15.3.17

Ritual

Ferro os dentes
na véspera da ira sem medula
enquanto atiro o céu emaranhado
para os despojos da memória. 
Não quero saber
das curas antecipadas
não procuro se não um baluarte meu
onde possa o sono lançar âncora
onde possam as nuvens sombrias
ser um pedaço,
passageiro. 
Espero que as desmedidas
se inclinem ao chão de flores
que é meu habitáculo. 
A tempestade
não colhe entre os caules profundos
onde se esteiam os olhos fundos
onde os escombros têm sepultura
e onde se escondem
os dedos outrora murchos. 

#161

A alvorada
amedronta
os fantasmas:
agoniza-os,
antagoniza-os. 

#160

A noite
medra
os fantasmas:
pavimenta-os,
tempera-os. 

14.3.17

Viandante

Quinhentas fossem as viagens
e tantas ao ainda por resgatar. 
Oxalá
coubesse mais mundo
no amparo dos olhos
e a mim trouxesse uma amostra sublime
do que o mundo põe à mostra. 
Pudera eu
trota mundos sem penhor do cansaço
nómada vigilante de espaços vários
falante de idiomas muitos
e das desamparadas teias do desconhecimento. 
Pudera eu
agilizar estradas
povoar com a presença
somar paisagens ao escalpe da memória,
num certo sentido
sentir-me rei de um reinado particular
sem provérbios cautelares
sem baias sobre o olhar
sem o estertor do tempo a contado
nem as ameias que fragmentam lugares. 
Oxalá
as partidas não tivessem regressos:
cais demandados não merecem duplicação
e cais outros chamam por fundeio. 

#159

Força motriz. 
Dantes, sangue em ebulição. 
Oxalá temperado. 
Na devida medida. 

13.3.17

Parapeito

Quais são
as luas compostas
os tiros certeiros em alvos com arte de o serem
os campanários com água farta
as escotilhas por onde se deve encaminhar
o olhar?
Como se entrega a pele cerzida
como se excluem portas trespassadas
e as flores exaustas
e se devolvem as feridas ao despeito?
Como se formulam
as perguntas com palco
desautorizando as excruciantes dores
que se movem no chão embuste
que apanha os pés pela raiz?
É preciso compor as interrogações
se elas vociferam 
pela voz de uma plebe sem serventia
as atrozes cicatrizes já sepultadas?
Das interrogações a destempo
o que sobra se não o avesso desassisado
as convulsões que costuram o desvario
um arremedo de uma personificação
por interposto ator
a fatiota apessoada num corpo esvaziado
ou apenas um corpo a menos
para pensamento em excesso?
Nas ruas cheias de gente sem rosto
que palavras cheias de néctar
se procuram
em desafio das interrogações? 
E se
em vez das palavras tonitruantes
em vez das pinceladas que imitam os olhos
em vez de arrastar um corpo cansado
e mortificações que sugerem despejo
em vez das dilacerações contidas nas perguntas
e se,
em vez de tudo 
o que doutrina diabos sem freio
e abraça a temporalidade que interessa
com a cobertura dos palcos movidos
no paralelo do resto,
sem lugar a demónios sem lustro
nem sinuosas curvas sem aviso,
mas apenas o céu álgido
sereno
com as nuvens pertença de outrem
tomadas de empréstimo
só para enxotar os medos enquistados
só para devolver às trevas os vultos assombrosos
só para deixar no chão os ossos de outrora
com a magnífica escola 
onde se aprende com o livro antepassado
e onde se recusam as interrogações que sangram?

#158

No jogo justo
sem pertença aos excessos
nem contramão,
ao jugo dos deslimites. 

12.3.17

#157

Queriam uma moral desempacotada
mas vieram à porta errada:
aqui só há um pacto com o silêncio.

11.3.17

Lastro

Os lábios selados por um beijo
combustão feita fósforo fulgurante
no sextante vertido na avenida larga.
Colhi das árvores frondosas
o fruto macio, inteiro
e deixei ao tempo vindouro
uma estrofe simpatia.
Dos lábios selados pelo beijo:
o imorredoiro beijo
que se apetece no lugar do desejo
deixa as sementes fruírem em sentido.

10.3.17

#156

Era das adivinhas
(e dos oráculos)
que mais desconfiava,
à falta de deuses sinceros.

Longevidade

Ir ao encontro do leite vertido
sem pesar nos ombros inclinados
sem recusar as rugas no rosto
sem conseguir prevenir
as pedras que entorpecem o andar.
Não se admitem os outonos alcançados.
E, contudo,
os outonos em contagem
selam o triunfo maior.
O que interessa saber
se haverá longevidade
se nunca podemos ter por certo
o que é a longevidade?

