1.5.19

#1027

Costuro o sol
com o sal dos meus olhos.

Urbanos

Sei
que são baratas
as segundas-feiras
– o que é injusto 
para as segundas-feiras.

Os cálices competem
pelas bocas ávidas.
É para isso que eles existem 
– isso e a “cultura urbana”.

Os beijos respeitam as bocas
e dos cálices
como da cultura urbana
bebe-se o néctar improvável.

Insistem os gurus
na “cultura urbana” 
– e ficamos sem saber
se é por ser citadina
ou pela sua urbanidade
(ou por ambos).

O que será dos rurais 
– e das segundas-feiras 
esquecidas pela “cultura urbana”?

#1026

Nem toda a chuva
nem os dilúvios impensáveis
são fermento da fogueira extinta.

30.4.19

#1025

Como podes dizer
que me “conheces de ginjeira”
se não sei
da tua intimidade com a ginjeira?

Heróis sem catedral

Quem são os desaparecidos
os inviáveis heróis sem nome
e afinal sem heroicidade?
Que epopeias não travaram
que proezas não falaram
a que estertores escaparam?
Em que jornais não foram retratados?
Que rostos quadram
com estes nomes incógnitos?
Em que lugares habitam
que grupo sanguíneo trazem nas veias
de que são feitos os lençóis onde se deitam?
Que idioma falam
ou será que são plurais os idiomas
dos heróis sem heroísmo por reconhecer?
Alguém lhes disse,
a estes heróis sem rosto
heróis sem território admitido,
que se heróis fossem
postergavam a sua humanidade
tão frágil como é linhagem da humanidade
(e que essa é a sua maior fortaleza)?

#1024

Trincheira
talvez seja palavra excessiva;
às vezes impõe-se uma praça forte.

29.4.19

Hora de ponta

Hora de ponta.
Tecnologia de ponta.
Faca de ponta e mola.
Faca e alguidar.
A matança da hora.

Hora H.
Hora certa.
Acerta a hora.
Ora, agora.
A hora da matança.

O sinédrio dos pontuais.
Relógio sem arestas.
Limalhas do tempo.
Arritmia cardíaca.
O precipício da morte.

Na ponta da hora.
O cabo da tecnologia.
O legado da evolução.
A paz sem dor.
O alpendre da vida duradoura.

#1023

(Variação do #1022)

A quem não interessa ser pária
se não a quem quer ser
mentiroso de si mesmo?

#1022

A quem interessa ser pária
se não a quem não quer ser
mentiroso de si mesmo?

28.4.19

Comércio justo

Troco
um bispo com diarreia
por uma mialgia de nevoeiro.

Troco
dionisíacos baluartes da vacuidade
por um garfo torcido. 

Troco
ascetas de ideias apessoadas
por um vulgar normativista de ideologias. 

Troco
as rodas comunicacionais
pelo parafuso sedentário. 

Troco
a facúndia dos inteligentes
pelo silêncio dos modestos. 

Troco
a espada ensanguentada de vitória
pelo repouso nas montanhas desimpedidas. 

Troco
o sacrifício por causas
pela honestidade interior. 

Troco
uma página quimérica
por uma cordilheira de livros. 

Troco
o ouro ajuramentado por falcões inescrupulosos
por um rio indomável. 

Troco
terras havidas em artes bélicas
por um beijo da mulher amada. 

Troco
as mãos dadas às grilhetas do conforto
pelas mãos insubmissas no fermento da vontade. 

Troco
os olhos adestrados
pelos vulcões ainda adormecidos. 

Troco
sinecuras e genuflexões e outras gratificações
pelo chão doce do anonimato. 

Troco
o mar inteiro
por uma janela que sobre ele de atalaia. 

Troco
a certeza com marca de água
pela interrogação alistada. 

Troco
o despontar das almas outras
por um mapa a régua e esquadro. 

Troco
a promessa da eternidade
pelo hoje entoado na luz bruxuleante. 

Troco
exércitos sedados pelo triunfo
por um lugar desconfortável no teatro. 

Troco
a algibeira ostensiva
pela lógica mesmo que não tenha lógica. 

E troco
impérios em trovas coloquiais
por um pequeno vestígio da pele amada.

#1021

Os dias contados,
património
desde a casa da partida.

27.4.19

#1020

Na peugada do lobo
encontrei um sapato
perdido de medo.

