Mandou dizer
que não se podia retratar
porque não tinha
a máquina fotográfica à mão.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Mandou dizer
que não se podia retratar
porque não tinha
a máquina fotográfica à mão.
Não
tenho nada a dizer.
Não tenho
nada a dizer.
Não tenho nada
a dizer.
E isto
é um poema?
Deixassem falar o vendaval.
Na sombra do sangue agitado
cabiam cinco noites sem dormir.
Oxalá
os pescadores não tivessem ido ao mar.
Agora
as mulheres
sentem-se viúvas em desassossego
como se contassem a gramática do medo
como prece contínua.
Maldito
era o vendaval.
Não lhe tivessem dado nome
e ela talvez não se amotinasse.
Vejo
na alma do mundo tantas cicatrizes
o espólio que se atira de frente
contra o muro do passado
e em várias toneladas de conhecimento
chega ao estuário exangue,
extinto.
Vejo
as pessoas sem nome
ou com nomes que não sei dizer
reféns de uma penumbra que os atiça
no vulcão perene que os consome
vejo
como falam um idioma que não percebo
e se entregam no luar que é o abismo
disfarçado.
Vejo
no miradouro furtivo
as pernas tremidas à medida que avançam
e dos nomes extintos se aproximam
vejo-os
aluados e impassíveis
como se não pudessem ser mais do que peões
ou carne para canhão
que ainda dá direito a uma comenda póstuma
que os heróis querem-se póstumos.
Vejo
com as dioptrias todas no ângulo vivo da visão
os banquetes que omitem a miséria
o ultraje dos comendadores em pose hierárquica
um desmodelo afinado pelas mãos usurpadoras.
Vejo o que vejo
e desejo
que não visse nada do que vejo.
As armas
são uma falcatrua tão grande
que uma arma branca
nunca é branca.
Púnhamos as vozes a falar
nós, os arquitetos das palavras,
até que as destinássemos a poemas válidos.
A matéria incandescente a desejar a manhã
um punhado de violinos em desordem
até que as estrofes
combinassem o silêncio que era alquimia.
Não soubemos das coisas tardias
era em nós que as levávamos
sem sabermos
só por as querermos combustão
e toda a cumplicidade a nascer de um sonho.
Falávamos pelas vozes sem silêncio
os punhos ascendendo ao miradouro
onde o vento secava as lágrimas.
As lágrimas
tornadas pétalas de ouro
tatuadas na pele sem adiamento.
Boas não são as novas
quando o verbo ser
é usado no pretérito imperfeito
e depois vem o nosso nome.
Falava-se
do porvir
aquele que ainda está por vir
o futuro
se não usarmos erudição gratuita
à falta de se poder dizer
“a deus pertence”
(o registo de interesses
agnóstico
impede o reconhecimento do estatuto
– e, dê por onde der,
deus
se existisse
dificilmente queria saber do futuro
porque
se existisse
por definição de omnipresença
já sabia do futuro
de trás para a frente.)
Daqui para diante
a começar
no minuto que começa
dentro de sessenta segundos
é por conta da incerteza
um buraco negro
onde tudo se pode arrematar
uma coisa e o seu contrário
ou antes pelo contrário
ou então aquele nada
tão grande, tão grande
que cabe na estatura de uma molécula.
Quanto ao demais
ou à conta da contingência da incerteza
é um bla-bla-blá
e o que mais se queira querer.
Se fosse a correr atrás do caudal
não seria o rio maior ou o mar terminal
nas mãos em meu legado.
Os estreitos becos
onde se atiçam palavras fiéis
contra os empossados patriarcas
são os mesmos
onde caem sem batalha
os que se agarram a medalhas colossais
os indigentes disfarçados de eruditos
pândegos todavia não autenticados.
As cordas ensanguentadas
tomam o entardecer por adeus.
O olhar desmaiado
ecoa no horizonte embaciado
como uma espada contraída
com medo do crepúsculo.
A noite
atravessada pela voz diluída
não foge dela mesma:
ainda hão-de saber
os vencidos pela insónia
que há sempre verbos
no dicionário sem paradeiro.