23.5.25

Sapato curto

Tirando os olhos embaciados

e o ganir dos cães amedrontados

os verbos amedrontados em estrofes malsãs

os idiomas vicejavam 

numa Babel sem cidade. 

Os arrumos das almas estavam cheios

muitos queriam esconjurar 

peças inteiras herdadas do futuro sem data

propondo estafetas entre os dias consecutivos

sem precisarem de bênçãos literais

ou de envelopes com tiragem restrita. 

As sílabas eram seladas com válvulas mecânicas

e toda a pluviosidade recolhida em vasilhas 

para não haver 

lamúrias baseadas num estio delongado

nem se atearem as celestiais discussões

sobre clima e aquecimento e poluição. 

 

(Só discutem 

os que perseveram em estado de negação

e os que lhes dão atenção 

querendo negar o seu estado de negação.)

 

Os aflitos anciãos agarrados aos corrimões

avançam com a sofreguidão do vagar

protestando 

contra as intempéries do tempo

e de como ele conspira. 

Ninguém lhes dá ouvidos

ao serpentearem com as vozes trémulas

e as palavras trémulas que não chegam a ser

dominadas pelo silêncio avassalador. 

Pintam-se rosas selvagens numa parede avulsa. 

Vozes sem bússola chamam pelo poema

como quem suplica pelo sono 

(vencido pela insónia). 

 

Se os testamentos fossem vitalícios

ninguém movia as pedras do cais. 

Ninguém ensaiava o exílio

em litanias sem regra

nos estilhaços de si mesmo. 

Mas depois 

há uma geografia sem latitude que chama

o distinto lugar que entroniza a manhã

em beijos demorados que costuram as bocas

à medida que os corpos avançam para o eclipse. 

 

Não se atirem moedas aos déspotas

que sejam entoadas as entontecidas estrofes

que desenham a pele suada em câmara lenta

bebendo as alvíssaras 

que descobrem a bala perdida

como se ela quisesse ter paradeiro. 

 

Alguém diz:

somos satélites

essa é uma periferia que se cola à pele

a média que nos exaure como ambição centrípeta

no pródigo desengano que traz a indiferença. 

Se o mundo fosse medido pela métrica adiada

não havia diagnósticos pueris

nem atrasos sem calibre. 

 

Convidei os demónios para o jantar.

Fizeram de conta

que não era com eles. 

 

Amassado pela impertinente dúvida

tirei o casaco às desculpas

para o perdão não ficar à mercê de preces. 

Depois de todos os sumiços

com a versão imperfeita de mim

a guardar-se para momento tardio

juntei as artes todas junto às mãos

e proclamei a anarquia interior:

 

doravante

seria o pior dos insubmissos

dando cobertura aos desdém dos outros

todavia indiferente 

por outra ser a bandeira minha

sem saber nunca para onde viram os feiticeiros

atirados à arena onde se jogam os acasos. 

 

Muito gostava que o sortilégio dos pesares

não pesasse sobre mim

e deixasse por pastorear

 

(talvez, por exemplo)

 

os baldios que nunca quiseram dono.

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