26.4.19

Passerelle

Não sei de vésperas
nem de azedas nêsperas
e muito menos de esperas.

Do cunho musical
confere o suor umbilical
desenhado em paredes sem cal.

O azimute não passa de ardil
estafetas que se perdem no covil
na rejeição de palavras mil.

De noite ouve-se das aves o ciciar
em fala mais alta do que navios a porfiar
com a mão na madrugada a assobiar.

Do colóquio não sobeja grande lição
que a prosápia é não invejável consumição
no latejar que não espera perdição.

Da noite acena-se a despedida
e oxalá não seja a última partida
que na página dedilhada esmorece uma vida.

Consome-se a altivez diuturna
sem mais cicatriz taciturna
que não tem préstimo a urna.

Antes o peito ensanguentado
o relógio não contratado
o artesanal menear assustado.

A dança pertence à rua
pois a iridescência provém da lua
e alma nenhuma é como a tua.

Enfim dita o sossego tardio
que não importa ser vadio
se tudo se arquiteta em palco sadio. 

#1019

(dEUS, Hard Club)

Como passaram vinte anos
na clepsidra venal
onde somos presas ou caçadores?

#1018

Impraticável
o rosto rosado
na rosácea que não é bussola.

25.4.19

Palavras imperativas

Há palavras 
que têm de ser ditas
em maiúsculas.
Palavras 
que têm de ser escritas
sílaba a sílaba
para nenhuma sílaba ficar de fora.
Palavras 
que têm de ser empunhadas
como bandeiras imorredoiras.
Palavras fétiche
palavras combustão
palavras alimento
palavras cimento
palavras armadura.
Há palavras
que têm de ser cantadas
até pelas bocas temerárias.
Há palavras
que gostam tudo
até para os penhores do indizível.
Há palavras
que são um mundo
na gramática dos destemidos.
Palavras alicerce
palavras encanto
palavras miragem
palavras vulcão
palavras não apalavradas.
Para que nada se silencie
a não ser 
o que for do santuário da vontade.

#1017

O mentiroso disse que mente
e eu fiquei sem saber
se ele estava a mentir.

24.4.19

Fundo de maneio

Ouço o outono:
a chuva dança no telhado
e do mar vejo apenas uma silhueta.
As vozes agigantam-se 
na embocadura da maré matinal
cantam estrofes sem ordem
e esperam 
que seja servido o doce entoar das velas.
Não que seja aniversário:
as velas são dos navios em espera
sem saberem
quando se cansa o mar iracundo.
Entretanto
a manhã dissolveu-se nos preparos da tarde
e um cauteleiro cego apregoa a sorte
que, por madrasta ser,
não apadrinha ninguém.
Os pés das árvores observam,
indiferentes,
o voo rasante das andorinhas
a sua coreografia estouvada.
Ouço o outono
e não é um pranto o que o outono ordena
que seja chuva abundante
em tardes disfarçadas de melancolia.
É o seu fundo de maneio;
não vá a primavera 
tomar o rosto do inverno.

#1016

No campo escondido
cicatrizes sob o restolho,
o húmus da vida.

23.4.19

#1015

Não dispo o verbo
e nas sílabas sentado
com procuração do escrivão do medo.

Poesia renhida

Poesia renhida.
O armazém transborda
de flores caiadas.
Terás um garfo à altura
do trono que desocupaste?

O arlequim boceja
entre o aparato vicejante
da flora exemplar do jardim zoológico.
Quem se ocupa
dos encargos imorredoiros
das arcaicas tradições que pintam o céu?
Quem tem uma pista
desarmadilhada no intenso tráfego dos bichos
sem dedilhar as cicatrizes lançadas ao chão?

A espada está embainhada
e os falcões dormem no ninho improvisado.

Quem são os ascetas inverosímeis
os calçadores de ameias
os tutores da medula que não se gasta,
os poetas renhidos?

Não interessam identidades.
Os berços sem alma
valem tanto como as comendas lustrosas.
O verniz em camadas
não consegue esconder a medula em sua raiz
e os contumazes ébrios 
seguem escoltados na sombra 
como se se escondessem da vergonha alheia.

Transitam os vendilhões de arcada em arcada
os furtivos passos em volta
deixando escrito nas nuvens encorpadas
o veludo em que se antecipa seu nome.
O sol consequente
cuidará de revelar o avesso das nuvens
entretanto dissolvidas.
Deixar-se-ão, então,
os templos vazios
a sua coniforme base estilhaçada
pelos sismos costurados 
em palavras mordazes.

