7.8.19

#1146

Baixo relevo
orografia do corpo teu,
o mapa que habito.

6.8.19

#1145

Os olhos
(que)
não dizem
nada.

Instalação

Fora de horas
ajeito o cabelo na rima da maresia
e dou às vezes sem vez
sua oportunidade. 
O forasteiro desejo não se esconde
do palco sem inventário
e sei 
que entre o dia e a noite
se sufragam os sonhos nem sempre malditos
as luzes desembaciadas
o insólito murmúrio do vento desamparado. 

É fora de horas
que me sinto,
muitas vezes. 

Não significa 
que esteja a destempo
ou
que no mistério dos calendários
seja destemperada medida. 

As sílabas amontoam-se 
contra os pesares inúteis. 

Desenganem-se
os cultores da comiseração,
que aqui não têm praça:
a última coisa que seria admitida em ata
era a gratuita dor em forma de sangue vertido
o justo convocar do eterno,
o mirífico
inacessível.

Ninguém definiu
que os sonhos eram proibidos. 

#1144

O rastreio da lucidez
desmente
a memória de si mesmo.

5.8.19

#1143

Não morremos
no estampado verbo nosso,
imorredoiro.

Nomenclatura

Calmamente
endosso o dia restante
ao perentório exacerbar da mudez:

há alturas
em que o silêncio 
é a melhor poesia. 

Sem os archotes da sensatez,
diz-se por aí,
os atos são a tresleitura de seus patriarcas
e não é de estranhar
que sucumbam em suas interiores armadilhas. 

Calmamente
recuso o cintado manual da sensatez. 

Sinto
(e concedo que posso não estar enganado)
que fui vítima da sensatez,
várias vezes,
da minha e da de outros. 

Chamo as ferramentas ao meu uso. 
Tenho de afrouxar
os parafusos da sensatez,
à espera que jazam 
espalhados
e sem remédio.

#1142

Disse saber
com que linhas se cozer.
Não sabia 
que usara gastronómico verbo.

#1141

A mão estrangeira
no árido mapa sem rosto
incendeia as bandeiras insubmissas.

4.8.19

Jam session

Deixamos para depois de amanhã
e no rosto do improviso
arranjamos a morada no raiar do sol.
Poderá ser a morada esperada
para palavras sem paradeiro
e diremos de nossa empreitada
ser o jovial acordar de uma noite meã.
Terçamos as palavras ao acaso
só para ver o desfile de frases,
o que têm para nos dizer.
Não guardamos o produto.
A sua solenidade convoca a memória.

3.8.19

#1140

Vassalo ou vândalo
mas não necessariamente
por esta ordem.

2.8.19

Noite fugida

Curto-circuito na noite. 

As trevas capitularam
indefesas 
perante a bucólica luz 
em erupção. 

Não havia ninguém para ser
zelador da noite.

Quase órfã
esticou-se ao comprido
no silêncio pedido de comiseração. 
Os boémios não estavam atentos

(viviam a noite por dentro da noite,
não deram conta do seu esgotamento)

e os demais estavam reféns do sono,
não podiam acautelar as dores da noite. 

Alguém pressentiu
que a insólita luminosidade
era a vaga a que tinha admitida
a noite branca,
já não exclusiva de paragens nórdicas

Também estavam possuídos pela quimera:
mal o verão se foi consumindo
em sua outonal decadência,
logo a noite recuperou o seu viço. 

Já era outono
quando alguém interpelou a noite
querendo prestação de contas
pelas tristes figuras
quando a noite covardemente pedira
comiseração. 

Desviou a conversa,
a noite,
sem coragem 
para admitir as suas fragilidades.

#1139

Não condeno nada
a não ser
as condenações dos outros.

1.8.19

A chave do labirinto

Como se tratasse
de uma belle époque
a vindima rigorosa dos meus esteios
e em casta selecionada
estivesse de vigia
no promontório de onde assento as medidas.
O apuro dirá se foi merecido
o dia em pródiga demanda.
Alturas há
em que deixo ao de fora de mim
o juízo razoável.

#1138

À consideração dos eruditos:
sentar na pedra angular
não será 
a mais confortável das empreitadas.

31.7.19

Charlatães que oferecem apocalipses em saldo

De acordo com as profecias
amanhã 
é outro dia.

Quem diria?

Nostradamus de fino recorte
escaldaram neurónios a ditar o apocalipse
e o dito anda a ser procrastinado 
– quem comete tamanha aleivosia?

Caso para predizer:
o maldito apocalipse 
é poltrão 
– e não é alegoria.

Ou
pode dar-se o caso
de serem charlatães aqueles Nostradamus
ou profetas de trazer por casa
que não passam de fancaria.

Pelo caminho
os amanhãs destrunfam
os Nostradamus desencartados
(quem mais o faria?).

#1137

Valetes que se fazem passar por reis.
(Não aprenderam nada
quando eram peões.)

30.7.19

#1136

Massamá
foi terra de massa má,
ou contingência de má toponímia?

