24.3.20

#1443

[Crónicas do vírus, XI]

Já se ouve,
em lamento:
este ano
metemo-lo 
num grande parêntesis.

Reino

De um punhado de areia
a janela ampla sobre a varanda
e à maré fui roubar a ternura das mãos
levedura do peito cheio onde repousas.
Dei-te a chave
o rosto frio à espera da boca
os lábios que eram sôfregos mastins do desejo.
O meu corpo
a página interminável em que te demoravas.

Dizias:

“não precisamos 
de conjugar o verbo no passado.”

E eu concordava,
concordava
que haveríamos de inventar um tempo verbal
na semântica que fosse rima nossa
e à janela voltaríamos
só para pesar as ondas do mar
e contarmos os gramas de sal 
de que era feita a maré
e à lua tardia 
encomendarmos a gramática sem critério
o estuário onde andaríamos de mão dada
ocupando o leito todo
sem espaço para o demais.

A varanda
vertida sobre a janela ampla
cobra o preço da areia a rodos 

– e já empregamos o verbo no presente –

e sabemos
com a inteireza do sangue convincente
que de nós procedem as orquídeas avençadas
o poema salvífico
o nutriente incalculável
o salvo-conduto do instinto sem freio
maresia em sonhos petrificados.
Pressentindo a aurora
o altar da consagração dos amantes.

#1442

[Crónicas do vírus, X]

As milícias do punho forte 
e da moral à prova de tudo
precedendo
o bastão da polícia de choque.

23.3.20

#1441

[Crónicas do vírus, IX]

O medo
emprestou-se ao medo
em sucessivos novelos
de medo.

Equações dispersas

A meação
de um pé-de-meia
não chega a uma quarta parte
de uma poupança.

A menção
a uma monção
não chega a dois quintos
de uma tempestade.

A mostra
de um corpo à mostra
não perfaz sequer um oitavo
de uma nudez.

A maldição
da má dicção
não representa três sétimas partes
de uma perturbação da fala.

A madurez
de um má rês
não sinaliza se não cinco sextos
de um mau feitio.

#1440

[Crónicas do vírus, VIII]

Os dados deitados ao porvir
por medo do presente.

#1439

[Crónicas do vírus, VII]

Amanhã
enquanto houver outro amanhã
para sair do sequestro do hoje malsão.

22.3.20

#1438

[Crónicas do vírus, VI]

Reinvenção,
fala-se de reinvenção.
Ou de distopia.

Desconvocatória

Amarrei o mandato
ao lingote das dunas
a musa não processada 
no estio das vinhas.

A fúria sem remissão
arrancou os verbos
e no armário gasto
amanheci em maré pródiga.

Dizia o mealheiro
que o devir não compensa
antes que seja cumprida
a enciclopédia do possível.

Não concordei com o propósito
com os sacerdotes da desimaginação
e em imaterial demanda
supliquei do sangue a ambição.

Na varanda da comiseração
desfilavam os miseráveis
desdentados e tudo
e eu sabia-os empenhados à mofina.

Da acusação de ilegitimidade
padeci durante um lustro
e não me importunei
pois os acusadores seriam suas vítimas.

Em vez do mandato
escolho as uvas doces
gatos rebeldes
e o murmúrio amado no torpor da manhã.

#1437

[Crónicas do vírus, V]

Quarentena
Quarenta, ena.

21.3.20

Boca

Na boca impossível
fragmentos da liberdade
coabitam na coreografia mundana.
Mundanos
não somos todos
nós?
Neste campo trivial
não se alojam profecias
o úbere cansado de adivinhos sem rosto.
Quem são os oráculos, então?
Na sala em forma de labirinto
rareiam as ajudas
uma espécie de oxigénio rarefeito
em altitude,
a mesma altitude que é a estatura abissal.
Os escafandros estão de lado
e o mar pode esperar.
Na boca improvável
toda uma fala por dizer.
Toda a noite por andar
nas ramificações dos sonhos
que se desmembram em sonhos outros
um ponto-e-vírgula perplexo
sem sincopadas avenidas por perto
sem druidas escondidos no avesso das mãos.
Na boca visível
a saliva métrica
o suor molecular
e os poros abertos
sedentos
entoando a aventura corpórea.