As mesmas 
que são servidas
na poesia renhida.

#1014

Fui ver o avesso da página
e colhi 
um miosótis amanhecido.

22.4.19

Consentimento

Ao correr da escrita
sem interrupções nem arestas vivas
o dédalo instruído para acolher as palavras
e o teatro composto com o silêncio apessoado.
Aviva-se a centelha furtiva
por sua vez esbulhada ao sótão do futuro
em vez 
de se desembaraçar dos empoeirados vultos
dos latidos em rumorejo
rimando com o ribeiro que transita em contramão
ao vê-lo através do retrovisor,
parado sobre a ponte arcaica.
Tudo se basta num instante.
Tudo se resume à lágrima enxuta
pela mão providencial
a mesma mão que foi ao mar
e trouxe a maré composta
ou uma amostra da maresia olvidada,
ou então,
um grama de sal contendo um litro de lágrimas.
Não sei se chegam as palavras bolçadas
os lírios decadentes ainda coloridos
os braços inertes e o corpo pusilânime
a cama desfeita na emancipação do sono,
as palavras desarranjadas no papel amarrotado
a voragem das ideias 
que parecem um curto-circuito;
há vozes obscuras
vozes sem correspondência de rosto
ou sequer de vulto
que segredam 
incessantemente 
que sim.
E eu chego 
com o que me dizem que chega.

#1013

Deixam-me nomes
na norma exaurida
e eu sondo o crepúsculo estiolado.

21.4.19

#1012

A tocha antes do rastilho
a chama depois do desejo.

20.4.19

#1011

Passaporte ou salvo-conduto;
não interessa
a menos que tenha caducado.

19.4.19

#1010

Abotoados os sentidos
em sentido
no proveito da desordem.

18.4.19

Braço de prata

Adivinho a noite. 
Inteirado do estado inconsciente
demando à sombra o pecúlio restante
a argamassa que se estratifica
no inútil arranha-céus. 

(Que estulto nome
que convencionaram para o longilíneo edifício:
alguém acredita
que arranha o céu,
ou que sequer perto esteja de o alcançar?)

De resto
são as distrações do costume:
uma polémica entre duas públicas figuras
o sorriso setentrional de uma starlette
o fogo de vista no fingimento reinante
a maré alta tabelada depois da maré baixa
uns inquisidores que açambarcam os costumes
a arraia-miúda, irrelevante
o contorcionismo de estetas inveterados
o suplício das atrizes
a súplica de mendigos e outros órfãos
a publicidade risível
os galanteios de forasteiros
(sem terem tempo
se não para as impressões superficiais)
o denodo da administração pública
as praias estranhamente desertas
(ou não fosse um soalheiro dia de inverno)
a batota fulminante
as batalhas terçadas na violência das palavras
a desonestidade intelectual
a farsa impante dos melhores sacerdotes
(mas nem assim rejeitados)
os penhores por um degrau de reconhecimento
toda esta multidão de meretrizes do pensamento
vendida a preço de saldo. 

Mas não se passa nada. 

Toda a gente dorme o sono dos justos. 
Desenganem-se os meirinhos da insatisfação
que ou é de seus pergaminhos insuportáveis
ou de um clamoroso erro de juízo. 
Já não há pedras no chão
para alguém ser chamado à pedra;
em todo o caso,
se as houvesse,
seria pouco misericordioso
frequentar a plateia
de onde se veria 
uma metade a fugir da pedra
e a outra a imitá-la na função. 

Não se passa mesmo nada. 

Ainda bem que extinguiram as pedras
e nos passeios qualquer um se pode deitar.

#1009

Falávamos do dilúvio, 
a validação da ravina
onde medrava o desespero 
que não era nosso.

17.4.19

Os anões mentais

O ritual
de fortunas madrastas
é um golpe seco
nos avarentos tomadores do futuro.
Não são 
se não meã condição
num ensimesmar mendaz
a cortina gasta corrida
sobre o céu sem costuras.
Ensaboam-se nesse ritual
como se fosse essa 
a única higiene que sabem.
Uma bíblia adeja a sua silhueta;
não é aura que pesponta
as fronteiras de si mesmos:
em boa hora se considere
que não é meã sua condição
por se tratar de autêntico nanismo.