18.4.19

Braço de prata

Adivinho a noite. 
Inteirado do estado inconsciente
demando à sombra o pecúlio restante
a argamassa que se estratifica
no inútil arranha-céus. 

(Que estulto nome
que convencionaram para o longilíneo edifício:
alguém acredita
que arranha o céu,
ou que sequer perto esteja de o alcançar?)

De resto
são as distrações do costume:
uma polémica entre duas públicas figuras
o sorriso setentrional de uma starlette
o fogo de vista no fingimento reinante
a maré alta tabelada depois da maré baixa
uns inquisidores que açambarcam os costumes
a arraia-miúda, irrelevante
o contorcionismo de estetas inveterados
o suplício das atrizes
a súplica de mendigos e outros órfãos
a publicidade risível
os galanteios de forasteiros
(sem terem tempo
se não para as impressões superficiais)
o denodo da administração pública
as praias estranhamente desertas
(ou não fosse um soalheiro dia de inverno)
a batota fulminante
as batalhas terçadas na violência das palavras
a desonestidade intelectual
a farsa impante dos melhores sacerdotes
(mas nem assim rejeitados)
os penhores por um degrau de reconhecimento
toda esta multidão de meretrizes do pensamento
vendida a preço de saldo. 

Mas não se passa nada. 

Toda a gente dorme o sono dos justos. 
Desenganem-se os meirinhos da insatisfação
que ou é de seus pergaminhos insuportáveis
ou de um clamoroso erro de juízo. 
Já não há pedras no chão
para alguém ser chamado à pedra;
em todo o caso,
se as houvesse,
seria pouco misericordioso
frequentar a plateia
de onde se veria 
uma metade a fugir da pedra
e a outra a imitá-la na função. 

Não se passa mesmo nada. 

Ainda bem que extinguiram as pedras
e nos passeios qualquer um se pode deitar.

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