18.10.24

Injustiças indocumentadas (446)

É igual ao litro: 

o litro 

que vale nada.

#3293

No fuso das marés

os dias desfilam

não precisam de parada.

17.10.24

Andamos todos ao mesmo

Afundo a porta

antes que a porta seja o fundo. 

Estilhaços polvilhados sobre tapetes persas

carimbam a impressão digital da civilização

que ainda está à espera 

de aspas a preceito. 

O corrimão gasto

gosta de mãos;

como uma verdade insofismável

odeia filósofos.

No fundo

como os engenheiros detestam demolições

a não ser que sejam os pais 

da obra consequente. 

Andamos todos ao mesmo

pressentiu

como quem tem um oráculo sobre o passado

o videirinho que da aldeia 

aterrou na cidade-véspera de outras metrópoles

e, encantado em saber que há ajuntamentos

com mais de três pessoas,

escalpelizou os malefícios da mortandade. 

Pois é,

andamos todos ao mesmo.

Só que uns

vão a velocidade deferente.

#3292

A cidade estremunhada 

entre a saliva da noite

e o penhor da manhã 

pergunta: e agora? 

16.10.24

Rotina

No sujo do dia desacontecido 

combina-se ultraje com angústia

esgrimidos os mudos contraplacados

que se esmagam na antítese da lua.

Não serão viáveis os luares intencionados;

desde que o mundo foi embrulhado numa farsa

já ninguém se importa com a acrimónia

e as palavras vêm untadas de boçalidade

respirando a favor da desconfiança.

No sujo do dia

aconteceu o futuro que se sabe.

Injustiças indocumentadas (445)

O mal resolvido 

invade as veias 

com um punhado de sangue 

em combustão.

Injustiças indocumentadas (444)

Arrependido,

em tribunal confessou 

que queria ser dentro-da-lei 

quando fosse pequeno.

#3291

A janela lateral 

furtivamente postigo 

à espera da madrugada 

e nós, à espera da espera.

15.10.24

Injustiças indocumentadas (443)

Estou convencido 

o mundo era um lugar melhor 

(lenço a tiracolo 

para enxaguar a lágrima furtiva) 

se em vez de abaixo-assinados 

dependesse

de acima-assinados.

Fora o brigadeiro

Emproados farsantes cheios de comendas

trovam a audácia

fácil o arrazoado

seus nunca os corpos trespassados

em campos de batalha.

 

Haviam de ser condecorados

com a comenda que leva a palma

na desavergonhada ostentação

da carne outra tão agilmente despojada

onde pútridas guerras não se esconjuram. 

 

Não fosse pecúlio bastante

e agora um deles

inquieto na sua caserna submarina

anda a agitar a maré

para medir se ela se compraz

com a indeclinável “vaga de fundo”

que o traga a tiracolo da voz fundacional

para o pináculo das instituições. 

 

Arregimento

deste local onde me situo

e sem a demora do futuro

um acima-assinado:

que o tesouro arrecadado 

sirva para mercar um contratorpedeiro

daqueles de última geração

só para o castrense passear a ufania

pelo convés a sulcar os mares

na sua tão irrecusável pose heroica. 

 

Deste local onde me situo

e sem a demora do futuro

declaro

contribuir com uma centena de euros

para a colheita contratualizar o castrense

para o declínio das coisas da política.

#3290

Acorrentado à teimosia 

dispensava a maresia fecunda do dia. 

14.10.24

Ligação

Levo o leve entardecer

como penhor de uma véspera.

A levedura que lavra o braço

em mosto feita no cais andado

levita no logradouro num sussurro.

É esta a lentidão que serve de úbere

o coalho apanhado pelas mãos

fervendo a lenha em espera

até apetecer o xisto em lanhos

Aa dar cobertura à casa nómada.

#3289

Atiras 

à queima-roupa 

as palavras bala 

e nem assim 

o corpo sangra.

13.10.24

#3288

Engolir o orgulho, 

para cevar de soberba.

12.10.24

#3287

Pregas uma partida 

à partida 

e confessas o adiamento 

(a tua especialidade).

11.10.24

Fato à medida

O espelho derruído consome a luz.

Em vez do vento sublevado 

a boca ateia versos imperadores, 

uma casta à parte 

entre o desrazoável escol.

 

A noite é procuradora do fingimento, 

mas não me importo: 

entre o deve e o haver

mergulho na casta única do meu sabor.

#3286

Às vezes 

a meia-idade 

chega a ser mais 

do que uma idade inteira.

10.10.24

Princípio geral da indiferença

Digo ao poente 

a corda lassa que hasteia o dia. 

Convoco as ameias 

forjadas a ferro e lágrimas. 

Deito-lhes cal colhida na sombra noturna. 