9.3.17

Legado

Não era meu o caderno de encargos
nem minhas as empreitadas
ditadas em estiradores outros,
pois dessas mãos não era eu arquiteto.
Não quis adivinhas mendazes
nem toleimas (quem sabe?) algozes
nem a transgressão só por o ser.
Houve alturas
em que só sabia o que não queria
e do demais não tinha como saber.
Do vento à volta
recolhi o sal bastante para um devir
e de volta à sementeira devolvi a alma
fruída
lavada
acesa.
Sabia que o tempo é um ardil
e os relógios compostos na linha do horizonte
emprestam ao olhar uma distração
o seu gasto lugar-tenente
um fogo sem chama
como se o dia fosse ártico em invernia
e a noite monopólio castrador.
Diz-se
que todos sabemos um módico
um singelo saber
pertença de um conhecimento humilde,
as proezas às mitológicas personagens
que julgam não caber dentro do tamanho seu.
Quis-me,
propositadamente,
meão,
a anatomia de um anonimato perpétuo
uma voz quase em silêncio
as palavras deixadas em segredo
num murmúrio que nem os pássaros ouviam
e, todavia,
era a antítese da letargia.
Deixei-me passar a fronteira
entre o dia que foi eflúvio
e o dia que era promitente
uma aurora que sabia não ser boreal
um entardecer que não estendia o fio de luz
a calmaria profunda, estrutural,
que removia as hastes dos arbustos corpóreos.
Dei comigo
em lugares distantes
sem saber como neles aportei.
Dei comigo
a fazer juras incobráveis
em coreografias rivais com o medo dos deuses
sem o temor das enfurecidas superstições
sem a erudição dos eruditos que de tudo sabem
menos a morada dos diabos à solta.
Arranjei as árvores decadentes
semeei os beijos ternurentos
dei guarida
às preces condoídas que não eram minhas
tirei escala ao despojamento dos arbítrios
na feérica lantejoula que pousou no meu ombro
entre lágrimas do avesso
e um amplexo demorado a quem fosse dele credor.
Nunca soube a cor das cadeiras sentadas
nem quis saber o sabor das palavras explosão
(em constantes devaneios da alma)
não soube terçar remorsos sem serventia
não pude travar a mentira servil
nada pude contra os fautores da infâmia.
Fui prisioneiro de vícios mentais
à falta dos outros,
terrenos e mundanos
(assim o dizem).
Escrevi o vinho florestado
nas estreitas estradas dos campos escarpados
sob o olhar de atónitos aldeões envelhecidos
e a bênção
dos esteios de xisto que amparavam as vinhas
no palco dos socalcos amaciados,
as minhas mãos como batuta.
Estive errado
no lado contrário do tempo gentio
no raiar mestiço de dias sem cor
nas páginas sem sentido
nas páginas depois amarrotadas
no extemporâneo estuário em forma de leito
no regaço demandado
em febril constelação do desamparo.
Terrivelmente mortal
(até para o meu gosto)
levo o império do mundo
na companhia da alma em êxtase.
Não trago o passado comigo
nem envergo os trajes do devir
pois do devir tenho espera marcada
à medida das águas serenas de um rio acalmado.
Os relógios estão à espera.
E eu
contemplando a linha divisória do horizonte
no palco de um miradouro escondido
espero.   

#155

E de um sopro só
vigilante sobre a imensidão do nada
em latitudes ao acaso
atirei o corpo sobre bojadores sem mapa. 

8.3.17

Véspera

De véspera
onde a roupa cintada ainda serve
depois dos engodos pueris
depois das ruas malquistas.
Congraço as teias ainda húmidas
no tojo recolhido nos montes altos
e dedico ao devir páginas e páginas
ousadas
pretensiosas (talvez)
silenciosas.
Sorrio ao chão que os pés abraçam:
dizem que é fruição que não se abjura
ou talvez
os deuses irados mutilem o tempo 
em sua serventia.
Dizem
que devemos respeito às divindades
aos cultores de uma ordem estabelecida
ao mar ameno por onde nos é dado marear.
Não dizem
que capitulamos no imperativo respeito 
sem direito a interrogações
sob a mácula da admoestação temerosa
e da humilhação por dissidência 
sujeita a vitupério.
Eu quero
que as vésperas sejam faustosas
que delas verta o doce vinho
sobre cálices formidáveis
que nelas se deitem os tumultos todos
sem direito a repristinação.
Quero
que das vésperas se soerguem
os rudimentos inteiros
e por dentro do tempo vivido
se junte sob os pés a personificação perfeita
que sobrepuja os contratempos.

#154

Digam às mentiras do tempo
que elas se excedem no palco gasto
e deixam para trás loucura coalhada.

7.3.17

Vela de prata

A vela do navio por mim adestrada
rompia o vento e as marés
dentro de um casulo amuralhado.

Via-me marinheiro
nos mares todos
os conhecidos
e os que inventasse
sob a condição
de o sextante ser mapa sem segredos.

Marinheiro, eu
apostando com as ondas do mar
tirando a justa recompensa de cais esporádicos
apostado em ir
até onde o mundo tivesse fim
para provar que fim não tinha.

As gotas dos mares
em seus sabores almiscarados
esmagando-se em meu rosto sedento
tutoras dos lugares desarvorados.

Não era certa a data do regresso.
Não era certo o regresso.

Queria lá saber:
no dote pujante dos mares demandados
sabia nascer os dias todos
penhor das pedras preciosas
escondidas no avesso das mãos.

O segredo
afinal
estava embutido
no leme da nau sob minhas mãos.

#153

No coldre vazio
do desembaraço da lua anestesiada
a rua inteira medra
a partir da minha janela aberta. 

6.3.17

Danos colaterais

Arrancadas as páginas do calendário
com o ímpeto de um sultão
sobrava no enquadramento do olhar
a planície gasta,
despida de vegetação,
a problemática embocadura do tempo
o lugar onde os navios sem gente
demandavam sepultura
sem o escandaloso estertor dos calendários
e da sua finitude. 

As espadas sem rosto
subiam no dorso ressentido dos anciãos. 
Também não importava. 
As águas lacustres,
émulo da inércia vetusta
que os anciãos traziam ao regaço,
eram a perfeita esquadria do lugar. 

Por mais que olhasse em redor
os olhos só conseguiam estimar
velhos que pareciam monopólio local. 

A interrogação 
(pungente)
esbarrou no peito inquieto:
se já não havia naquele lugar
se não vetusta gente,
e em encontrando-me no lugar descrito,
teria a provecta idade tomado conta de mim
sem o meu consentimento?

(E deixaria de ser função minha
arrancar as folhas ao calendário.)

#152

Março aberto numa rosa
não murcha no caule fértil
nem dorme na congeminação
da primavera.