31.10.25

Injustiças documentadas (610)

Quando o sol é de muita dura

poucos aprovam a colheita.

#4252

O lobo 

faminto do sangue nosso 

medra por dentro das veias 

e nós, venais, sabemos.

30.10.25

Injustiças documentadas (609)

O elefante

não cabe

na sala.

Injustiças documentadas (608)

Três

(Salazares) 

foi a conta 

que o aprendiz fez.

Injustiças documentadas (607)

A pedra sem cal 

o mar sem sal

o tirano sem mal.

#4251

Vamos, 

vamos patear 

o homem das tabernas.

29.10.25

Suposição

Manda o sindicato da felicidade 

dizer

que é proibida a melancolia

em dias de luar de peito aberto.

Os infratores

serão punidos com três noites de insónia

para aprenderem com o luar tumultuoso

a serem necessariamente felizes

 

(e não apenas felizes).

#4250

Outro dia 

o ogre do tempo 

intransigente.

28.10.25

Ao acaso

Jogo os dados na marca da incerteza

componho os cabelos

um meneio capaz de quem demanda a sorte

de alguém que apedreja a superstição

e no turbilhão das forças e dos sortilégios

arrumo os dados sem pensar duas vezes

que nem uma só seta salvação possível. 

Jogo os dados

que o mistério da sorte

é surdo às intimações postiças.

#4249

Contar espingardas 

é como contar mortos 

antes de o serem.

27.10.25

Negação à negação

Não 

não é a neve que enovoa a noite

que destrona a noiva cidade.

Não é

o turvo decair

que transgride as traves 

que entronizam as pessoas.

Não é

a besta baça

que embainha as botas armadilhadas.

Não sei o que seja

a não ser

todo o inventário que inventei

para dizer

que não é por coisas essas

que os lugares e as pessoas

se perderam de paradeiros.

#4248

A hora muda 

mas a hora continua 

muda.

26.10.25

Mapa mundo

Costurássemos os costumes com o carvão do medo

as viúvas ao deus-dará

 

(oh, heresia, que Deus permitiu,

talvez distraído,

que uma palavra inspirará em seu nome

fosse iniciada com letra minúscula)

 

ao deus-dará as viúvas,

dizia,

portadoras desses funestos véus

que ninguém ousa postergar. 

Oxalá a algazarra dos petizes não termine;

precisamos de uma mnemónica da infância

para avivar a memória

de como era ser infante

sem consumições porque o mundo à volta

ainda não existia

e agora 

que já não nos gabávamos da adulta idade

sabíamos que o fingimento se apoderara de nós.

Fingíamos moderação

um espelho desimpedido 

para as palavras das outras bocas

e nós

enjeitando a autarcia

crescíamos como autarcas de um voto só. 

Às vezes

apetece agarrar a vida pelos colarinhos

depor a ira em forma de babugem

ou a ira arrancada a ferros das notas de rodapé

de dicionários vetustos e esquecidos 

nas arrecadações mentais. 

Apetece cuidar do dia

como se durasse meses a fio

e exilássemos as páginas desaproveitadas

as páginas que não cumpriram a folga do futuro. 

Outras vezes

deixamos que o tempo seja refém

das mãos que entrelaçamos

e das palavras murmuradas no cais do silêncio

trazemos estrofes arregaçadas ao rosto

é como 

se emprestássemos os rostos à chuva outonal

e desmatássemos todas as vírgulas gongóricas

as que enxameiam o poema diário

com as luas altivas

que ensinam as maneiras válidas

de sermos testemunhas primordiais

do belo em que o mundo se encerra

e nós

nós somos o seu mapa,

mundo. 

#4247

Joga uma tripla 

como no totobola 

e sais sempre a ganhar.

 

[Grandes remédios para males não tão elevados]

25.10.25

Injustiças documentadas (606)

Dizer 

que vai ser 

muito sincero 

é como apregoar 

que um espetáculo 

é totalmente gratuito.

#4246

Toda esta vaidade 

uma língua de trapos 

de almas 

que nem o avesso conhecem.

24.10.25

Marco

Cortamos as palavras em dois

o número tangente de que somos imagem. 

Subimos a noite desimpedida

no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,

a atalaia aos mundos profundos

uma simples mão pousada na outra

depondo o outubro fecundo.

#4245

Contem 

os metros do dia 

cada milímetro de lágrima vertida 

os quilos de angústia por decifrar.

