30.12.19

#1326

[Efeito de Fohen]

Sem o remorso não havia a consciência. 

Força extinta

O espelho no rio
as flores todas avivadas
abertas no acolhimento do sol
balbuciam cantos literais
na sombra das pontes retalhadas.
O rio
não se coíbe
avança contra as marés escrupulosas
como se dançasse entre os rochedos
serpenteando a coreografia avulsa
mas triunfando
para gáudio dos arbustos menoscabados.
Talvez seja um simples bocejar
ou o corvo esquecido entre o nevoeiro
ou uma senhora idosa em contemplação
na varanda do seu esquecimento:

talvez seja
outra tanta coisa
afivelando seu penhor
e a corrente forte do rio, 
imune a qualquer sufrágio,
dita a sua lei intemporal.
Até que um menino
imberbe como o são os meninos
vaticina o rio puído 
mal se consume sua dissolução 
no mar sem tamanho.

#1325

Não é preciso ser vulcanólogo
para saber de erupções.

29.12.19

#1324


[Poder de contradição]

O vento a despentear
o mar ainda bravio.

#1323

Indeferimento da saudade,
se não consigo lembrar 
da posteridade.

28.12.19

#1322

[Faro]

Recruto o sal
pegamos nas mãos
e colhemos as laranjas selvagens.

27.12.19

Mostarda de Dijon

Mostarda de Dijon
lembro
a mostarda de Dijon
o talão mais parecido
com a invasiva alocução 
de não aceitáveis substâncias
(julgo).
Lembro
o que as lembranças querem
insubmissas
tutoras de sua própria vontade,
uma indomável vontade,
como indomável é a rebeldia
da mostarda de Dijon. 

#1321

O belo
efémero
pertinente
em oblívio.

26.12.19

Já é hoje

Hoje 
soube pela minha sobrinha infante
que já era hoje
quando deu pela aurora.

Perguntei-lhe,
na despedida,
quantos hoje faltam
para ser o próximo hoje 
em que nós vamos rever. 

Sentado na esplanada
com muito pouco para fazer
soube-me ocupado
pela descoberta da minha sobrinha. 
O hoje redescobre-se
quando sabemos que já é hoje. 
Estultícia
é deitar um hoje a perder
só por estarmos convencidos
que temos muitos hoje de crédito. 
Desgraçadamente,
e num laivo de excessivo otimismo
(ou de demência irracional),
nem contamos
que o hoje que é hoje
possa ser o último em crédito.

#1320

Mais ou menos
um atilho na dobra do verbo
a névoa que enfeitiça a paisagem.

25.12.19

#1319

Lançada a mão no abismo
e já ninguém fica à mercê
de suplicar: “quem me acode”?

#1318

A exclamação adversativa
arranca do lugar
os habitualmente impassíveis.

24.12.19

#1317

“Quem me acode?”
ouço a súplica incisiva e pungente
e ninguém mora em redor.

Nudez

Da nudez
retomo o alvor
a indiferença
o mel em rima
testamento pressentido
costura. 

À nudez
devolvo o corpo
sem um dia faltar
e na nudez
não coabitam demónios. 

Nudez em resguardo
a intimidade em segredo
as linhas desenhadas
na urgência do poder
esconderijo
santuário do desejo
o verosímil nome não datado. 

Na nudez
nado
em águas revalidadas
faço a maré
sei-me nado
no avesso de modas
e da infecunda bandarilha
dos escanções do deslumbramento. 

À nudez
o medo se em público
feitoria de pesadelos
e o recato do corpo
fronteira que é viveiro de limites
onde forasteiros não têm pátria. 

Dou à nudez
os poros avivados
os versos lendários
uma guitarra aparatosa
o cais em espera
o vagar do tempo sem pressa
os mares todos recolhidos na mão
o torso arqueado sobre a alcateia
e o lenticular espelho das coisas disformes.

23.12.19

#1316

Não era o vespeiro
o banal berço dos nascituros;
esse estava ajuramentado
para a idade da lucidez.

Malmequer

De resto
arborizei a planície
com o mister de esconder
a impudicícia. 
O resto
dardejei sem penhores
os caudais fartos que batiam à porta

(com exceção 
das liturgias pespegadas
por espalhadores de fés variadas).

Abria janelas
à espera da linhagem do vento
e esperava,
esperava que não fosse albergue dominante
o da noite vultuosa
o imerecido destacamento da fúria,
estes comezinhos sentimentos. 
O resto,
de resto,
amaciei com a saliva
deixando à mercê das sílabas
da métrica articulada na cama dos versos
destituindo o coma dos sentidos. 

#1315

Digo: 
martelo pneumático
a voz percutida mais parecendo 
o efeito mostarda de Dijon.

22.12.19

#1314

A custódia da matilha
(em vez de um mal maior).

#1313

[Compêndio do desmedo]

Pega-monstro.
Paga o monstro.
Pega no monstro.