#1436

[Crónicas do vírus, IV]

Aos exacerbados espíritos:
evitem o penhor
dos retalhos em que vos é servido
o medo.

20.3.20

#1435

[Crónicas do vírus, III]

Até a primavera se lamenta
num pranto que é a chuva.

Troca-se fio da navalha por corda bamba

Da empreitada se diz:
o fio da navalha
em não madraços novelos do tempo
os olhos esbranquiçados 
no tabuleiro sem vidas a mais
em caução do desacerto.

Povoam-se medos
nos modos sepulcrais
anátema dos fracos
vultos sem linhagem
em fortes meadas de um fumo escolástico
os pirómanos sem sossego.

Atribuem-se comendas,
os estultos da moda,
e deixam-nos,
aos peões sem paradeiro,
a vaidade da lhaneza.

Se é isto o fio da navalha
prefiro saber
como é a corda bamba.

#1434

[Crónicas do vírus, II]

As casas,
metamorfose
de prisões voluntárias
(um oximoro das circunstâncias).

#1433

[Crónicas do vírus, I]

A desumanidade em maré alta
as pessoas
fugindo das suas imediações,
uma certa escatologia em levitação.

19.3.20

Caso perdido

Não segui a partitura:
por modéstia de pensamento
e irrisórios defeitos interiores
não pude acolher 
o magnânimo batistério
onde se agilizam trincheiras,
o inescapável timoneiro de lança certeira.
De tentativas esforçadas
não posso dizer que passei à ilharga:
há um lado obstinado em mim

(pagava a minha fortuna inteira
só para dele ter paradeiro)

que parece contra mim conspirar
uma certa levedura bolorenta,
talvez,
a irremediável muleta da contumácia
uma rebeldia só por ser, 
sem causa que não seja
a rebeldia só por ser,
um mosto fora de prazo
que de mim faz personagem atávica. 
E, pior ainda,
não consigo ficar refém de insónias
nem as masmorras da má consciência
me aprisionam numa excruciante aflição,
nem passo o tempo afogueado numa angústia,
a angústia de estar numa valsa a destempo
e ser de mim o meu próprio par
afinado pela ímpar coreografia
inempenhável criatura 
à margem de conversão.

Já estive mais longe 
de me convencer
que era um caso perdido.
E nem assim
terço a mínima comiseração 
como almofada do arrependimento, 
impassível perante ventos tão heurísticos
e a paleta de cores impecável
que se embebe na perfeição do palco.

Oxalá fosse vendilhão
e soubesse como se arqueia o sal do ser
às mordomias e às sinecuras 
sem prazo de validade.
Estou ciente dos meus limites:
sou um caso perdido.
Daqueles casos perdidos que, 
em abono do cúmulo da insolência,
não clamam por piedade
e se arrebatam
com o palácio da decadência
a que estão destinados.

#1432

Renuncia ao epicentro,
que a dança da loucura
não perde a véspera.

18.3.20

O mimo sem mimo

Um mimo:
declaro aberto o circo sem feras
o estendal das viúvas
e de suas línguas encenadamente viperinas
veneno em que foi vítima
o mimo.

O mimo
não está pelos ajustes.
Esperneia
vocifera os impropérios
que superam o património conhecido:
sua já não é a função
e todos os aprendizes
e os bastardos do humor
deixaram-no sem chão.

Os demais
que circunvaleiam em pesadelos maiores
por causa de mimos desta lavra
agradecem o mimo da tardia reforma 
do mimo despenhado na desgraça.

