27.9.19

#1204

O filão sem medo,
transfiguração dos limites
no rendilhado da romã outonal.

26.9.19

Boda

Se te contasse 
os verbos da aguarela
falaria
sobre as sombras que levitam da luz
os aquários onde sentadas estão
as esfinges de poetas arcanos
as linhas finas que compõem as silhuetas,
apenas arremedos de corpos
diluídos
na penumbra alinhavada pela bruma. 
Se te contasse 
as almas contidas nos verbos
arranjávamos
um dicionário por nossa conta
e dos nomes sem paradeiro 
não seríamos penhores
a não ser que uma multidão de rostos
viesse desaguar na praia que temos 
por praça forte. 
Se te contasse 
os riscos de um parágrafo a destempo
dir-te-ia
que participa dos sintomas com os poltrões 
que desarrumam o código da estrada
os argonautas que ferem a gramática
os miseráveis que sobre tudo
açambarcam opinião. 
Se te contasse 
a boçalidade que não vês
não estou certo de que de mim farias
fiel depositária da confiança;
acredita,
não são comezinhas as entorses
a prosápia dos risíveis
a arrogância dos néscios
o excesso de otimismo dos que se tresleem
quando determinam um espelho trapaceiro
como seu ponto cardeal. 
Se te contasse 
que na maior parte do tempo
apetece
a hibernação
ou seres refúgio onde me anestesio do resto
saberias dos teatros infrequentáveis
e de como és 
o lugar onde me apetece ser.

#1203

Estigmas da modernidade:
ficar sem rede
é perder a rede
(de segurança).

25.9.19

Desalojamento

Rumorejo
na insaciável forma
que se agiganta
no ocaso do dia. 
As sílabas são murmuradas
no promontório visível
que não estremece com os ventos desassisados
em reprodução de um verbo de
insurgência,
soluço cinético da roda dentada interrompida. 
Acordo na manhã tardia
sem o silêncio por companhia;
ou sonho, 
a destempo,
que o tempo se adiantou ao sono:
parece que a maré virou
e venho citado num edital contumaz
à espera da cidade sem estorvos
à espera de me fazer suserano de um nada
e do paço centrípeto expresso o deslamento
e entoo as estrofes 
tingidas com o açúcar da minha boca.
À medida das desmedidas
penhor de nada
por nada 
ser o império de que sou caução.
O império
desenhado na frontaria de um rumor
onde se empenham as palavras tementes.

#1202

É esta a tempestade,
a sementeira sem estorvo
dos deuses impertinentes.

#1201

[Continuação do poema anterior]

E se fizer a declinação 
da palavra compilação...

24.9.19

Decoro

É com o coro
que decoro
o código do decoro.
Corro nas entrelinhas
antes que a malha caia no decorro
e seja trespassado com o rosto corado.
Só mais tarde soube
que o decoro se não decora
e é preferível não haver coro
se ao decorar o decoro
do decoro me evadir
e caiar o conhecimento
com o soro da ousadia.
De cor
passo a saber
em alternativa
da cor da lascívia
em corrupção dos costumes
e sem fazer coro
no manual do decoro.

#1200

A trave sem mestrado
não chega a alicerce.

23.9.19

Sala de espera

Estimada sala de espera:
espero 
que não tenhas esperanças
da minha presença,
que a tua ausência tomo
como dádiva.
Mal não te auguro;
quero que de mim
tenhas o suave sabor do olvido,
para saber que de ti não tenho precisão.

Estimada sala de espera:
falta não me fazes:
das conversas que estranhos fazem
da estultícia militante nos canais de televisão
de aberrações que por lá desfilam
dos dramas que acinzentam vidas
das esperas que multiplicam o tempo.

Estimada sala de espera:
espero
que sejas tu
a ficar à minha espera
e que de tanto esperares
te canses
e esqueças que em mim há existência.

#1199

Imaginas o teu próprio dia
entre a miríade de sonhos
e escolhes uma personagem.

22.9.19

#1198

Enfim, outono:
a retaliação
contra o suor enxurdo.

21.9.19

#1197

Nau, se abundo.
Náusea, abundo.
Nauseabundo.

#1196

Sensibilidade no epicentro
e reticências no epílogo.

20.9.19

Dicionário

Uma pitada 
do teu sal
e eu desejo. 

Uma pitada
do teu mel
e eu transbordo.