23.10.25

Amanhecido

Seus

os olhos amanhecidos

como se aos céus fossem

e os lençóis amortalhados

a metamorfose de uma trincheira

onde o único arsenal admitido

é dos corpos que falam com o desejo. 

#4244

Sonhou que era astronauta 

e que do espaço 

viu um revólver a sequestrar a Terra.

22.10.25

Um quilo não pesa um quilo

Desta matéria feito

viro o dia do avesso

e não encontro as costuras 

– o fundo falso tirou ao acaso

um sortilégio. 

As flores mudam o campo

que deixa de estar mudo

ecoando o seu peito farto

pela voz centrípeta das flores. 

No meio da ponte

parece que só há 

o rio sobranceiro ao precipício

a consumição das tonturas. 

Digo:

 

é nas ruas onde o medo se emaranha

que somos além do que intuímos

aproveitando cada braçada 

para amealhar mais gramas 

para a existência inquieta. 

 

Dizem-me 

para não dar atenção ao tempo

para abandonar o corpo aos espíritos que adejam

e eu

teimosamente

respiro o vento cortante 

aparo o sol com os dedos encadeados

sulco o dia vívido 

nos labirintos que me ocupam

e deixo à memória futura

o encantamento escondido

tantas vezes obliterado

o encantamento que se acanha 

nos provérbios gastos pela usura

na conspiração que teço

só para ficar longe da entronização. 

 

Desocupo as montanhas 

que me separam do mar;

afugento as sílabas cortadas

as passagens de nível tão desejadas

pelos aspirantes a subir de degrau

que o estatuto não me deixa enamorado

e não preciso

já nesta idade não jovem

de sentir o regaço 

de todos os que se candidatem ao meu amparo. 

 

Prefiro as coisas na sua lhaneza

os dias sem vestígios de sua memória

o beijo de umas mãos estrelares

os vícios sem redenção

um lugar apurado na pequenez dos lugares

só para ter a companhia 

dos exilados de todas as estirpes. 

 

Fujo das luzes maçónicas

das suas malsãs divisas

e ainda mais

de quem se aliste para o infausto

da condecoração. 

Tiro ao acaso um número:

 

já não me lembro qual foi

mas era melhor do que o que consta

no rodapé do dia.

#4243

Governas por acrónimos

vai-se a ver

és poupado e austero.

21.10.25

Dos nomes outros

Destemido

o invulgar calar

ante a intransigente erupção. 

A escolha

tem aval dos penhores

as ávidas sílabas

que atropelam as frases. 

Não evaporo

os medos estilhaçados

nos ramos quebrados 

à mercê 

do vento que foge do norte. 

Um parágrafo

um parágrafo derradeiro

a estrofe liminar levita entre o embaraço:

empresto a assinatura dos nomes outros.

#4242

Um pacto 

sem servidão;

a muralha

por desfazer.

20.10.25

Nevoeiro limítrofe

As assoalhadas que sejam

não tirem saúde à aorta

nem apetite

que desenha a gula do futuro.

 

Por mal me desenharem

ando por aqui

mortiço

ou apenas caveado

nesta mentira

de que se celebra

assim tão incorrigível

misantropo.

 

Se o nevoeiro

tirasse as medidas

pela cor do meu sangue

ficava ainda um pouco mais 

cerrado.

Injustiças documentadas (605)

Já alguém perguntou 

nessas guerras que por aí há

qual é o preço de uma bomba 

atirada ao inimigo?

#4241

Mal o mel amolece 

mil são os mastros 

que amanhecem.

19.10.25

#4240

Não menos diamante 

do que (n)os dias pretéritos

o corpo atira-se ao porvir 

com uma febre inaugural.

18.10.25

#4239

Hoje 

as pessoas são 

anti-coisas de mais. 

É um peso que se arqueia 

nas costas dos outros.

17.10.25

Manifesto contra as métricas

Alguém disse:

os lamentos deviam passar pela balança

para sabermos quanto tempo levam

a curar.

Outros propuseram:

não se esqueçam da fita métrica

que toma as medidas da angústia

para sabermos das horas por que

desandamos.

 

Pelo silêncio dos demais

dir-se-ia

que não alinham

nos modismos das convenções

e preferem

a incaracterística anomia das métricas;

recomendam esta austeridade 

como critério

para ao menos fingir

que os malefícios que entortam os dias

são encomendados a uma anestesia geral.