14.2.25

Amor sem máscara

Não fujo do tempo enquanto habito a luz decantada pelo teu olhar. 

Subo pelo corpo que me salva sem precisar de arnês.

Descubro o miradouro onde o vento esconjura os pesadelos.

É à noite, depois da solidão derrotada, o desembaraço das almas deixa-nos a contar histórias.

Essa é a enciclopédia que escondemos do futuro.

As sílabas apenas sussurradas. 

Levitando o poema que escrevemos a quatro mãos.

Injustiças documentadas (507)

Para quê 

pano para mangas 

se está tanto calor.

#4014

A corda embuçada

aperta a jugular do dia 

e as pessoas fingem que é ontem.

13.2.25

Desfalque

Não é dorso que dança

no improvisado verbo que se avessa. 

O denso dardejar dos dedos

ensaia estrofes no estuário ensinado

o vago ondear que vagueia nas onomatopeias. 

Fujo afivelando os fusos como alfinetes párias

o troar que olha de longe os tribunais

no adro ladrilhado pelo silêncio ladino. 

As horas fogem da horda

o militante dever misturado com a cidadania

versos avisados no volante da vontade

ou apenas as penas à revelia do revés. 

Faço campanha sem a taça por companhia

eu

acidental comparsa de vultos sem pressa

aviltando o ocidental compadre das farsas

no povoado onde se aviva o coloquial. 

#4013

Somos ilhas

sem mar imenso

à ilharga.

12.2.25

Metódico

A mão estendida bebe na pele suada o bordado das palavras sem adiamento. Tempera um vulcão promitente, suplica o insaciável. As bocas ateiam a combustão. Entregam os juros por inteiro em sílabas desmedidas. A manhã não passa de uma luz desmaiada. E nós, fugimos da manhã para dar ao gelo o fogo de que somos mecenas.

Injustiças documentadas (506)

Faz como Baco 

e tudo fica baço.

Injustiças documentadas (505)

Não lembra ao diabo, 

lembra o diabo.

#4012

No nosso tempo é que era 

se tivesse havido 

um tempo nosso.

11.2.25

O martelo

Martelo

és pneumático no percutir

e abandonas os choros ao troar insistente.

Martelo

por quem és

esvoaçando mistérios 

alinhavados no movimento basculatório.

E se, martelo,

te vierem desmembrar

na solidão da madrugada altiva

seccionado a bigorna metálica

da haste em madeira puída, 

de ti dirão que foste aliviado de serventia

agora perdido na inútil disfunção de ti mesmo.

Não tivesses sido algoz

agora à mercê da justiça com a assinatura

das vítimas que arrolaste.

#4011

Devemos 

ser devedores

da genealogia do presente.

10.2.25

Teatro

As vozes fogem dos ossos

amedrontam-se 

com os opúsculos que desacertam as certezas

enquanto os demónios

que conspiram nos telhados estroncados

não se sossegam. 

 

A trovoada ingénua 

empresta uns modestos clarões à noite

vocifera o gemido castrado

dos deuses desautorizados 

– os pobres deuses que 

se pudessem

só tinham as saudades como alimento. 

 

Estes são os visíveis rostos

da parte de fora dos corpos

lençóis estendidos escondendo a pele

como se fosse vergonha

o gentil canto que chama os pássaros. 

#4010

Precipício por precipício 

as ondas cavalgadas 

sem saber do medo.

9.2.25

#4009

Por um triz 

o quase se leiloava 

agora.

8.2.25

#4008

A luz áspera

ferve na impaciência 

dos bárbaros.

7.2.25

Fintar o esquecimento

Corria o vento

mais depressa do que a memória

esbracejando com o esquecimento

como idioma franco.

 

Esse é o medo maior

do tempo que se transforma em idade

o esvaziar por dentro

a falta que faz aquele eu que era memória

e agora está esquartejado

num labirinto invisível.

Injustiças documentadas (504)

Tu 

comes e bebes

os comes e bebes.

#4007

Do ramo deposto 

a imprecisa cisão da voz: 

a fala casta 

voluteia na espiral sem freio.

