[Crónicas do vírus, CCXXVIII]
A semântica
em rota de colisão
com a matemática.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Amolecem os mercadores
antes que sobejem as invetivas
ou o marasmo sem chave de segurança.
Os nós atam-se na fortaleza
e somos nós que os desembaciamos
com a ajuda de uma matinal neblina,
o sucedâneo da massa consistente,
que tem mais poderes do que uma batina.
Não é lavra ser engenheiro
nem os planos exigem matemática forense:
projeta-se o entardecer
no relvado de que é sobranceira a varanda
e a pauta fornece a música
sem critério.
Oxalá não seja tarde
e que as engrenagens
não sucumbam à ferrugem
para ser marinheiro em praça forte
e do livro empunhado
legar
em voz exata
um poema nada homérico.
[Crónicas do vírus, CCXXV]
O termostato da esquizofrenia
nunca esteve tão fervente:
nada está bem
mas tudo parece que sim.
O manifesto em marcha-atrás
a alcachofra acabada de gratinar
(depois de recusado o acesso
ao armazém dos escuteiros)
batinas exigindo beija-mão
em locupletadas avenidas
onde se reverberam
os anões disfarçados de pimpões
e os curas que abençoam
ábacos de bom comportamento.
Recria-se um adeus:
diligentes,
os atores ensaiam lágrimas
e amplificam as estrofes
de-vi-da-men-te si-la-ba-das.
Ah,
se na toca dos meãos
houvesse fermento de padeiro
e à massa crítica fosse vertido
deste lugar dir-se-ia
um esplendor de eruditos
um arrojo de tecnologia avançada.
Mas a marcha-atrás
depois de engrenada
é difícil de derrotar.
[Crónicas do vírus, CCXXIV]
Quem disse
que a normalidade era miragem
se voltámos a ser
os patinhos feios da Europa?
[Crónicas do vírus, CCXXIII]
É como nas corridas de bicicleta:
no início, o fôlego todo
e depois
ultrapassado por quase todos.
A obra
foi escrita
a quatro mãos.
Só se for
na era dos computadores
se não
eram quatro os autores
a menos
que dois fossem os escreventes
e ambidestros fossem.
De outro modo
fica provado
(expressão idiomática:
à saciedade,
como diria
a nata da burguesia portuense)
que os tempos
são a transfiguração
dos usos.
Estes ovos
não se fazem
sem omeletes.
Podia ser um breviário do surrealismo
com quadros de vison
em baixela de fundo,
um canapé fumado com dedo mindinho,
ou um fundo sem pé
estiolando a toponímia para dar fundo
(ao critério do leitor:
sobre o atlas local
nos arrabaldes da capital cidade,
ou sobre lúbrica matéria).
Revendo a matéria dada:
estes ovos não se fazem
sem Hamlet.
O conspícuo saleiro
vertendo azotados cristais
na prebenda da culinária de fusão
– ou então,
as braçadas de um engenheiro arrependido
só para ter como rival
a excelência entre as excelências
e na piscina sem muros
encontrar seu covil.
Não admira
que os olhos lancem fisgas
sobre a portela onde se agigantam as elites:
a suave, disfarçada decadência
vertida em maneirismos burgueses
é pergaminho de uns quantos,
um punhado apenas:
besuntam-se de uma franquia regional
que destempera um ódio falaz,
um ódio que é fingimento de inveja.
Eles
são os ovos
a quem falta omelete
e conhecimento de Hamlet.
Os campos contestam
o estado derruído dos dias constantes
em sua galharda harmonia
como se terçassem uma independência viril
contra o remoço dos apavorados meãos
que de seu nome tinham artesãos.
Se ao menos
o entardecer não se diluísse
na centrifugação dos verbos hábeis
e os melhores cuidassem do inventário do dia
haveria um travesseiro idílico por passagem
o troco certo contra a incúria
e ao pedestal viriam os magos sem disfarce
a porosa alquimia em remédio falante.
Bicicletas roubadas falariam pelos despojados
uma gramática sem padrão
numa compilação de casas avençadas.
O líquido recorrente
(incógnito)
atravessa uma meada dos campos
sem os destruir.
Não havia modo de importunar
o válido dizer em sua fala muda.
Os dados ultrapassavam o tabuleiro
e alguém protestava
contra o viés das regras
como se fôssemos todos ingénuos
e soubéssemos
que os códigos
são um diletantismo de um punhado
só por si
sem serem à prova de dissidências.
