Sangram as lágrimas
no luar amaldiçoado
encomendado
a pequenos deuses.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O sismo fende as veias
no grito sancionado
que arruma o medo
em plásticas cores mudas.
Tolhe os músculos
convocando o magma fundo
sem deixar sem freio
a boca destemida.
Se admite vozes malsãs
em vez de concórdia banal
procura os sons dissidentes
como mnemónica da noite selada.
Entregue à sonoplastia cirúrgica
em marés iconoclastas
grutas sem claridade entreaberta
e escadas à prova de corrimão.
Os violinos não desdenham
paradas de multidões em silêncio
são eles os feitores dos sons
sobrepostos aos emudecidos corpos.
Nem de todos é ambição
travar conhecimento
com dias melhores,
se conhecimento tal for travado.
Se forem de ouro os dentes que mentem
as mentiras são mais valiosas?
Se for omisso de dentes
o mitómano deixa de o ser?
Se os dentes estremecerem durante a função
a mentira aparece desfocada?
Se a mentira for dita com a boca cheia
os perdigotos são os seus vestígios?
Se a boca for alvo de um soco
a mentira é devolvida à procedência?
Se a boca ficar fechada
a mentira engolida já não é mentira?
As mãos a ferro
tiram do fogo a fala telúrica
como se nelas habitasse
a lava exuberante.
Sem o medo do tempo
as fragas em convulsão estremecem
a pele açambarcada à noite densa
e todas as preces que se estimam
escondem do dia as mentiras puídas.
Falamos como as árvores
a sua pele que nasce com rugas
estaciona nos apeadeiros vagos
e contemplamos os vasos que latejam
nas estrofes que sobem a rua
as estrofes cúmplices da lua.
Somos estes corpos sem amarras
o sono crepuscular que recusa adamastores
tribunal supremo que ilude os usos
e do mar retiramos a gramática
nos despojos de uma maré esfíngica.
Pedem-nos para sermos tutores
de ventos sem paradeiro
e emprestamos os dedos
como astrolábios que os conduzem.
Os dias sem chapéu
são como os dedos com ferida
lambidos por limões exasperados.
Defumados os seus ossos
não fica à mostra sequer a silhueta:
os dias
foram consumidos até ao magna
seu será um futuro arquiva
no hemisfério sem arestas
que paira sobre fantasmas hediondos.
Não são altivas
as noites que se despedem dos déspotas
a bem do sono ensaiam o esconjuro
das palavras amaldiçoadas;
não fujo
nem finjo
as folhas quase caducas
não tarda
atapetam o chão
como se os pés cansados de tanto chão
precisassem de levitar numa cama-sepultura.
Os demónios ficam à porta
a minha polícia avessa aos costumes
deixou-os de fora
num diligente perímetro à prova de intrusos.
A mealha que desadultera a manhã
filigrana de ouro puro
a quadrar com a minha incorrigível impureza.
Se não fossem os paradoxos
este lugar
já era insuportável há muito mais tempo.
Suam
os alarmes
talvez as pessoas se assoem
na cadeira última vaga
como soam
as cicatrizes na pele baça
e depois se sentem
no lenço puído
antes de assentarem
a argamassa residual.
Tirando os olhos embaciados
e o ganir dos cães amedrontados
os verbos amedrontados em estrofes malsãs
os idiomas vicejavam
numa Babel sem cidade.
Os arrumos das almas estavam cheios
muitos queriam esconjurar
peças inteiras herdadas do futuro sem data
propondo estafetas entre os dias consecutivos
sem precisarem de bênçãos literais
ou de envelopes com tiragem restrita.
As sílabas eram seladas com válvulas mecânicas
e toda a pluviosidade recolhida em vasilhas
para não haver
lamúrias baseadas num estio delongado
nem se atearem as celestiais discussões
sobre clima e aquecimento e poluição.
(Só discutem
os que perseveram em estado de negação
e os que lhes dão atenção
querendo negar o seu estado de negação.)
Os aflitos anciãos agarrados aos corrimões
avançam com a sofreguidão do vagar
protestando
contra as intempéries do tempo
e de como ele conspira.
Ninguém lhes dá ouvidos
ao serpentearem com as vozes trémulas
e as palavras trémulas que não chegam a ser
dominadas pelo silêncio avassalador.