Marxismo falhado

Em anotação demiúrgica
o rebelde suspira pelo epílogo sem dor
à medida que a sinfonia caótica de ruídos
ecoa da metalúrgica. 
Não sabe a que aspira o operário tardio
ou se apenas vive para o ganha-pão
que alimenta a sua vida. 
Não sabe a que sabe 
o saque do suor das pessoas,
versão expedita 
de um marxismo de palha gasta
na órfã gesta que não cessa de protestar. 
Sempre ouviu dizer
que as coisas não se ganham de graça
e a rebeldia inconsistente
não achava graça à onerosidade. 
Talvez sobre um pedaço de lua
sobranceiro à alvorada
e seja testemunha da sua insubmissão. 
Admite
que nunca soube o que era saber
uma intempérie diária 
abater-se
sobre corpo e alma
e admitia
que a rebeldia devia ter incarnação 
nas massas oprimidas,
não fosse dar-se o caso de não acreditar
na luta de classes
e no léxico correspondente. 
Não deixava de o lamentar. 
Sempre teve a impressão
que são mais diligentes
e próximas do leitor
as estrofes que se arregimentam
em favor dos oprimidos. 

#1195

A humanidade demasiado imperfeita.
(Ou por que há estátuas de vivos.)

19.9.19

Os ignaros não sabem nadar

Homenagem aos navios destemidos
a gesta que desafia 
mares imensamente maiores
aos que nas marés sulcadas levam mercancias
aonde não seriam do conhecimento
não fosse pela sua audácia. 
Homenagem. 
Que nos tempos correntes
apedeutas eleitos por outros seus pares
se aprestam 
a rasurar a história e o conhecimento
oferecendo aos súbditos
o poder da sua ignara arbitrariedade
e as sementes do retrocesso. 
Mal soubessem
os súbditos assim governados
que saber do outro
não é aqui bisbilhotice;
é abrir as janelas
de par em par
para do outro receber fragmentos
e ao outro deixar um selo com a sua marca. 
Prouvera
que aos néscios dessem tirocínio
e umas lições sobre os registos do pretérito.

#1194

Mobiliza-se, o ócio,
na manhã de todas as azáfamas
e eu, 
como se conspirasse contra os deveres.

18.9.19

#1193

Amo o amor
como o amor 
me traz por amo.

Claraboia

Ao vigésimo segundo dia
o ato de contrição:
desarrumadas as ideias num gavetão rombo
espezinhava os estilhaços sobrantes
sem conseguir travar um esgar de dor. 

Possuía os dedos enquistados
e o atavismo das flores caducas
soava alto 
à boca de cena. 

Tirava as medidas ao arrependimento. 

Vestígios de um imenso nada
doíam nos olhos
assim marejadas no atraso das encomendas. 
Um passe de magia 
– em jeito de súplica sem destinatário,
como se fosse possível erradicar os erros
num golpe de asa que destruía o passado. 

Talvez não quisesse a redenção. 

Não sabia o que queria,
ao certo. 
Estava já convencido a errar 
pela maciez do tempo vindouro
quando notou numa centelha
a desfibrilhar a anemia dos sentidos. 
Era a terceira noite sem dormir
e já não sabia 
da fronteira entre lucidez e sonho:
agora era assaltado 
por um feixe de imagens recorrentes
atropelando-se umas às outras
numa agonia impaciente 
– um palimpsesto de sonhos 
situado
num palimpsesto dominante.

Quatro caminhos agravados aos braços
e um grotesco pesar 
alimentando-se da vetusta imagem do porvir. 
Admitia não saber onde estava
uma dor lancinante tomando conta do peito
à espera da misericórdia
(ou de um golpe de misericórdia,
já não sabia). 

Oxalá viesse 
depressa
o vigésimo terceiro dia.

#1192

Trespassam-se convicções. 
Motivo: sua confirmação ao espelho.