Dizem-me que a tortura maior 

é o terrorismo ao idioma

e eu começo a parábola inteira 

no início do parágrafo

esplêndida

vestida de ouro arrancado às entranhas 

pelas mãos próprias

o punhal demitido no parapeito das mentiras. 

Desarrumo o dia inteiro

o beijo crepuscular anotado na fazenda adiada. 

Embainhado o rosto 

que não dança com o nome

levito as sílabas 

enquanto o tempo não se faz tempo

um copo desfalcado abraçado aos dedos

treme para não serem tremidos os dedos. 

A sociedade comercial dos desafortunados

insiste na desafortunada apanha de dias

está para o sol como as nuvens para o Inverno

e esse é o seu reconhecido inferno. 

Não me digam como é o esquecimento. 

Sou a fábrica 

onde os dias se ocupam do desmedo

um artesão que bebe as vírgulas 

que sobem a palco

e de jato 

atira o material sobrante para a sucata

onde os sentidos retificados são. 

Povoo as cidades acasteladas

os ermos lugares 

onde os animais são suseranos

a venda entrapando o olhar ébrio 

que se dá ao dia para se saciar. 

O palavrear desenfreado desautoriza a letargia

como os gatos famintos 

que seguem os cuidadores

cobrando às bandeiras o futuro que não querem

simples oráculos 

que desaprovam as estrofes mundanas. 

Dizem que é preciso um arquiteto geral

o intendente das boas causas

antes que uma catástrofe inteira 

amotine esta terra. 

Enquanto não aprenderem o significado de não

talvez se salvem no palco 

onde se refina o fingimento. 

Sob as pedras falsamente furtivas

as serpentes dormem. 

Dizemos “xiu”

para ninguém demitir o silêncio. 

Dizemos que muitas foram as horas gastas

só a contar as horas passantes

como se na véspera 

ousassem os cantos errantes

nas vozes alardeadas no viço da manhã. 

Ao menos

respiro

e sei que sou tutor 

da matéria incompleta de que sou feito

e sento-me à sombra da voz quimérica

só para saber o sabor da indiferença.

Injustiças indocumentadas (442)

O diabo é padeiro

ou o padeiro é um diabo?

#3285

Foge foge bandido 

foge 

antes que sejas esquecimento.

9.10.24

A chama dos rumores

Adormeço na modéstia do sono. 

Interiores

as lágrimas adiadas

enfurecem a angústia desaprovada. 

As horas a fio

jogadas ao deus-dará

empenhadas na tortura por dentro da carne

o jugo que amestra as almas pretendentes

que não chegam a ser a fiz das suas juras

e não passam de um rumor. 

O sono desautoriza a ira

finge não serem caçadores os espíritos malsãos

e entrega a chave das resoluções aos sonhos

o ónus as empreitadas a seu cargo. 

Não protestem

contra os espíritos contumazes

ou a angústia não convidada

se o património dos segredos 

está a dois dedos das vossas mãos. 

#3284

Todos os poços têm fundo 

– este é o rebuçado

que anima o dia de hoje.

8.10.24

Pretendência

O gelo fosco entra pela porta

desliga a luz e averba o cansaço

e as pessoas hibernam

tossicam entre a lava do sono

procuram o musgo telúrico

o refúgio vindicado. 

O frio congela as veias e o sangue.

Amanhecem 

os fantasmas esquecidos

deitando à luz hesitante a moldura dos dias

como se não estivessem gastos 

pelo peso do mundo

pelo peso insuportável 

do peso herdado da História. 

O telefone conspirou com o silêncio

num tempo que vai em prolongamento;

as faces indiferentes atapetam as ruas

e não há porta-voz que queira desafiar os vultos;

até ordem em contrário

rejeita-se

a mordaça higiénica.

Injustiças indocumentadas (441)

O estado de sítio 

é o sítio do Estado.

#3283

Aos gatilhos 

rogue-se a praga 

da ferrugem.

7.10.24

#3282

É nesta estrada 

que sabes pleno 

o sangue diuturno.

6.10.24

Injustiças indocumentadas (440)

Ao crédito malparado 

aplica-se

multa de estacionamento.

#3281

Arremato 

ao sonho atrasado 

o palco sem sombra 

e remo sem medo do sono 

pelo caudal feito pelas mãos tutelares.

5.10.24

#3280

A república 

abriu concurso público: 

precisa de ser vitaminada 

com botox e quejandos.

4.10.24

Rede

Sou a tua mão que sente o tremor quando o luar se esconde por nós. O cais que sabe por ser a manhã que enfeita o olhar. Sou essa porta à procura de moldura no vento desafiado pela noite sem mordaça. O destino que responde por outros destinos. Uma vaga lembrança do futuro, escrito na combustão das sílabas, na saliva tatuada na pele. A estrofe, que sussurra a maresia que deixamos sonhar por nós.