(Em que 
desgraça
é a doença dos que perderam,
ou nunca encontraram paradeiro,
da graça.)

#1431

Habita 
no avesso da manhã
o beijo diuturno.

17.3.20

#1430

Guardei o &
para os botões de punho 
e as mangas d’alpaca da contabilidade.

Hibernação

Não é na incontinência da História
que repouso
o meu rosto sereno.
É outra a filigrana que importa
o mosto breve mas marcante,
a falésia antes do mar
farol afidalgado na pertença abnegada.
Outros serão os tempos
a eternidade malsã em chapéus de pelúcia
e a modernidade gasta,
antes do tempo,
antes de ser o que não vim a ser.
O março algemado 
é a preposição do testamento sem escrita
o invulgar tédio 
disfarçado de responsabilidade.
Março sempre foi um marco.

#1429

Dos escombros
lá onde a medula se aninha
saberemos descobrir o heurístico lugar.

16.3.20

Princípio da reparação compulsiva

Não encerrei os portos difusos
na aguarela vasta em que repousavam
os olhos sem sono. 
Os dedos viajavam pelos ponteiros
e os minutos não perdiam o rumo das horas
por mais que a teimosia quisesse abrandar
os cais por onde os marinheiros se saciam
de terra firme
e de corpos.
Era o incenso 
que se debatia nos fósforos amarelecidos
e não havia lareiras a tempo 
dos comboios sem paragem.
Ao menos
do paradeiro não sobrava escolástica
e não precisei de epifanias
para esconjurar divindades sem prestígio
(que são todas elas).
Amanhã
trago ao peito a luz diametral
o dinheiro sem nome
os rostos sem nome
até os lugares sem rosto nem nome,
pedestais sem miradouro
um periscópio ubíquo.
Pode ser que sejam inventados 
os verbos liminares que abrem as portas
e dos limões ancestrais afinem a gramática.

#1428

A heráldica
não passava
de uma onomatopeia.

[Do lugar que ainda pajeia
atavicamente
reis]

15.3.20

O catedrático falhado

Nunca teve melhor propriedade
dizer-se 
que a nódoa cai no melhor pano
quando um catedrático 
todo ufano da sua catedrática condição,
convencido que é um intelectual público,
cai na armadilha no idioma ardiloso
e não hesitou em escrever “exito”
quando queria dizer “hesito”.
Esclarecimento em jeito de remate:
o idioma é o melhor pano.

#1427

As sereias vendadas
pilotam o nevoeiro ribeirinho
que levita na madurez da manhã. 

14.3.20

Os gongóricos

Corta caminho pela anamnese
o cintado perímetro onde têm aval
os bizantinos boletins dos hunos deste tempo. 

Acerta as mãos com o sol-medida
desconfia das impecáveis verdades
pois sabes que das refutações 
colhes o ouro tingido de ouro
e não os disfarces que aformoseiam
os imperativos sem reserva de dissidência. 

Compõe a gramática que cabe no pensamento
e não fiques à espera
de conselheiros embebidos em sabedoria
que desses só podes esperar 
logros com acabamentos perfeitos,
o que em tempos de antanho 
seria cunhado como
banha da cobra. 

13.3.20

Instalação artística

Sou o lápis que desenha
os mapas de quimeras
no teu dorso trémulo,
vitamina sem paradeiro
rédea solta no meridiano de ouro
à espera do chamamento
à espera
do vulcão sem freio
da boca empenhada
das bocas que se tumultuam
à espera
de fazer jus 
ao santuário que de ti fiz
rainha coroada nos meus dedos quentes
para das noites sem medo,
diligente algoz da vulnerabilidade,
erguer o cálice
de onde a seiva se ordena
num pulsar torrencial
desenhando outros mapas
no teu trémulo dorso.

#1426

Ouvia o verso, na música:
We had to get through”.
E pressentiu
que podiam atravessar
todas as paredes.

[Tindersticks, “Rented Rooms”]