Não adornava a feição desconfiada
a meio do periscópio emergente,
o incansável feitor das obras sem gasto;
ele sabia
como era povoar o silêncio
com palavras desarmadilhadas
o vício imaterial escondido
em rostos impassíveis.
E mesmo assim
desemparedava as janelas promitentes
à espera de um luar modesto,
à espera
de um frémito apalavrado
no mosto da manhã
sobrepondo-se ao farto ciciar
dos pássaros
que selam a alvorada.
Não é assombração
a casa proeminente
alçada sobre um vão,
sobranceira ao vale.
Podia,
ao abandono,
ressoar um palco de fantasmas,
lendas que fruem
no céu-da-boca das fantasias.
A casa
está apenas emparedada
de ausente paradeiro.
Exibe a glória de antanho
como os impérios idos,
averbados para memória futura.
O colossal carrossel
desmente a demarcação
por muito
que uns putativos eruditos
escrevam
desmarcação.
É no parapeito da palavra
que sucumbem
ireneus com manias de intelectuais.
[Crónicas do vírus, CCXIV]
Começou
a corrida contra
os números
(pois não falam
o que deviam falar).
Revólveres frios
fogem do fogo castrense
antes que castrados sejam
homéricos parceiros
a carne para canhão judiciosa.
Que estátuas merecem amanhã?
Não se diga
que o ontem foi pródigo
em cascatas de medo
onde a chuva se cristaliza;
não se diga
que as juras tiveram eco
salicórnia a condizer
só para enganar maleitas habituadas;
não se diga
antes do adormecer
que sultões sem espada
perdoaram boémios
e a vastidão do mar se enamorou
do ocre pintado sob a égide do ocaso.
Que estátuas perecem
no punhal dos justiceiros sem nome?
Escutem-se os livros da História
antes que seja narrada uma história
que se agiganta num palco sem veios.
Dentro do espelho
não há raízes
apenas
o olhar límpido
desmatado de falas sombrias.
Nado por dentro do mar
colho o sal no sangue álgido
e nem assim
sou elemento inato;
dantes
o mar era juramento
e um gato enrolado no sono
mestramente súbdito do areal
onde bisturis metódicos se afunilam
sabe-se lá se à procura de tesouros
ou do ouro escondido nas próprias mãos.
Tiro o estibordo com a lente baça
e as asas desembaraçam-se do vento
em boa hora,
em boa hora.
Não fossem os heróis todos mortos
e a voz perdia o gongórico véu
para se somar à pastoril montanha
que desaparece na litania do horizonte.
Mas não sou viável cruzador
neste mar temperamental
não sou marinheiro
por medo tido por penhor
das náuseas matinais.
É em terra
que sinto o cofre
e da tua boca bebo o manancial
a língua que se enrola na minha
e os versos que sobem à crueza da pele
em remoinhos desalinhados.
Espero pela razia dos miseráveis
e não os tenho por materiais convenções:
os miseráveis
que se convocam na jactância
no solipsismo desarranjado
na vítrea fonte onde a água se empareda.
Até posso ser errante
que da minha transumância sou garante
em nome de um nome só
o nome que adoço na boca
quando
a boca tua na minha tem fusão.
Para depois
antes de todas as vésperas
antes
que as janelas sejam desfronteiras
e todo o vento carregado de adjetivos
esbarre nas nossas couraças
seja eu promontório.
O alto:
para que a maré
pare a tempestade.
[Crónicas do vírus, CCXI]
Há os velhos do restelo
(vem aí a segunda vaga)
e os novos do restelo
(está tudo de feição).
Reino mau
história sem meio
terra de um rio também mau
e de profetas esquecidos no céu da boca.
Reino mau
que das boas coisas
andam os ilhéus exaustos
como se por exauridos estarem
se reformassem os vidros da catedral.
E reino mau
que meãos são os reis e as rainhas
em sua decadente pose
por cada deca dente rasurado por sucedâneos.
É mau
o reino
por ser sucedâneo de coisa nenhuma.
Não deem vivas
à república
(antes que seja tempo).
Fosse o manjerico
disfarce de foice e martelo
o S. João seria rico
sem precisar de um apelo.
Mas não é S. João
fingimento do Avante
pois categórico não
recebeu do mandante.
E até um pobre dragão
obrigado à faina
falta à celebração.
Ó desditosa taina
adiada para futura estação
à espera da luz que amaina.