8.3.19

Aplauso

Que fale o jasmim
nas cores que irradia
no telhado da primavera.

O dedo erguido
não é denúncia:
desenha a silhueta das nuvens
com a mesma precisão de um ariete
e traz ao conhecimento
as sílabas escolhidas 
(adivinhe-se)
a dedo.

Depois da manhã
o soalheiro entardecer 
confirma o diadema engalanado:
os tiranetes
estão condenados ao degredo,
mais cedo ou mais tarde,
ou a humilhante defunção 
às mãos dos que outrora foram presas.

Que fale o jasmim,
ao menos,
a contramaré deste palco hediondo
o sedoso campo 
por onde os corpos se habilitam
na anestesia da obnóxia condição 
que é o periférico a tudo.

Que fale 
o jasmim.
As palavras de silêncio
apostilha arqueada sobre o texto robusto
a milésima de segundo
que faz a diferença.

#955

Por que quimera
se faz das tripas coração?!

#954

Olhou o espelho
estilhaçado. 
Não sabia
que despedaçada era a alma.

7.3.19

#953

O coração
como um rápido
em rio não domado
sabendo-se na tua presença.

A dança dos aspirantes

Por estimativa
a fila extensa de servis
o séquito
pretendentes a sinecura
uma qualquer que seja,
desde que sinecura
assim ordena a pulsão pelo poder
o poder como obscena edição de si mesmos
talvez
um mal resolvido complexo
com a autoridade filial. 
Por estimativa
alpinistas sem regra
inescrupulosas almas 
disfarçadas de punhos de renda
amesendando com os mandantes
no investimento para memória futura
na paciente espera
pelos frutos que hão de pender
da promissora árvore da Janus. 
Os corredores são os das influências
onde o demais pertence ao retrovisor esquecido
e apenas contam
a deferência
as imperativas genuflexões
o elogio fartamente adjetivado
as solidariedades de casta
os favores em branco
mais a paga e a contracapa dos favores
a teoria dos jogos em forma de rumor
os golpes palacianos.
Medram na sombra
no sonho requentado de um holofote a preceito
pano de fundo dos figurões
quando espevitam câmaras de televisão
coiotes implacáveis
que não se regem por lealdades
a não ser com os que tomam o leme.
Matam para não morrer.
Nem desconfiam
que são os primeiros sacrificados
no banquete das vaidades vaporosas do poder.

#952

A vertigem da classe média
que por aspirar a ser alta
tomba na ruína
(sem aos baixos estratos se despromover).

6.3.19

Aquário & biblioteca

Descobri um aquário
sem água.
E o que pode
um aquário sem água
se está à míngua
de seu vital elemento?

Era depósito de livros.

As lombadas amontoadas
comprimindo tanto as vidraças
que até pareciam balofas,
incapacitados os livros de respirar
como se exige
das páginas deles expostas.

Três dias depois
um clarão ateou o juízo:
as bibliotecas
são aquários colossais
onde corre o fecundo manancial
de seu conteúdo.

#951

Não contem comigo
para fraturas expostas
e equações em forma de diatribe.
(Hoje.)

#950

As cicatrizes
dispostas como camuflado
contra o mundo.

5.3.19

Diligência

Diz-me 
do fundo das palavras:
que é feito dos pesares
agora que a angústia está ausente
e da saudade sobra o império perdido?

Digo-te
com a possível simplicidade
que o castelo protege a memória vulnerável
contra os síndicos da comiseração
os cães danados que deitam o dente
assim que podem
os dandies que especulam sobre a estética
e mordem em arrevesadas investidas
no sol posto onde tudo se consome na carestia. 

Dirias
que não te abates
no verso intemporal
nem cuidas das ciências sem método
ou de prolixos fazedores de farsas. 

Dir-te-ei
caso seja caso para o dizer
que as manhãs são juízes corretas
e nem o nevoeiro é cortina bastante
no involuntário arquear das pálpebras gastas
desmentindo categóricos imperativos. 

Disseste
em rima com a caudalosa trovoada
que não coincidimos com as varandas pueris
e das tardes soalheiras
resgatamos os corpos transidos
contra a indolência perfunctória. 

E eu disse
sem qualquer objeção oferecida
que não deixamos pela metade
quando sabemos a inteireza das coisas.

#949

Satélite ou colónia
não conseguia escolher a bissetriz
e padeceu no logradouro da sujeição.

4.3.19

#948

Entre anestesia e emboscada,
ou um sonho que duvida.

Conjugação

Todos os verbos
são poucos na maré diuturna
no pressentimento do passado
nas bocas sedentas dos apóstatas.

Todas as formas congruentes
as rimas improcedentes
os solavancos das noites versadas
os antagonistas sem rival
todas são escassas
na lua embaciada. 

Todos os dedos
são poucas estrofes
no vagar do outono
nas janelas debruçadas sobre o rio
nas intempéries que não se intimidam
todos os refrões
são matéria gasta.

Todos os medos
são poucos na vertigem dos ousados
no penhor da lucidez
nas tílias que dão extensão à avenida
no idioma prévio
nas fotografias a preto e branco
que emolduram marinheiros desembarcados. 

Todos os cedos
são poucos no caldeirão de maestros
no ritmo das sílabas docemente soletradas
sem a recusa do devir
no antepassado irrepetível
da palavra incansável 
contra o dogma do silêncio.

#947

Estão no etecetera
as entrelinhas 
que confere desembaçar.

3.3.19

Clepsidra

Dizem: 
temos de escrever o futuro;
somos infecundos 
se o passado preterirmos. 
Eu digo: 
temos de ser notários do presente. 
Dos dedos, 
soerguem-se as estrofes 
que o hoje veneram. 
O único rosto do tempo 
de que temos oráculo. 
As pálpebras não emaranhadas 
na amálgama dos tempos fantasmas.