6.2.25

Incerto

O nu motivo acendeu o verbo

agora

preso ao animal povoar

a pele que não escama às súplicas menores

logo nós 

na habilitação do sangue

a desaprender a corrosão

a nossa cidade é a maresia tectónica

o abraço que funde as camadas de magma

até sermos um oráculo incerto.

#4006

Antigamente

não era bom;

antigamente

já não existe.

5.2.25

Desembaixada

Guardo o sangue passado 

no rio que se torna mar 

num futuro que não tarda.

Escolho as sílabas cantantes 

entre o medo de ser 

e a ambição de vultos torrenciais.

A fita métrica

sobe a andares altos 

onde solenes discursam 

os embaixadores da pertença.

 

Guardo o sangue 

passado de desperdício a passaporte.

 

Se ainda for a tempo 

digam que fui discreto 

na convocatória de ovações 

pois, assim como assim, 

elas eram sempre em causa alheia.

 

Nunca soube 

de mim ser

embaixador.

Injustiças documentadas (503)

Tivemos 

uma desinteligência artificial,

comentaram

a propósito de uma desavença.

#4005

Estou 

deste lado

por saber 

do lado avesso.

4.2.25

Sobre beijos (e páginas) arrancados

Não se diga

de um beijo arrancado

que é como o arrancar de uma página. 

Há beijos

que não se dão

a menos que sejam arrancados;

e há páginas

que merecem ser arrancadas

para ganharem adesão.

#4004

Contrariado,

o não desmentido

por dentro de outro não.

3.2.25

Candeeiros

Levas com o arroz

se fores insincero

 

(que gostamos de eufemismos

e insincero é menos denotativo

põe uma máscara 

na mentira sistemática).

 

O joelho fraco vacila

afocinha na valeta marota

dele se riem os bastardos 

que não fogem de manjares 

mas não se importam

não andam à caça de mentores

nem se intimidam com a noite baça

que sobe ao céu desalojando o luar. 

 

Inaugurado o silêncio

falta descobrir o primeiro a violá-lo;

não será crime airoso

nem aqui se convocam 

carnalidades ao desbarato:

às vezes

antes a voz moderada

e deixar por conta do silêncio

a voz significativa. 

 

(Ou será pior

o silêncio como uma lâmina 

que decepa a confiança

pior a ser

do que as palavras 

que mais feridas instruam.)

 

As espadas 

estão despojadas pelo chão

e os tutores da lógica 

destronados

resistem dentro das camisas que os aprisionam. 

Não gostam de ser contrariados

não nasceram para esse desfeitear.

#4003

O rastilho rabeia 

sob os olhos conspícuos 

que se confundem 

com apatia.

2.2.25

#4002

A História

a subir do medo 

sob o véu que omite histórias.

1.2.25

O futuro tem o nome do medo

Corre a voz comum

estes 

são tempos da morte do teatro;

de cada vez que uma voz soluça

outras são caladas

em nome do um “bem maior”

sem haver quem informe 

sobre os limites do “bem maior”.

Costuram-se enredos

adulteram-se os termos 

em que se compõem os dias

jogam-se distopias contra utopias

num novelo de farsas

por onde desfila um exército de mitómanos

todos enferrujados

uns com a ferrugem do passado 

outros com a ferrugem que há-de ser vindoura. 

E o teatro desfalece

o palco consumido por térmitas diligentes

que torcem o braço ao tempo

e cospem nas circunstâncias. 

 

O futuro 

tem o nome do medo.

 

O nome

da obnóxia condição dos audazes 

os que se deixam pensar pela cabeça dos outros

e são atirados para a boca das feras

orgulhosos 

por ostentarem os galões de testas-de-ferro

quando, coitados, são os frágeis ossos 

os óbvios candidatos a serem carcaças 

quando no palco público 

forem reduzidos a escombros. 

 

As guerras

 

(o monopólio dos beócios

a tela onde bolçam os funestos

os que desaprenderam o que custa uma vida)

 

sempre foram este retrato

a síntese apurada da mais pura indignidade

do Homem.

#4001

A gala dissolve-se num instante 

nós 

é que somos da cerimónia os mestres 

em redondas odes aos prazeres.