19.3.20

Caso perdido

Não segui a partitura:
por modéstia de pensamento
e irrisórios defeitos interiores
não pude acolher 
o magnânimo batistério
onde se agilizam trincheiras,
o inescapável timoneiro de lança certeira.
De tentativas esforçadas
não posso dizer que passei à ilharga:
há um lado obstinado em mim

(pagava a minha fortuna inteira
só para dele ter paradeiro)

que parece contra mim conspirar
uma certa levedura bolorenta,
talvez,
a irremediável muleta da contumácia
uma rebeldia só por ser, 
sem causa que não seja
a rebeldia só por ser,
um mosto fora de prazo
que de mim faz personagem atávica. 
E, pior ainda,
não consigo ficar refém de insónias
nem as masmorras da má consciência
me aprisionam numa excruciante aflição,
nem passo o tempo afogueado numa angústia,
a angústia de estar numa valsa a destempo
e ser de mim o meu próprio par
afinado pela ímpar coreografia
inempenhável criatura 
à margem de conversão.

Já estive mais longe 
de me convencer
que era um caso perdido.
E nem assim
terço a mínima comiseração 
como almofada do arrependimento, 
impassível perante ventos tão heurísticos
e a paleta de cores impecável
que se embebe na perfeição do palco.

Oxalá fosse vendilhão
e soubesse como se arqueia o sal do ser
às mordomias e às sinecuras 
sem prazo de validade.
Estou ciente dos meus limites:
sou um caso perdido.
Daqueles casos perdidos que, 
em abono do cúmulo da insolência,
não clamam por piedade
e se arrebatam
com o palácio da decadência
a que estão destinados.

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