[Crónicas do vírus, CCXX]
Ao Tratado de Windsor
o vírus votou a indiferença.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não é assombração
a casa proeminente
alçada sobre um vão,
sobranceira ao vale.
Podia,
ao abandono,
ressoar um palco de fantasmas,
lendas que fruem
no céu-da-boca das fantasias.
A casa
está apenas emparedada
de ausente paradeiro.
Exibe a glória de antanho
como os impérios idos,
averbados para memória futura.
O colossal carrossel
desmente a demarcação
por muito
que uns putativos eruditos
escrevam
desmarcação.
É no parapeito da palavra
que sucumbem
ireneus com manias de intelectuais.
[Crónicas do vírus, CCXIV]
Começou
a corrida contra
os números
(pois não falam
o que deviam falar).
Revólveres frios
fogem do fogo castrense
antes que castrados sejam
homéricos parceiros
a carne para canhão judiciosa.
Que estátuas merecem amanhã?
Não se diga
que o ontem foi pródigo
em cascatas de medo
onde a chuva se cristaliza;
não se diga
que as juras tiveram eco
salicórnia a condizer
só para enganar maleitas habituadas;
não se diga
antes do adormecer
que sultões sem espada
perdoaram boémios
e a vastidão do mar se enamorou
do ocre pintado sob a égide do ocaso.
Que estátuas perecem
no punhal dos justiceiros sem nome?
Escutem-se os livros da História
antes que seja narrada uma história
que se agiganta num palco sem veios.
Dentro do espelho
não há raízes
apenas
o olhar límpido
desmatado de falas sombrias.
Nado por dentro do mar
colho o sal no sangue álgido
e nem assim
sou elemento inato;
dantes
o mar era juramento
e um gato enrolado no sono
mestramente súbdito do areal
onde bisturis metódicos se afunilam
sabe-se lá se à procura de tesouros
ou do ouro escondido nas próprias mãos.
Tiro o estibordo com a lente baça
e as asas desembaraçam-se do vento
em boa hora,
em boa hora.
Não fossem os heróis todos mortos
e a voz perdia o gongórico véu
para se somar à pastoril montanha
que desaparece na litania do horizonte.
Mas não sou viável cruzador
neste mar temperamental
não sou marinheiro
por medo tido por penhor
das náuseas matinais.
É em terra
que sinto o cofre
e da tua boca bebo o manancial
a língua que se enrola na minha
e os versos que sobem à crueza da pele
em remoinhos desalinhados.
Espero pela razia dos miseráveis
e não os tenho por materiais convenções:
os miseráveis
que se convocam na jactância
no solipsismo desarranjado
na vítrea fonte onde a água se empareda.
Até posso ser errante
que da minha transumância sou garante
em nome de um nome só
o nome que adoço na boca
quando
a boca tua na minha tem fusão.
Para depois
antes de todas as vésperas
antes
que as janelas sejam desfronteiras
e todo o vento carregado de adjetivos
esbarre nas nossas couraças
seja eu promontório.
O alto:
para que a maré
pare a tempestade.
[Crónicas do vírus, CCXI]
Há os velhos do restelo
(vem aí a segunda vaga)
e os novos do restelo
(está tudo de feição).
Reino mau
história sem meio
terra de um rio também mau
e de profetas esquecidos no céu da boca.
Reino mau
que das boas coisas
andam os ilhéus exaustos
como se por exauridos estarem
se reformassem os vidros da catedral.
E reino mau
que meãos são os reis e as rainhas
em sua decadente pose
por cada deca dente rasurado por sucedâneos.
É mau
o reino
por ser sucedâneo de coisa nenhuma.
Não deem vivas
à república
(antes que seja tempo).
Fosse o manjerico
disfarce de foice e martelo
o S. João seria rico
sem precisar de um apelo.
Mas não é S. João
fingimento do Avante
pois categórico não
recebeu do mandante.
E até um pobre dragão
obrigado à faina
falta à celebração.
Ó desditosa taina
adiada para futura estação
à espera da luz que amaina.
O ultraje deletério
o traje ibérico
o úbere império
o unto pindérico.
O asno paroquial
o alvo providencial
o aipo notarial
o asco presidencial.
A lota desarmadilhada
a luta desafiada
a lula desconfiada
a luva destronada.
A máscara nupcial
a mistura ocidental
a maresia occipital
a mortalha temperamental.
O mosto tardio
o mastro arredio
o marco fugidio
o magma sadio.
[Crónicas do vírus, CCVIII]
Não há grande mal:
no tempo dos navegadores
também era preciso
corrigir a rota.
De cada vez que havia penumbra
o mosto do medo tornava-se
a saliva da extinção.
As cortinas eram muros ermos
ao mesmo tempo muralha e algema
insensato pedaço de verbo
nas sílabas vagarosas que arrastavam o dia.
Dizia alguém:
devias sentir o que eu sinto.
Houvesse quem recordasse
ser um logro a demanda
por imperativo do princípio
da intransferibilidade dos sentidos.
Como pode alguém convocar
uma comiseração destas
a não ser na demência da dor
que consome até os ossos?
Pode alguém conter a ideia
que as consumições se perfilham
com almas que se protestem generosas?
Os cânones são implicáveis, contudo:
a solidariedade é exigência
ainda que seja não mais
que um logro para libertar interiores dores
que mergulham
os labirínticos corredores da alma
numa castração
se não souberem peticionar
a piedade com as presas dos infortúnios.
Ao que dizem
a hipocrisia sempre foi o selo dos disfarces,
o teatro supremo
em que todas as boas almas
são alistadas.
A hipocrisia.
A cortina plúmbea que se abate sobre os rostos
uma pousada onde temos o rogo
das exonerações das más carnes
que nos consomem.
Saiba na melhor das fazendas,
a que desaproveita a densidade das interpelações,
que o logro seja meu
é que do fado inscrito no oráculo
esteja o alinhamento com o palco sem limites
onde se confecionam
o princípio geral do fingimento.
Uma sondagem
ao império da mansuetude,
eloquente,
aviva
o princípio geral do respeito,
Essa forca perene
o sândalo da casta
mitra dos figurões
a genuflexão imperativa.
Marx estava equivocado.
Não era a luta de classes
era
o princípio geral do respeito
(e a menoridade interior
pressuposta).
Espalhadas pelo chão
pétalas que são rugas
a tradução da bela decadência.
Como há quem deteste
o outono?
O chão atapetado
não mente aos comensais da estética:
um leve odor a perfume floral
sente-se em contágio
e as abelhas sabem-no
sapientes na demanda de doçura
povoando o bosque.
Como há quem tenha medo
das abelhas?
O céu virado do avesso
coabita no verso venal:
sabemos das ruas viáveis,
emparedado o vociferar
das ruínas campestres.
Sinais e sinais perseguem o dia
em vez das presas habituais
com a indulgência de uma trégua:
não se inventariam culpas
nem consolos tartamudeados
em fábulas surreais.
Não havia estrada pela frente:
os tempos esquálidos esvaíam-se
consumiam o oxigénio emprestado
e de dentro das casas
subíamos aos terraços
à espera do crepúsculo.
Não sejam dadas as mãos
ao tiranete destino:
antes uma música em penhor
o coreografar desajeitado do corpo
a poesia que não se quer treslida
e todos os lugares admitidos
à estância dos marmoreados reféns.
Ouve-se na música:
todos cometemos erros.
Antes fosse espartana mitologia
açambarcando a fragilidade dos Homens.