6.6.20

#1610

[Crónicas do vírus, CLXXXI]

Quando estavam em casa
as pessoas só ouviam
house music.

5.6.20

#1609

[Crónicas do vírus, CLXXX]

No império das máscaras
(perenes?)
lay-off para o curador
das expressões faciais.

O mar das miragens

Levanta-se o vento na gárgula derruída.

As lamentações correm contra o sol
e viúvas sem perdição
convocam os deuses
lembram-se de tempos salientes
da coabitação num casulo imberbe
do tempo que foram perdendo
que não é do posterior ao enviuvar.

Levanta-se o vento que cicia verbos vãos.

Há nos chapéus de cerimónia
a negação da cerimónia
por visível demissão da estética.
Se ao menos se conservasse a memória
e dela desemudecessem os falantes emparedados
não era preciso estafar os dias em viperina língua
adormecer a perguntar se era por fim.

Um piano insubmisso justapõe-se no céu decadente.

Só se ouve o silêncio parado na sua marcha 
por episódicas sílabas dos pássaros passeantes.
Nada disto interessa à viuvez.
Sabem as respostas todas
a condoída mágoa servida nas abas da injustiça.
Se ao menos o vento recuasse
se fosse de soprar de trás para a frente
podia o tempo gasto ser resgatado
e os consortes levados em braços pela morte
estariam impecavelmente esperando
sedentos de palavras e de sexo
à sua sorte amada.

Disto trata o retardamento da morte das viúvas.

Mas o vento não passa da gárgula derruída
isolando as paredes encardidas com fungos literais
sem notário das esperanças das enviuvadas.

#1608

[Crónicas do vírus, CLXXIX]

Não é o carnaval
nem os caretos de Podence;
são as máscaras
perenes?

#1607

[Crónicas do vírus, CLXXVIII]

E agora
que o desmedo se entronizou,
a um passo da extravagância
(outra vez).

4.6.20

Dó menor

O vocábulo pristino
capricho insanável
do deboche sibilino
no cárcere improvável
em catálogo uterino.

O vaguear vendável
desembaraça o caprino
e do olhar formidável
o verso intestino
em página involúvel.

Sem teto sistino
porfia-se o realizável
desafiando o cabotino
em seu mapa penhorável
contra o bafo suíno.

#1606

[Crónicas do vírus, CLXXVII]

Quem define a mentira
se a mentira se esconde
atrás de uma máscara?

#1605

[Crónicas do vírus, CLXXVI]

Um festival
de cancelamentos.

3.6.20

A mão com emenda

“Emendei a mão”,
disse
entregando-se à súplica,
o fermento do arrependimento.

Não se via emenda 
que fosse de ver:
a mão continuava como era
e sem cicatriz tatuada
não podia certificar a súplica.

Insistia:
“emendei a mão, acredita”.
Continuava a esquadrinhar a mão
em demanda de cicatrizes demonstrativas
sinais exteriores de uma emenda à mão.
Não foi por défice de atenção
ou por fragilizada inspeção:
a mão não tem emenda
(disse,
sendo logo treslidas 
as minhas palavras).

Talvez fosse a mão errada
e a outra 
– a que mostrada me não foi – 
a penhora da emenda.

Já não fui a tempo.
Mal a mão sem emenda foi cartografada
o seu detentor virou costas,
ultrajado,
deixando-me preso 
ao silêncio não inocente.
O silêncio que não se cura
com tatuagem.

#1604

[Crónicas do vírus, CLXXV]

Nada 
foi adiado.
Já tudo
estava adiado.

2.6.20

#1603

[Crónicas do vírus, CLXXIV]

A saliva da maledicência
nunca perdeu
êmbolo.

Distância

Não é muita a comoção
nem a rendição arregaça mangas
que do opúsculo achado no alfarrabista
devolvo a mim as palavras em olvido
pétalas sarcásticas que chovem na aridez
e denunciam os apetrechados mastins
da gongórica oração.

Não é muita a ilusão
nem a profusão de manhãs sem alecrim
que no teatro do olhar resgatado a um anão
transcendo os poemas em levitação
frutos oníricos que maduram na planície
e convocam os adestrados sacristãos
da protuberância irrisória.

Não é muita a mistificação
nem a calcificação arremata certezas
que na plateia destronada por teimosos
ideio os socalcos que desenham as almas
navios alinhados no horizonte mareado
e patrulhas dos faróis vigilantes
da folclórica persuasão.

#1602

A reaprendizagem
dos rituais.

1.6.20

A gravata do tempo

É quando apetece
dar uma gravata 
ao tempo
estrangulando-o civicamente
para que não seja embaraço 
– as vezes
em que à boca sobe
a sede do intemporal.

