormece a penumbra. 

Sente-se o coaxar

sob a atalaia dos nenúfares:

pela tarde

o hálito do diabo

será uma tortura, 

ninguém aguenta. 

Os lugares são metamorfoses

telas abertas aos olhares mudados

pelo sortilégio do tempo dúplice

(tempo-tempo e tempo-clima). 

Amarramos o olhar

a um mastro à prova de divindades

e compomos

com a diligência dos apóstatas

um hino pária que se esconde do escrutínio.

#3240

Não há lugar 

para onde ir, 

sequestrados 

pelo medo do dia.

8.8.24

Piercing

Levo os diamantes escondidos no sangue

levito a lava que se emancipa nos ossos

e na alvorada 

onde o silêncio acompanha a solidão

rejeito a angústia que ferve no céu plúmbeo

desenhando com dedos frágeis

o contrabando que recusa os lugares-comuns

e as portas sumptuosas por onde entram

usos e costumes com boa casa.

#3239

Desinveste 

o pé-de-meia 

até teres 

os dedos todos  

à mostra.

7.8.24

Coabitação

Escondo do sol

os dedos coloridos 

com o sal diurno. 

 

O céu 

é um imenso espelho

inacabado

o cunho aceso na fala mordaz. 

 

A véspera das lágrimas

inaugura a coragem

as cortinas descidas

sobre os dogmas avulsos. 

 

A pele desnorteada

à mercê do suor apertado

devolve o gasto sem paradeiro. 

 

À noite

o cais demandado

desliga os sentidos

anestesia a idade 

e na hibernação sem intérprete

coabita a carne 

sem cansaço. 

#3238

A ponte dá a mão 

à perna que tem medo 

da outra margem.

6.8.24

Manifesto contra os agelastas

Dissessem dos agelastas 

as piores coisas jamais ouvidas:

não eram de confiar

tão catedráticos de suas certezas

tão impantes 

a suarem uma sobranceria blasé

tão azedamente irritantes

tanto

que até apetecia meter férias na indiferença

para os votar aquela parte

que é afim, 

com costela certificada,

da matéria escatológica.