21.12.19

Valado

A data pela metade
no poço dos mouros
amuralhado na manhã invernal
e o prefácio ensarilhado nos nomes.
Bastava um grito;
um grito pujante
como a trovoada
para fazer do rio um gigante sem freio
e de cada palavra na boca 
os lagares onde se cozinham
os melhores versos.
Do labirinto
veem-se as ameias gastas
e os olhos descansam no parapeito do luar.

#1312

Folheias as páginas do jornal
ficas com os dedos amarelecidos
com o mundo que não gostas de ver.

20.12.19

Abrigo

Não posso pegar
nas dores do mundo. 
Não quero
que contaminem o meu regaço,
não lhes dou tutoria
no venal recobro das almas 
sem paradeiro. 
Não posso
saber dos transvases 
que vociferam verbos irados
e das pálpebras deitadas ao vento.
Retomo a paciência
o tomo secular, 
enciclopédico,
o dicionário que ensina a estima
o olhar selecionado
a palavra que não é destinada 
a um lugar vão.
Não quero
ser constituído algoz de mim mesmo
e prefiro que o avesso da memória
se demore num lugar intemporal
onde as cores se confundam com palavras
e por eito
sejam verbos constantes
miragem dos ocasos sem lugar
a esplêndida estatura por onde se mede
a atalaia do festim que há 
na semântica de um nome.

#1311

O estuário
cobra a portagem
das mansas águas 
o santuário que derrota a angústia.

19.12.19

Wrongdoing

É dos manuais:
a lisura dos estetas
contra a infecunda fala
e dos equívocos em barda
não se consta
que haja penhor por perto.
Se aos lustros pedem conselho
e do cognitivo mear ficam devedores
não se compromete o erro por assinatura
o tear onde se tece 
o avesso do que haveria de ter sido.
Preceito de todos os males,
a precisão do erro
tem medição
só depois de ter sido 
contrasteado como tal 
– como se fosse um ouro do avesso,
ou o avesso do ouro,
o seu porte como simetria do que haveria
na hipótese do des-engano.
Pois que se duvide
e com fundada legitimidade
que haja quem patrocine
e com intencionalidade
o erro metódico, sistémico.

#1310

Esta é a jangada que escolho
o miradouro atempado
na rosácea de vontade. 

18.12.19

Agente à paisana

Era como ir a uma loja de guloseimas
e nós
tomados pela passividade dos desinteressados
indiferentes à mercadoria.

Era como temperar com fogo
a combustão implacável do vulcão
deitando-se sobre as nossas peles
e nós
hipotecados pelo inverno alinhavado
embebidos na fuligem das cinzas
mordendo os corpos em ebulição.

Era como lacrimejar no apogeu da angústia
e nós
consumidos pela melancolia sem razão
fugíssemos do cais impreciso
onde reluziam os néones refulgentes.

Era como beber um vinho encorpado
dando as bocas ao desejo insondável
o desejo como lava subindo pelas paredes
e nós
tementes apenas da convocatória dos prazeres
suseranos das coisas entronizadas.

Era como saber não fingir
E nós
Atores à paisana, 
sem palco
senhores das nossas palavras
fortalezas sem acesso ao fora de nós
cinzelássemos as fronteiras sem limites.

Era como povoar um lugar mudo
e nós
penhores de todos os silêncios
disséssemos as palavras altas
sem recusar os proventos da ternura.

#1309

Sem medo da usura do medo
os olhos cravados no luar do devir.

17.12.19

Um fresco sobrevoando o tempo hodierno

Sei-o bem
é da ordem do mítico
o santuário
onde sereias e dragões
concebem criaturas hediondas
híbridos
em que o pior das partes
é um sincrético califado,
o eixo pútrido de todas as coisas. 
Investem os medos contra os inocentes
e em vagas cimentadas a ira
os lençóis descidos sobre a frágil condição 
os Homens assim despojados
à mercê
dos punhais impiedosos
da descendência de sereias e dragões. 

Vejo este pesadelo em horário diurno
em pleno gozo de faculdades cognitivas
em desfiles hediondos
cúpula do prazer dos plumitivos
enquanto os atores a preceito
se saciam na inofensiva bulimia
dos que são 
crentes
sem saberem como.

#1308

O céu púrpura
de meus olhos centelha
à espera da noite espartana.

16.12.19

À hora certa

De repente
os pássaros calaram-se
e ficou o navio,
galante,
visto desde a proa,
sem se adivinhar o destino 
– sem marinheiros à vista.

As comodidades da vida
são um disfarce
as pessoas sem tirocínio
para as empreitadas encavalitadas 
– um logro que devia ser julgado.

Os pássaros calaram-se
(não sei se já foi dito).
E só se ouvia
o estalido da noite
noite fora
percutindo na tela da memória
como se a memória fosse a mnemónica 
– de um oráculo sem nome.

Diziam, 
as viúvas,
que em tudo há um escárnio lazarento.
Mas isso eram elas,
as pobres viúvas,
que teriam muito a aprender
com os pássaros que emudecem 
– à hora certa.