26.3.17

Elástico 

As fráguas tatuadas no dorso
coisa sem faceira 
confirmadas no rosto da lua. 

Os sapatos botos
perseguem a candeia que assobia
sempre uns passos à frente. 

A intermitência do fojo
não deixa dúvida:
passeiam-se os braços 
na efusiva celebração
que cada dia exige.

Nem que seja
em contramão dos pesares. 

25.3.17

Desalmado

Sem as cortinas avultadas
sem os freios que instruem engodos,
descarnado.
Sem as águas furtivas
sem as costuras à mostra,
desmatado.
Sem os vultos assacados às intempéries
sem as básculas intermitentes,
desossado.

24.3.17

#167

Viagem simbiose
em vulcões que esbracejam
diáspora de espadaúdos deuses
em sua lívida cartografia. 

Fonte certa

Passado o equinócio
sobravam as flores dançantes
em forma de chão
propositadamente congeminadas
para receber os pés. 
Não havia varandas sobre as nuvens. 
Não havia lamentos ciciados
debaixo de negra indumentária. 
As janelas entreabriam-se,
Timoratas,
mas acolhiam o mostruário que espreitava. 

Sem saber
juntei nas mãos as pedras preciosas
que vieram ao caminho. 
Os poetas não adormecem
diz-se, como se mostrassem heroísmo. 

Do alpendre estival
enquanto a preguiça estiola
e os olhos se perdem no firmamento
trago no peito
a crisálida mais bela que encontrei,
a espuma sublime
que se desprende de uma onda do mar,
a gravata em forma de mapa,
a voz doce que perfaz o encantamento.

Estou à espera
das horas pares
e dos acetinados do céu
para inventar outro equinócio. 

23.3.17

#166

À toa
sem Bacalhoa
bexiga escoa
juízo destoa
braço arpoa.

Miragens

O suor cansado
carrega heróis sem trono.
Que espetacular desperdício
vontade a rodos sem espaço a preceito
num matrimónio de inconveniência
que espalha olhos de gato
em avenidas estultas.
Os rapazes sonolentos
afinal
sabem mais do que os catedráticos.
Não admira.
O dia acordou sentado no céu
e não consta que as nuvens
corram no mesmo sentido do vento.
Às vezes
as trovoadas despejadas em feérico bolçar
aguentam-se no lapso sem memória.
É o que lhes vale.
(E aos rapazes sonolentos
– certos de saberem mais
do que os catedráticos –
que continuam a beber dos bueiros.)

22.3.17

Invisível

Deste lugar
no ermo de um corpo
onde medra paixão
impaciência
perpétua sede do novo
o voluntário sopesar da dádiva
onde se abraça
o romance
o comboio das fruições
as nuvens sem fundo
e um fundo copioso,
de um lugar
que se não quer centrípeto:
esbracejam fulgores prometidos
demandas em esboço
o pensamento não venal
a intensa marca dos dedos
num contínuo.
Deste lugar
no ermo de um corpo:
a aspiração de um neófito
à espera de aprender
com as flechas intermitentes
com a combustão dos enlevos
com a matéria não bolorenta
dos livros nunca tardios.

#165

Como as unhas dos gatos,
o cinismo:
só esgadanha a carne
quando desembargado. 

21.3.17

O difícil sexo fácil

(Variações em torno de uma fotografia do Porto Eros 2017)

A fêmea exposta
sem pudor
deitando ao olhar outro
entranhas sem peias
contorcionista
(disparando febres másculas)
lasciva
provocadora
perdendo a roupa
até ganhar a alma
a alma despudorada
ou apenas a alma sem franquia
na generosidade maior
da entrega no palco do desejo
vociferado pela turba
patrocinado pela turba
em pré-êxtase.
A fêmea que dizem fácil
para outros
portadora da mais difícil função:
joga
o jogo inato
da condição dos humanos
da condição dos animais
sem distinção.
Do sexo prometido
do sexo sem fim
do sexo mestre
da luxuria que reduz o resto a nada
do sexo de onde tudo provém.
Dádiva inteira
consumida pelos olhares à espera
da turba que a devora
o olhar afiado
sede nas línguas destravadas
no impossível refrear do entumecimento
do sexo larvar
sexo a vomitar pelos olhos
ou através dos olhos o sexo atirado ao corpo
que é pouco para olhos tantos
como de animais caçadores na selva
de atalaia à indefesa presa
todavia
caçadora silenciosa
num paradoxo cautelar.
O olhar atento
as mãos trémulas
impacientes
sedentas de corpo
um ou vários
na concavidade que se entrelaça
no dançar lúbrico
que incendeia fantasias sinalizadas
no olhar fundo sem fundo
como se no olhar coletivo
uma centena de sexos dele saísse
em estupro consentido.
A coreografia do desejo:
e quem não tem desejo
quem não quer o sexo forte
sexo destravado
sexo
na pessoa de uma pessoa outra
que se não tem
e depois se tem na ponta afiada do olhar
do olhar que bebe o sexo oferecido
na régua impassível
onde as regras esquecem tempo
onde o redil celebra rivalidades
e a fêmea causadora
nada no tudo que oferece?
Os varonis
que parecem tresloucados
macerando na ardósia por diante
ousam o palco
que nem seja à frente dos demais
na orgia indefetível
que manda no desejo desarvorado.
Acusam a insaciável fonte
de onde fruem imperadores
(ou em tal estado se inflacionam).
Há em todos aqueles braços estendidos
suplicando por um toque no corpo exposto
a embriaguez não frívola,
ou como dirão os padecentes do pudor:
o pecado sublimado
no pior rosto da animalidade humana
(ou da humanidade animalesca,
ou na desumanidade bestializada
– à escolha).
Só se não sabe
quantos sacerdotes que assim protestam
se resguardam à degenerescência
no silêncio do quarto solitário
engolindo o seu vómito,
ato contínuo,
no embaraço da falsa pudicícia.
E a turba
em coletiva alucinação
prossegue a valsa
em crescendo
removendo os véus aos freios sobrantes
por dentro do ergástulo da imaginação
a compasso com a função
em cima do palco
na perpétua sacralização da mulher
na perpétua mulher tornada objeto.
Até que o sexo
de tanto o ser
ou de tanto emasculado em derivas onanistas
ou o sexo de abusivo reporte
deixa o seu préstimo perdido
em brumas gastas.
E de um promontório esquecido
nas cinzas depostas nas costas da função
cuidados zelados em papel timbrado
contra a mastodôntica, perene linhagem
dos falsamente puros
e dos de degenerescência acusados,
deixa-se de saber a pertença.

