2.4.19

Lume brando

Queremos ouvir
o eclipse
a madurez estendida nos braços contumazes
o quadrilátero untado de vozes pueris
as invenções sem autoria
as ideias formadas na crueza
os fantasmas virados do avesso
(e por isso já não fantasmas).

Queremos respirar
o beijo
as montanhas por perto
(dantes apenas silhuetas)
o fôlego das marés
a folga dos humildes serventuários do saber
a estrutura óssea dos escultores
a macieza da pele que cobre a cidade
a indigência refratária
o exílio improvável.

Queremos falar
das mãos
de coreografias sem regras
de um poema a duas mãos
(assumindo que uma é a que escreve)
da modesta alquimia das varandas
do interrompido grito
do miado do gato afável
das peças enferrujadas pelo desuso
do matricial desejo irrefreável.

Precisamos de ver
os teatros que dançam nas nossas mãos
os dardos inocentados
os mapas reinventados pelo olhar sarcástico
as bombas não detonadas
as preces exauridas
os devaneios não crucificados
a estultícia em nota de rodapé
a passerelle deserta
a guitarra com cordas rombas
um poço com fundo marcado
o mercado que recusa moedas
e o cintilante véu que desmente a ignorância.

Podemos cuidar
da serenidade
das lágrimas sem paradeiro
dos medos excruciantes
das janelas desamparadas
das cidades esquecidas
e das que pedem conhecimento
dos patriarcas sem sono
do alpinismo emparedado
das vítimas sem culpa
dos servis, metódicos mandatários da lógica
dos intrujões sem cobertura
dos pederastas da mentira
do cavalete das cores refrigeradas
da imensa coutada de almas revividas
sem a decrepitude que é lema da decadência.

Queremos abraçar
o veludo da esperança
a espuma das ondas do mar
os violinos que garganteiam na orquestra
as manhãs sem rebuço
os corpos inteiros e alvoraçados
a maçã do rosto centrípeta
o trovejar da alma insaciável
as palavras robustas
a gotícula que se desprende dos poros
o olhar enxuto
as estradas que dão para todos os lugares
a mirífica paisagem
na comunhão da janela entreaberta.

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