#946

Nos areópagos circenses
não se esgota o capital da ridicularia
(essa moeda em alta).

2.3.19

#945

Terçam-se tesouras
sobre as palavras malditas 
– e o que são palavras malditas?

1.3.19

#944

Catch up.
Ketchup.
(E por aí fora…)

Trincheira

Faço desta fragilidade
a trincheira sem preço
a dogmática perseverança do meio
estilístico arrebatamento do sentir. 
Ouso congeminar as sílabas
em articulação metodicamente desordenada
contra os areópagos das regras
os deuses encerrados em suas Babel
os ministros das alocuções impecáveis;
não sou a pele 
em que tatuam seus imperativos.
Prefiro 
as arcadas da loucura
ou o vitupério da misantropia
ao sacrifício da vontade que irradia 
do meu sangue. 
Prefiro 
ser vulcão
temido por sua mortífera têmpera,
prefiro ser, até, pária
contra o movimento repetido 
que desenha os dias iguais
contra a caligrafia estetizada 
dos vultos perenes. 
Prefiro 
estar na trincheira sem preço
por mais que ninguém a queira para refúgio. 
Nem que a tomem por pútrido lugar. 
Nem que clamem ser caverna sem retorno,
a estepe infecunda de que se alega
ser o convénio da esterilidade.
Prefiro.

#943

Marido rima com partido.
Às vezes bom
outras vezes mau.

#942

Trespasso os lamentos
de olhos fechados,
minha tão grande fragilidade.

28.2.19

Destempo

Enganei-me na data.
Era o ontem vertido no amanhã
ainda cedo
mas talvez já tarde.
Aprisionado neste labirinto
não sabia das cores emaciadas da manhã
e subi ao promontório mais perto
em sinal de refúgio.
Fiquei a contemplar o mar
que 
(oh, lugar-comum)
parecia não ter fim.
Por mais que perguntasse aos marinheiros
era provável que não ouvissem
tão longe estavam.
Berrei o quanto pude.
Compreendi
que estava a berrar comigo mesmo
refém da abjuração a que me entreguei
por entre a capitulação da voz
o arremedo dos verbos
e desatenção sacrílega.
Perguntei ao céu que data era esta.
Podia ser
que não estivesse a destempo.

#941

(Ao Neto de Moura)
Como o hábito não faz o monge
a toga conspurca o juiz.

27.2.19

Diplomacia

A abóbada estreita
onde se esconde o verbo contundente
amacia a fala em espera.

Assim se tece a diplomacia
(dizem).

Gárgulas sem musgo
na vizinhança de ciprestes sumptuosos
acolhem as entrelinhas
e o silêncio cava entre os sentidos.

Do amianto desembaraçado
contra as catástrofes pressentidas
voluntários esbracejam a harmonia.

E o verbo contundente
fica mais uma vez em espera.

#940

Quando o céu morrer
para onde vão as almas
a ele encomendadas?

26.2.19

#939

O arrependimento,
o boomerang da tibieza.

Provérbio

Arregaço as mangas
e desço a corrente do rio
torno-me mais veloz do que as pedras
desamparado do medo contumaz
ajeitando o suor da melena
enquanto o sol cambaleia no torpor
e as rimas se esgotam 
na acidez das palavras.

Componho os verbos irregulares
na proeza indómita do silêncio
e as árvores agitam-se no vento nulo
amedrontam-se com as nuvens plúmbeas
e os espantalhos inertes
vultos estiolados na temperada planície
capatazes da absurda lógica que penteia
o pensamento,
ilógico 
desde que deixou de ser órfão.

Anteponho o entardecer à vontade
entre os parapeitos deslustrados
folhas caducas que amarelecem no ocaso
vozes murmuradas no epílogo de sonhos
a comiseração estéril de viúvas cansadas
e digo, 
o mais alto que posso,
que ambicionava a eternidade
a espada das divindades imorredoiras.

Passa a lua por entre a luz timorata
e dela esgaça um feixe entre as nuvens finas
o provérbio escolástico estilhaça sob as mãos
e deixo que o sono se estenda na insónia
enquanto os vultos açambarcam o tempo
e deles sou algoz, 
incompassivo,
agente secreto da perenidade do tempo,
dos tempos.

Não vejo que medida caiba em mim
antes que a manhã tome conta dos cardeais
antes que sobejem as bússolas gastas
despojadas no chão molhado pela maresia
e eu, 
orvalho diletante,
unte as costas do dia com a proverbial destreza
dos aprendizes do nada.

#938

Deste cimento
que deste às mãos
o Leste mais Leste a que se deitaram.

25.2.19

O seu reino pela estética

O pente está gasto.
Cansado, ou gasto,
não sabe bem.
O espelho,
por igual.
Gasto pela demora
da silhueta que se fita
demoradamente
em arranjos melódicos
da beleza rarefeita.
E o cabelo ralo, frágil,
um arremedo do que foi outrora
(diz ao espelho).
Cansada,
a beleza.
Diz:
“prova-me que estou errado.
Prova!”
Não se sabe 
a quem se dirige o repto.
Será ao espelho?
Não se é de fábulas
e dos espelhos não se espere
fala.
Será de alguém
adornando seus limítrofes
e, contudo,
não representado no quadro,
fora do olhar do espelho?
Não é possível saber:
fora de cena
como se não pertencesse ao palco
esse possível alguém
não tem voz.
Como o espelho.
Como não tem voz
a beleza 
alinhavada na teimosia
(ou não,
apenas a beleza). 

#937

Pode ser como o gato furtivo
a bainha acrisolada
dos dias tenentes.