Pintam-se rosas selvagens numa parede avulsa.
Vozes sem bússola chamam pelo poema
como quem suplica pelo sono
(vencido pela insónia).
Se os testamentos fossem vitalícios
ninguém movia as pedras do cais.
Ninguém ensaiava o exílio
em litanias sem regra
nos estilhaços de si mesmo.
Mas depois
há uma geografia sem latitude que chama
o distinto lugar que entroniza a manhã
em beijos demorados que costuram as bocas
à medida que os corpos avançam para o eclipse.
Não se atirem moedas aos déspotas
que sejam entoadas as entontecidas estrofes
que desenham a pele suada em câmara lenta
bebendo as alvíssaras
que descobrem a bala perdida
como se ela quisesse ter paradeiro.
Alguém diz:
somos satélites
essa é uma periferia que se cola à pele
a média que nos exaure como ambição centrípeta
no pródigo desengano que traz a indiferença.
Se o mundo fosse medido pela métrica adiada
não havia diagnósticos pueris
nem atrasos sem calibre.
Convidei os demónios para o jantar.
Fizeram de conta
que não era com eles.
Amassado pela impertinente dúvida
tirei o casaco às desculpas
para o perdão não ficar à mercê de preces.
Depois de todos os sumiços
com a versão imperfeita de mim
a guardar-se para momento tardio
juntei as artes todas junto às mãos
e proclamei a anarquia interior:
doravante
seria o pior dos insubmissos
dando cobertura aos desdém dos outros
todavia indiferente
por outra ser a bandeira minha
sem saber nunca para onde viram os feiticeiros
atirados à arena onde se jogam os acasos.
Muito gostava que o sortilégio dos pesares
não pesasse sobre mim
e deixasse por pastorear
(talvez, por exemplo)
os baldios que nunca quiseram dono.
Sabes
o aconchego da noite
o chamamento dos nomes nossos
o paradeiro que dispensa guia
tudo isso
no sussurro de um vulcão
entre palavras e silêncio
na hipérbole dos verbos
a pólvora que dança nos corpos desiguais
tudo isso
no amanhecer que esconjura pesadelos
e desmata os desertos hiantes.
Fui às costas dos estilhaços
sem angariar feridas tatuadas
ou promessas de angústia.
Concebi
sob os auspícios do entardecer
o regaço onde se deita o luar.
E eu
do miradouro à espera de vez
tomei as rédeas das distinções
até o crepúsculo enfeitar o céu
e o dia ficar preso como véspera.
Quisemos
que uníssonas fossem as mãos
e demos à gramática
uma voz.
Hoje sabemos
pela quimera de que somos mecenas
que uns olhos aprendem a ser
pelos olhos outros.
A batata não anda à procura de lógica
tal como devia ser dispensável
corrigir a ortografia àqueles que escrevem
á
entre anda e procura.
Pois são aqueles
(aqui sem acento)
que procuram assento entre os notáveis
e se notabilizam pela manha
(sem til)
que disfarça outras fragilidades.
Se fossem pela silhueta da manhã
saberiam que a lucidez
não se entrega aos pedagogos da abastança
nem se demitem
ao primeiro abanão mefistofélico.
E se abanam
os lúgubres anciãos disfarçados de viço
quando se escondem
na indumentária gongórica
e, apressados e palavrosos,
engolem mais de metade
do que dizem.
Nascido ermo
um aríete por esquina
enquanto os cotovelos
sentados no trono dos astutos
afocinhavam no pão seco
que estava mesmo a pedir
um fungo e não um fungicida
(por artes do cansaço
que o seco pão também se cansa
de esperar).
Assobiando em mofo menor
os boémios apreciavam a estultícia enraizada:
se ao menos não se ensinasse inteligência
ou as escolas teimassem em não ser povoadas
os estetas da indigência deixavam de ser
perseguidos.
São coisas menores
que os maestros da igualdade omitem
deixando pela metade
as suas impecáveis empreitadas.
Se fossem empreiteiros sem testas-de-ferro
se emprestassem as suas delirantes bocas
ao erário público
e depois fossem todos enfatuados
(visivelmente não cabendo dentro de si)
diriam que molharam a sopa dos apóstatas
só para saberem do sabor de saber
dos prados erráticos.
Porque
até os mapas contêm erros
e nem assim há notícia
de mortes por gula de latitudes.