Quando o sol é de muita dura
poucos aprovam a colheita.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Manda o sindicato da felicidade
dizer
que é proibida a melancolia
em dias de luar de peito aberto.
Os infratores
serão punidos com três noites de insónia
para aprenderem com o luar tumultuoso
a serem necessariamente felizes
(e não apenas felizes).
Jogo os dados na marca da incerteza
componho os cabelos
um meneio capaz de quem demanda a sorte
de alguém que apedreja a superstição
e no turbilhão das forças e dos sortilégios
arrumo os dados sem pensar duas vezes
que nem uma só seta salvação possível.
Jogo os dados
que o mistério da sorte
é surdo às intimações postiças.
Não
não é a neve que enovoa a noite
que destrona a noiva cidade.
Não é
o turvo decair
que transgride as traves
que entronizam as pessoas.
Não é
a besta baça
que embainha as botas armadilhadas.
Não sei o que seja
a não ser
todo o inventário que inventei
para dizer
que não é por coisas essas
que os lugares e as pessoas
se perderam de paradeiros.
Costurássemos os costumes com o carvão do medo
as viúvas ao deus-dará
(oh, heresia, que Deus permitiu,
talvez distraído,
que uma palavra inspirará em seu nome
fosse iniciada com letra minúscula)
ao deus-dará as viúvas,
dizia,
portadoras desses funestos véus
que ninguém ousa postergar.
Oxalá a algazarra dos petizes não termine;
precisamos de uma mnemónica da infância
para avivar a memória
de como era ser infante
sem consumições porque o mundo à volta
ainda não existia
e agora
que já não nos gabávamos da adulta idade
sabíamos que o fingimento se apoderara de nós.
Fingíamos moderação
um espelho desimpedido
para as palavras das outras bocas
e nós
enjeitando a autarcia
crescíamos como autarcas de um voto só.
Às vezes
apetece agarrar a vida pelos colarinhos
depor a ira em forma de babugem
ou a ira arrancada a ferros das notas de rodapé
de dicionários vetustos e esquecidos
nas arrecadações mentais.
Apetece cuidar do dia
como se durasse meses a fio
e exilássemos as páginas desaproveitadas
as páginas que não cumpriram a folga do futuro.
Outras vezes
deixamos que o tempo seja refém
das mãos que entrelaçamos
e das palavras murmuradas no cais do silêncio
trazemos estrofes arregaçadas ao rosto
é como
se emprestássemos os rostos à chuva outonal
e desmatássemos todas as vírgulas gongóricas
as que enxameiam o poema diário
com as luas altivas
que ensinam as maneiras válidas
de sermos testemunhas primordiais
do belo em que o mundo se encerra
e nós
nós somos o seu mapa,
mundo.
Joga uma tripla
como no totobola
e sais sempre a ganhar.
[Grandes remédios para males não tão elevados]
Dizer
que vai ser
muito sincero
é como apregoar
que um espetáculo
é totalmente gratuito.
Cortamos as palavras em dois
o número tangente de que somos imagem.
Subimos a noite desimpedida
no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,
a atalaia aos mundos profundos
uma simples mão pousada na outra
depondo o outubro fecundo.
Seus
os olhos amanhecidos
como se aos céus fossem
e os lençóis amortalhados
a metamorfose de uma trincheira
onde o único arsenal admitido
é dos corpos que falam com o desejo.
Desta matéria feito
viro o dia do avesso
e não encontro as costuras
– o fundo falso tirou ao acaso
um sortilégio.
As flores mudam o campo
que deixa de estar mudo
ecoando o seu peito farto
pela voz centrípeta das flores.
No meio da ponte
parece que só há
o rio sobranceiro ao precipício
a consumição das tonturas.
Digo:
é nas ruas onde o medo se emaranha
que somos além do que intuímos
aproveitando cada braçada
para amealhar mais gramas
para a existência inquieta.
Dizem-me
para não dar atenção ao tempo
para abandonar o corpo aos espíritos que adejam
e eu
teimosamente
respiro o vento cortante
aparo o sol com os dedos encadeados
sulco o dia vívido
nos labirintos que me ocupam
e deixo à memória futura
o encantamento escondido
tantas vezes obliterado
o encantamento que se acanha
nos provérbios gastos pela usura
na conspiração que teço
só para ficar longe da entronização.
Desocupo as montanhas
que me separam do mar;
afugento as sílabas cortadas
as passagens de nível tão desejadas
pelos aspirantes a subir de degrau
que o estatuto não me deixa enamorado
e não preciso
já nesta idade não jovem
de sentir o regaço
de todos os que se candidatem ao meu amparo.
Prefiro as coisas na sua lhaneza
os dias sem vestígios de sua memória
o beijo de umas mãos estrelares
os vícios sem redenção
um lugar apurado na pequenez dos lugares
só para ter a companhia
dos exilados de todas as estirpes.
Fujo das luzes maçónicas
das suas malsãs divisas
e ainda mais
de quem se aliste para o infausto
da condecoração.
Tiro ao acaso um número:
já não me lembro qual foi
mas era melhor do que o que consta
no rodapé do dia.
Destemido
o invulgar calar
ante a intransigente erupção.
A escolha
tem aval dos penhores
as ávidas sílabas
que atropelam as frases.
Não evaporo
os medos estilhaçados
nos ramos quebrados
à mercê
do vento que foge do norte.
Um parágrafo
um parágrafo derradeiro
a estrofe liminar levita entre o embaraço:
empresto a assinatura dos nomes outros.
As assoalhadas que sejam
não tirem saúde à aorta
nem apetite
que desenha a gula do futuro.
Por mal me desenharem
ando por aqui
mortiço
ou apenas caveado
nesta mentira
de que se celebra
assim tão incorrigível
misantropo.
Se o nevoeiro
tirasse as medidas
pela cor do meu sangue
ficava ainda um pouco mais
cerrado.
Já alguém perguntou
nessas guerras que por aí há
qual é o preço de uma bomba
atirada ao inimigo?
Não menos diamante
do que (n)os dias pretéritos
o corpo atira-se ao porvir
com uma febre inaugural.
Alguém disse:
os lamentos deviam passar pela balança
para sabermos quanto tempo levam
a curar.
Outros propuseram:
não se esqueçam da fita métrica
que toma as medidas da angústia
para sabermos das horas por que
desandamos.
Pelo silêncio dos demais
dir-se-ia
que não alinham
nos modismos das convenções
e preferem
a incaracterística anomia das métricas;
recomendam esta austeridade
como critério
para ao menos fingir
que os malefícios que entortam os dias
são encomendados a uma anestesia geral.