17.9.19

Pauta

Deste-me 
um mapa
as paisagens em cores plúrimas
um diadema que veio tocar-me
e eu soube
que na morada que seríamos
seria o repouso da beleza
uma orquestra com as vozes sublimes
entoando as músicas sem acaso
num consumado beijo perene.
Deste-me
o que de valioso é património
e das mãos um feixe de luzes irrompe
o acontecimento crepuscular
sem data de validade
sem medo sequer dos medos
desenhando os deslimites do intemporal
na constelação de corpos que somos
pluralidade singular
matriz com selo cautelar.
Deste-me
as palavras sem rebordo
as palavras-refúgio
e eu do magma 
fiz levitar as bandeiras sem algemas
a tua boca saciada pela minha boca.
Quais são as casas que nos perseguem
as montras ilógicas onde a fala se desprende?
E nós, 
odes a nós mesmos,
arquitetos da safra abundante
um vulcão à beira-mar
uma maré copiosa
estandarte onde, 
serenos, 
os traços dos rostos sem reticências 
se recolhem.
Não damos caução a exemplos
que por nós somos inteiras peças
incorruptíveis ao desejo segredado
uma maré cheia que nunca esmaece
no bojo denso com magnólias a imperar
como se fôssemos nós mesmos
a avenida que nos tem por morada.
Não esbracejamos esta inteireza
que prescindimos das bandeiras que ostentam
petulância.
Somos nós
e por nós chega
na vidraça que reflete os nossos corpos
no uníssono que sabem
atestado lúcido no aroma da loucura
sem espartilhos
nem palavras banidas.
Somos
um amor
e nadamos por dentro dele
saciando a vontade de viver.

#1191

Subo ao teatro
onde os sonhos são desmentidos
no chão impreciso do palco.

16.9.19

Jam session ao entardecer

Sem regras. 
O mar imponderável 
seguido
de um imponderável mais fundo
enquanto as vozes sussurram
nomes inventados
o desmentido da erudição. 

Fala mais alto,
o espontâneo,
traduz instintos sem algemas
e a vontade de romper a ordem
no rendilhado de ameias vertidas
na intemporalidade. 

À primeira tentativa de regras,
o fautor condenado ao exílio;
essa é a única regra consentida 
– a proibição de regras,
para além daquela que as proíbe. 

Entreolham-se os confrades
à espera de um mote
à espera da refulgência da inspiração
que dê o mote
para a réplica ao mote de partida. 

A exaltação dos espíritos lisérgicos
é uma combustão
a transcendência dos olhares a desmedo
o cerzir de palavras improváveis
num intenso fervilhar 
em que se compõe o texto,
a múltiplas vozes. 

No fim,
não sobra registo
a não ser a memória efémera dos confrades,
um pedaço sem marca do tempo.
E essa 
é a segunda 
e última
das regras consentidas.

#1190

Evocação da infância:
Benny Hill a dar palmadinhas
na careca do pequeno ancião.

15.9.19

Servidão

O servo impreciso,
naipe que não vê a luz do dia,
proclama o juro estimado
a febre sem dor
e a recusa da complacência.
Oxalá desdissesse a servidão
os pactos sobrepostos à vontade
as mil e uma tergiversações
os altares que são a pauta indesejada.
Oxalá
que das servidões
sobrassem apenas os servos.

#1189

As mãos futuras,
rainhas sem coroa,
metáforas da casa sem paradeiro.

#1188

Demora-te
no fundo exercício
da tua demora.

13.9.19

#1187

Da “mão beijada”
ser metáfora do gratuito
é desonra às mãos que se beijam.

Em ponto morto

1
Começada a empreitada pelo telhado
contra os cânones
e o conselho do prior.

2
Se havia fio condutor
não era à prova de água
e o cão tresloucado tratou de o provar.

3
A iguaria merecia distinção
e os ancoradouros de outros lugares
assinaram a tinta-da-china.

4
O operário esfrega as mãos
mas não é de contentamento
é para acentuar as rugas.

5
A escola inventariou um saber
sem ajuda das prateleiras da biblioteca
na sua opacidade inútil.

6
A fortuna está nos livros,
repetiu o filósofo
enquanto ninguém lhe dava atenção.

7
A praça estava deserta
na panóplia de silêncios
de que é fautora a noite.

8
Se ao menos um livro
viesse conhecer a noite
traduzia a audácia em sabores.

9
São contemplativas as preces
menos para o sacerdote
que ferve à espera do manjar.

10
As mãos inscrevem-se nas flores
e perfumadas assentam o entardecer
na literatura experimental.

11
Não sabem nada, os turistas
a não ser emprestar mundo
à cidade que os recebe.

12
Do alto das muralhas
os rapazes admiram o rio 
só falta uma estrofe a desenhar os limites.

13
Da noite estimada
a coreografia de luzes
e a volúpia dos corpos.

14
Da alvorada anunciam-se os alicerces
por onde os cânones
interpretam os começos.

15
Desafiam-se as larvares consumições
as onomatopeias costuram as paredes
e os ascetas despem-se de pressupostos.

16
Tudo é nudez
em palavras e ideias
para ninguém ganhar vantagem.