28.4.05

Minho no seu pior

Os dentes do burro são a foice da tenra erva
que cobre o pasto.
A populaça zombe do burro
não sabendo que não é o burro
que pede meças à inteligência.

No folclore garrido
tijolos de ouro vergam o dorso
das mulheres que calcam chancas dançantes.
Gritam, na voz estridente;
são o esteio do que não é a estética.

Às voltas com sinais de pertença:
verde Minho, verde vinho
bebedeiras tingem de vermelho
as faces esponjosas de varonis seres
- de um vermelho que desdiz o Minho verde.

Arrotem, brutamontes,
império à flatulência
que adora o troar do foguetório risível.
Liberta-te Minho, traz o campesinato
para as praças
e mostra como o povo se diverte.

Aos outros:
escondam-se da gargalhada colectiva da boçalidade.

27.4.05

Pudesse o desejo vingar

Outro dia
e jamais o que antes aconteceu
dobra a esquina invisível

Decepções gélidas
apenas rumores que esventram
as pálidas cores da vida

Agora, como ontem,
suores retidos desprendem-se
tutelam as bandeiras que ficaram por hastear

Oxalá
os remorsos tivessem uma janela sem vidros
um panorama espraiado para dentro

Oxalá
os silvos das aves fossem cantorias de embalar
e mostruário do verde refulgente dos vales.

Daqueles vales
que se adivinham para além da montanha
Escondida

21.4.05

As pétalas emancipadas

Desfalecem as pétalas de uma flor moribunda.
Não tarda, tombam com a leveza do nada
que as consumiu.
Nem assim a chuva de pétalas
(que esvoaça numa dança terna)
perde a lucidez das coisas belas.
Tocam no chão;
e fazem-se férteis no solo que as recebe.
Não perderam o branco vivo que as reveste.
Ainda no chão tingem-no com uma capa
que cintila na perfulgência dos raios do sol.
À espera do definhamento
no acobrear que traz a despedida.


20.4.05

O que dirás

Dirás que uma nova espuma
veio com a ternura caiada a branco.

Dirás que o enternecimento
foi a fogueira que te aprisionou os sentidos.

Dirás que o voo rasante das aves
traz à memória a intensidade dos corpos.

E dirás que amanhã
te cumpres,plena, no tanto que te quis ofertar.

19.4.05

O espalhafato dos circenses

Odes ao ridículo
e os seus fautores acham-se nos píncaros.
Não é coisa que a vista alcance.
Tombam no ridículo
tanto se expõem às luzes feéricas
aos néons abrilhantados.
Trepam uns nos outros
enquanto desfilam a covardia
de se dizerem amigos.

Cambalhotam.
Troçam
e depois vem a penúria
dos que desferem a facada fatal.
São a fatiota excelsa
palavras arquitectadas
(ou, diria, engenhadas)
e bazófia militante.
Esquadrinham poses que desbravam escola.

Exemplos de que muitos querem ser
e a negação da imagem que exalam.
Aventuram-se em tarefas espartanas
das que vão além das parcas capacidades suas.
Arrastam-se
num penoso calvário
aplaudido por uma trupe de medíocres
- como eles, por aqueles venerada.

Ah! pessoas bonitas
das nossas bandas,
fátuo circo de vaidades ocas
chapéus engalanados com o mundo ilusório
que vendem a uma horda de seguidores,
tão sofríveis como os idolatrados.
Pobre circo, o que nos cerca.

Haja força para cegar:
só nos instantes das luzes da ribalta
que se espraiam nas altezas que temos.
É a míngua de uma realeza decente,
uma realeza que faz sonhos idílicos
dos consumidores de papel cor-de-rosa.
Um prémio ao divino espalhafato da inconsequência:
solta-se o troféu
e, nas andanças pelo ar,
aprendizes de ilusões vácuas debatem-se
em saltinhos cândidos para ficar com o prémio.

É a glória do momento para o escolhido.
Tantos os olhos que repousam na sua tez
passada a pente fino pelos ditadores da cosmética.
Milhões de olhos não desgastam a pele dourada e desenrugada.
Encantam o ego do artista de variedades sociais
para delícia dos seguidores
incansáveis
insaciáveis do glamour
imperturbáveis no aplauso contínuo.

As palmas das mãos também não se gastam
na populaça arruaceira que anseia pelo estrelato.
Que hoje está mais democrático!
O ruído das palmas não cessa
perfurando os tímpanos
quase até ao limiar da loucura
de quem não desviar a atenção.

Somos isto:
um tanto que promete tudo
que se resume a um tristonho nada
deserto tão cheio de fealdade
refém da inanidade.