Também há tempos
em que apetece aliviar a jugular
libertando o tempo
da gravata que é seu ornato.

Quem disse
que o tempo
é uma medida objetiva?

#1601

[Crónicas do vírus, CLXXII]

Já não constam
do porvir
as miragens sem sede.

31.5.20

#1600

[Crónicas do vírus, CLXXI]

Os milagres
são 
efémeros.
(Ao que parece.)

Banha da cobra

Reservo uma constelação. 
É de um lugar assim exíguo
o templo para respirar
da pele que arquiva os esgares do mundo. 
Das mãos troveja um crepúsculo
que protesta contra a ciência vaga:
dizem
o saber é uma arca acessível
onde todos têm paradeiro;
não tenho por hermenêutica
ciência desta linhagem,
mais me parece um pardieiro.

#1599

[Crónicas do vírus, CLXX]

A pandemia inspira
música, contos
e poesia.
(Autorreferencial.)

30.5.20

Animália

(Sem ofensa aos glosados)

Nos dias de bondade
a indulgência apresenta-se ao serviço
a favor dos da fala de contrabando.

Ao perorarem
nem a meação das intenções
se extrai das suas falas.

Muito se leva destas falas
em aprendizagem:
é noviça a semiótica
e os bezerros 
o mais que conseguem
é um urro imberbe.

#1598

[Crónicas do vírus, CLXIX]

Regras
Regras
e mais regras.
Que disse 
que não havia vencedores?

29.5.20

Desvirtudes

Às vezes
apetece
            apneia
uma absolutaMENTE
verdade
            daquelas
                        com brinde.
Ou um filme
            apoteótico
                        contra
a MURAlha
            do fingimento
                                   alçado.
Ou então
            um sorvete
                        de melão
apimentado
            na tela fosca
                        da luxúria.
Na dúvida
            aposto
                        na carne.

#1597

[Crónicas do vírus, CLXIII]

É o tempo
das vozes embaciadas
atrás das máscaras.

#1596

[Crónicas do vírus, CLXII]

O precipício
foi precipitado
ou a prevenção
foi premiada?

28.5.20

Equação

Dou do pedestal
o ângulo aberto
verbo ocasional
em maresia tornada
visível.

Escolho o dia
na penhora da boca
dado à mão tua
castelo de sonhos
dourados.

Matriculo o nome
nas arcadas do rio
à mercê dos acasos
em estrofes sabiamente
costuradas.

Revejo o porvir
pela escotilha do desejo
na bússola do teu corpo
em marés insubmissas
irrazoáveis.

Dou da fala
a sílaba cantada
coloquial poema
no espartano papel
reservado.

Sou do rosto aveludado
a matriz do jogo sem preço
proverbial artesão
de ânforas para o vinho
ametista.

Escuto o rumorejo
o avesso da palavra ínsua
e destrono os pesadelos
à custa da medula
ímpar.

Dou de mim a lava
os braços sem cansaço
a loucura agrilhoada
em centos de páginas
esmaecidas.

Dou de ti este amplexo
o cabaz fecundo
um relógio sem rosto
aroma de sementeira
incansável.

#1595

[Crónicas do vírus, CLXI]

Em vez da desconfiança
a escada para a liberdade.

#1594

[Crónicas do vírus, CLX]

A distopia
não atestou
o apocalipse.

27.5.20

#1593

[Crónicas do vírus, CLIX]

O barómetro da (ainda) inatividade:
uma quarta-feira de praia
como se fosse domingo.

Epístola

Não.
Não tenho.
Não tenho a certeza.
Não tenho a certeza do meu.
Não tenho a certeza do meu percurso.
Do meu percurso sem certeza.
Percurso sem certeza.
Sem certeza.
Do meu.

#1592

[Crónicas do vírus, CLVIII]

Reféns de um presente suspenso
lambemos as arestas do passado.

26.5.20

Cavalares

Este é um cavalo de batalha
a representação gregária do ditado fundido
maré que dá cobertura
às imensas possibilidades
no terreiro onde se terçam as emboscadas.

Este é um cavalo de Troia
coisa específica dos peritos informáticos
agente conspirativo que se insinua
nos interstícios da fala acomodada.

Este é um puro sangue lusitano
para gáudio das namoradeiras
que se emprestam à volúpia.

(Que não seja evocado
o cavalo branco
por decência democrática.)

Este é o aroma a cavalo
modismo ecológico do banho ausente
que a água escasseia
e os odores naturais da epiderme
são tributo à natureza.

Este é o cavalo a que não se olha o dente
prodigalidade asceta
no teatro intemporal das oferendas
(e mandam os cânones da boa educação
que uma oferenda não se enjeite).