#164

Já há livro de elogios
(no estabelecimento comercial).
Pouca serventia terá
e em havendo
sobra o embaraço
(não no estabelecimento comercial). 

20.3.17

Meteorologia

Era, talvez,
presságio
o frescor a meio da tarde. 

(Ia a dizer
que era, 
talvez,
presságio o frescor a meio da tarde,
mas arranquei o talvez.)

Fossem feiticeiras vetustas
a ler uma sina
ter-se-ia oráculo dantesco
pelos suores frios embebidos
na ventania súbita que embaciou o céu. 

Não havia feiticeiras
nem desdentadas mulheres
ou pedintes descalças em vestes negras
a povoar as imediações.

Se calhar
(e este é um talvez modestamente crepuscular)
era apenas meteorologia.

19.3.17

BI

Pinta almariscada
europeu benigno
esteta ousado
classe treslida
vinhateiro prometido
sonhador espaçado
trovador a destempo
músico amador
turista desbragado
zelota continuador
curador adestrado
leitor perpétuo
observador insaciável
interrogador inamovível
caçador benévolo
fotógrafo mental
asceta carnal
pensador gentio
marinheiro exterior.

18.3.17

Sufrágio

Um sortilégio:
palavras que desenham pensamentos
usando escantilhão sopesado
esquadria laminada
em módulos experimentados pelo instinto
adestrado.
Ficam desenhadas,
palavras assim compostas,
e os pensamentos rimam no esboço desenhado.
Os pensamentos desenhados
devolvem às palavras um sentido.

17.3.17

#163

Bastarda, a miséria
doce demência
um rinoceronte de bondade. 

16.3.17

Alter ego

Desembrulhei-me das costuras que tenho
(se é que consegui):
não tenho noção do que vejo
ao me parecer
que de fora de mim
não consigo ter noção do que sou.

E
dizem os costumes
sanciona-se a necessária transfiguração
quando os ossos batem nas gastas paredes
e as veias se incineram
num viés qualquer.

Se pudesse
não vivia armadilhado
em um eu e o seu diferente:
não tenho espaço suficiente
sequer
para albergar o que de mim se apoderou
essa cornucópia que faz as coisas complexas
o barro inerte, inamoldável.

Vistas as coisas desta feição
talvez me reste deitar no mar vago
e sem rezas que cheguem
povoar o resto com umas pinceladas ao acaso.
Já tenho tempo que chegue
para não acreditar em menos.
Um ego alter
na alteridade impossível
é um mais
que transborda do copo capaz.

#162

O oxigénio concertado
da névoa cessante
projeta a antítese
dos tempos últimos. 

15.3.17

Ritual

Ferro os dentes
na véspera da ira sem medula
enquanto atiro o céu emaranhado
para os despojos da memória. 
Não quero saber
das curas antecipadas
não procuro se não um baluarte meu
onde possa o sono lançar âncora
onde possam as nuvens sombrias
ser um pedaço,
passageiro. 
Espero que as desmedidas
se inclinem ao chão de flores
que é meu habitáculo. 
A tempestade
não colhe entre os caules profundos
onde se esteiam os olhos fundos
onde os escombros têm sepultura
e onde se escondem
os dedos outrora murchos. 

#161

A alvorada
amedronta
os fantasmas:
agoniza-os,
antagoniza-os. 

#160

A noite
medra
os fantasmas:
pavimenta-os,
tempera-os. 

14.3.17

Viandante

Quinhentas fossem as viagens
e tantas ao ainda por resgatar. 
Oxalá
coubesse mais mundo
no amparo dos olhos
e a mim trouxesse uma amostra sublime
do que o mundo põe à mostra. 
Pudera eu
trota mundos sem penhor do cansaço
nómada vigilante de espaços vários
falante de idiomas muitos
e das desamparadas teias do desconhecimento. 
Pudera eu
agilizar estradas
povoar com a presença
somar paisagens ao escalpe da memória,
num certo sentido
sentir-me rei de um reinado particular
sem provérbios cautelares
sem baias sobre o olhar
sem o estertor do tempo a contado
nem as ameias que fragmentam lugares. 
Oxalá
as partidas não tivessem regressos:
cais demandados não merecem duplicação
e cais outros chamam por fundeio.