14.4.05

Na vertigem

Uma correria ensandecida.
Noite fora,
no rasto do tempo
que nos fugia, temeroso.
Tínhamos uma loucura saudável:
perpetuar os fugazes instantes
de uma vida que sabemos breve.

Era um remoinho incandescente:
levava-nos por um túnel escuro
sem fim que a vista abraçasse.
Sabíamos dos riscos;
o incitamento pela atracção
do impossível.

Retemperadas as forças,
regresso à vertigem nocturna.
Íamos atrás do tempo,
querendo aprisioná-lo.
Empenho para emoldurar a noite,
eternizá-la na lucidez
que se diluía numa acanhada inanição.

Paradoxo:
as energias sem fim
em cada esquina dobrada
nas longas noites;
o vazio que se apoderava de nós
estancada a febre venturosa.

Nem assim o ritual cessava.
Na lassidão do silêncio
esperávamos na paragem
pelo carrossel frenético.
Que vinha com a noite.

A noite:
miragem recorrente
viagem sem fadiga
que repelia a alvorada.
Não houvesse um desejo ardente
de imortalizar a juventude;
e os corpos nunca exangues
teriam sido mortuários
de um destino destemperado.

13.4.05

No reverso da memória

Ao teu doce ouvido
um sussurro.
Sabes
o que o sussurro
te segreda.
Podem as voltas da vida
torcer a vontade.
Que para além
do que a vista alcança
está o dever da entrega.
Da sombra
solta-se a tua voz.
O elixir da presença,
saber-te o alicerce
que empunha a bandeira
da vereda a palmilhar.
Haja as voltas que houver
acordes na outra almofada;
de um esteio de quem existe
à recompensa dos que porfiam.
Nem os queixumes,
nem os devaneios,
ou os silêncios pesados,
ou as palavras agrestes
- nada, nada volteia
a espessura do destino que é nosso.
Nem mesmo
quando os nossos curadores
parecem adormecidos.
Nem ali se estanca a torrente
que um dia fez de nós
a vida para deleitar.
Se é no enlevo
dos suspiros da alvorada;
ou no trinar dos sinos
ao pressentir a tua voz;
ou na quietude da poltrona
que nos acolhe,
já noite entrada.
Sem o peso esmagador do temor.
Sem o estigma agrilhoado.
Sem ceifar a liberdade.
Nem calcinar o quem que somos.

No que somos:
de sermos ambos,
apenas e tanto,
parcelas de uma vida.

10.4.05

A colina

Ao subir a encosta
palmilhar o restolho
que crepita, audível.
Remoer na altivez
daquela colina a seguir.
Encher o peito de ar.
Avivar os instantes
da verdura silenciosa.
Entregar-se no remansado
gorjear das aves.
E deixar-se ir
com o desprendimento do tempo
que cessa de ranger no alto
da colina.

6.4.05

Rumo esquivo

Sempre à escuta,
um orgulho néscio
confunde-se com a confiança ausente.

Canibalize-se a terra que pisas;
outrora aragem de bravura
hoje sinal de descrença.

Amanhã serás uma pífia imagem,
um estertor que se agiganta
na imensidão de uma galhofa colectiva.

Às voltas com a tragicomédia
apertas os atilhos, entretido,
enquanto em cima esvoaça o amanhã que se perde.

Garboso, golpeias os dedos
com a mesma faca que fere a digníssima
verborreia dos outros.

O sangue que jorras é gélido,
contraste do calor que se espalha
pela terra lusa.

Ri-te de ti mesmo,
ó Portugal desnorteado,
para encontrares o teu rumo.

5.4.05

Descaminho

Sabias
que os ventos batiam asas
na cegueira do horizonte.
E teimavas
no bolor dos dias que estão para vir.
Rasgados na dor,
um punhado de ascetas
velavam a tua sombra desesperada.
Eles, como tu,
algures perdidos na imensidão do nada.
Perturbado,
acreditaste num devir frondoso;
algo te dizia,
- uma misteriosa voz cavernosa -
que o amanhã estava entre os teus dedos.
Fruíste o momento,
doce ilusão
de um porto miragem
que sabes não conseguir acostar.
Na dor do travesseiro
passeias a insónia que te consome.
Aplaudes a dor que te mina as veias,
nutriente da singeleza de uma luz evaporada.
Chega enfim o sossego,
laivo de descanso perturbado
por sonhos que prolongam o sacrifício.
Sono corre depressa
ao encontro do ar fresco matinal
que te devolve o mundo
- como ele é.
Desvanecidas impressões
de um quadro pintado com as luzes luminosas
de um sentir adiado.