Recreio

A muralha das pedras macias:
compõe-se a gramática
na véspera da véspera
onde se enfeiram os dias de verão. 
Este é o bicéfalo pesar
uma cortina esfarrapada
que não esconde os lamentos
e se antepõe aos apodrecidos recônditos
onde se podia envergonhar a alma
e vomitar a dissidia. 
Contudo,
é uma banda desenhada,
pueril como são as bandas desenhadas,
que missiona os cândidos sepulcros
onde a palavra se esconde de sua nudez. 
O chão amarelecido
não é um tapete vetusto
venal condição dos senescentes,
desenganados de profecias sem verbo. 
Na maré que está
as varinas emudecem-se
e nem as sereias
(acaso as houvesse)
seriam contempladas com um ciciar.
Por dentro da letargia
as muralhas não apodrecem
nos dedos das teias de aranha. 
No interior de suas paredes,
amurado,
o pressentimento da véspera da véspera
quando as crianças pródigas riem sem parar
e ficam a saber
não antes do tempo
que quando crescerem serão menos risonhas.
Não lhes levará o sono 
para paradeiro sem morada,
a revelação:
entretidas com a boémia
encomendam ao contumaz porvir
essas dores que terão 
então
direito de admissão.

#1135

Não é contar espingardas
que interessa;
é dá-las para abate.

29.7.19

Combustão

Ferve
o sangue
já quente.

As veias em combustão
não inquietam
o sangue estuoso.

Possivelmente
a imagem do vulcão
põe-se a jeito.

Em recusa do óbvio
nega-se vencimento
à imagem do vulcão.

O sangue
em ebulição
não precisa de cotejo.

Parece que precisa
apenas
de irromper em gritos
protestos algures
à escolha de matrizes 
amaldiçoadas,
larvares.

Lá que ferve
o sangue
as combustíveis veias
não desmentem.

Talvez amanhã
no parapeito da vontade
resgatada
as veias arrefeçam
e o sangue se acalme.

#1134

O teu corpo
é o meu opiário.

28.7.19

#1133

O forasteiro
vê sempre
as janelas diferentes.

27.7.19

#1132

O biombo
a língua morta
dos vultos adiados.

Berço da loucura

Há 
no berço da loucura
o aroma que transborda
o escudo das almas.

Há no berço
a loucura
que transfigura o aroma
no desenho das almas.

Há 
loucura no berço
escondida nas arestas
das vidas armaduras.

Há loucura
e o berço 
tem as arestas 
que embaciam as vidas.

Há 
nas arestas do berço
a transfiguração das almas
outrora sequestradas.

Há em berços vetustos
a loucura potencial
à espera de se desarmar
dos sequestros das almas.

Há a loucura animal
talvez
o berço para a libertação
da espécie sitiada.

26.7.19

#1131

Consolado no consulado
admitiu
o consulado consolado.

(Dedução lógica)

Role play

Esquadria do fingimento
a perfeição da encenação elevada a expoente
e todos a jogar ao teatro
e ao teatro por dentro do teatro
e numa cornucópia de teatros
até já todos terem a noção
de que são arremedos de si mesmos.
São as horas de marcar o zénite:
de todos serem fingidores
a palavra farsante saiu do dicionário.
E já ninguém sabe
que está no desempenho de um papel,
ou que por estarem no uso de um papel
não evocam o seu ponto de partida,
entretanto caído em desuso.
A palavra raízes
também foi eliminada do dicionário.

#1130

[Purple Mountains, “All my happiness is gone”]

Ao menos isso,
nos autorretratos dilacerados
a arte lobriga.
(Uma serventia assegurada para a melancolia)

25.7.19

Ana

Sabíamos de cor
as ruas onde as ondas amaravam
os códigos sem regras
os versos que agigantam as almas
o extasiante ocaso sem ninguém por perto.
Tirávamos à sorte
a vez às divindades,
nós que nem sabemos do seu paradeiro,
e subíamos às varandas
só para sentirmos a pele arrepiada
(e não era do vento impulsivo).
Juntávamos o olhar
numa sinfonia singular
e perguntávamos à noite
se não seríamos loucos
se não seríamos
os argonautas onde as causas se não esgotam
e esperávamos pela resposta
sabendo
que nós erámos os tutores da resposta
e que ela tinha o selo do sim
a tudo o que nos ornamentasse de fausto.
Projetávamos as veias
numa piscina onde apenas vivia um néctar,
à procura de mantimentos
à procura de um sentir,
e saímos ricos
no conhecimento de que não precisávamos
da autoria alheia do nosso remanso:
tudo em nós era bastante,
nós
soma maior do que as nossas partes.
Sabíamos de cor
os labirintos onde outros sabem decadência
e da decadência não queríamos saber
enxotada para as calendas
no juramento de que não há tempo visível
nem amarras que amputem o uníssono nosso.
Jogávamos a alta parada
o jogo inelegível,
diriam, 
insensato,
mas não queríamos saber.
Só nos importava 
a lava ininterrupta em ascensão irrefreável
e nós, 
curadores de todas as coisas nossas,
cegos ao alheio, 
ao vetusto, 
ao contratempo,
no sangue cruzado
na tangência das bocas
no sexo sem esteios
na manhã luminosa
por sermos um pedaço inteiro do outro
improviso homérico
as cidades que deixavam de ser estranhas
o céu onde as mãos desenhavam os nossos nomes
a matéria funda que arrematava a medula
e o conhecimento 
– o conhecimento
que triunfávamos na eloquência da simplicidade,
sem trunfos
sem modas
sem truques
sem segredos,
apenas nós
e um apenas do tamanho das galáxias.
Hoje
sei que os verbos no pretérito
são como uma fala do presente.
E sei
que se voltasse ao início do poema
substituía todos os verbos 
pelo tempo no presente. 

#1129

O verão
é a quarta estação
que mais gosto.

#1128

Não
nesta cidade
a maldição extirpada
dos rostos válidos.