1.9.20

#1717

[Crónicas do vírus, CCLXXXVIII]

 

A nostalgia

estende-se à medida 

da memória derruída.

31.8.20

#1716

[Crónicas do vírus, CCLXXXVII]

 

Um estaleiro

virado do avesso,

ou o palco do fingimento

em proveito dos mandantes?

Batismo de morte

A espada não tem paradeiro,

embriagados os guerreiros candidatos. 

É o que narra a maresia

desfazendo o entorpecimento tardio

no rescaldo da boémia ilegível. 

As armas

fundeadas num cívico letargo

desembaraçam os sonhos 

– os sonhos que asfixiam

o sono doloroso dos guerreiros. 

Na varanda de uma pousada

(antes de açambarcada)

a penúria dos modestos estivera selada

num azulejo pendido sobre a janela. 

Os guerreiros 

perderam o paradeiro da sobriedade. 

Só sabem contar a vilanagem

e à sua conta

industriam o desenho plúmbeo

que só conta com personagens vultos. 

Ninguém sabe

que sangue vertem

nas veias da terra.

Só sabem

que infecta fica a terra

um sarcófago indigente 

onde não coabita a indulgência. 

#1715

[Crónicas do vírus, CCLXXXVI]

 

Um imenso estaleiro

de pernas para o ar

e as pessoas fingem que não.

30.8.20

#1714

[Crónicas do vírus, CCLXXXV]

 

Como um castelo de cartas

consumido

em sua fragilidade.

29.8.20

Rede de segurança

Era do tempo 

em que as palavras 

se aninhavam em mel. 

O rosto 

subia pelos dedos 

e as paredes 

despiam-se de medo. 

Talvez o entardecer 

seja a rima por onde entra 

o estuário. 

A melodia, 

trago-a na pele, 

à espera.

28.8.20

As rugas em forma de xisto

Já não lambia

as feridas;

só as cicatrizes.

 

Jã não era ácido

o sabor 

vindo à boca.

 

Sentia-se 

como um urso

fora das montanhas

e do mel arredado

uma orfandade disfarçada.

 

Ao menos

não se considerava

amestrado.

 

Não era

como os distintos, exemplares 

exemplares

puídos sem saberem

suas feridas baças

sob uma castração muda.

 

As cicatrizes

podiam ser olhadas

como tatuagens.

#1713

[Crónicas do vírus, CCLXXXIV]

 

As pessoas

não mudaram

só por os rostos

estarem embaciados.

(Hino panglossiano – bis repetita)

#1712

[Crónicas do vírus, CCLXXXIII]

 

Os rostos

não deixam de ser belos

só por estarem embaciados.

(Hino panglossiano) 

27.8.20

#1711

[Crónicas do vírus, CCLXXXII]

 

Ó mercadores de patranhas:

depois da teoria do milagre

salgam-nos com a teoria 

um passo atrás-dois à frente.

Desapressadamente

O templo do tempo:

imperadores bufos

dedicam-se à escatologia

e escrevem com a boca negra

o desmentido do sonho.

 

É o tempo que pede templo

para os apoderados sem remédio

verterem suas preces

(à falta dos reprimidos prantos)

e persistirem na sua oclusão,

recusando-se.

 

Ou:

o templo tem tempo

que o tempo não se esgota

na procrastinação dos mestres

nem obedece

ao fastio dos esquecidos:

melhor será

que se enxugue o suor do tempo

por dentro de sonhos gongóricos.

 

O melhor,

ainda,

é o tempo 

não ter templo.

#1710

[Crónicas do vírus, CCLXXXI]

 

Estes morígeros profetas

que nos apascentam

na sela da nossa distração.

26.8.20

Natureza morta

O país

da natureza morta

tem escondidos

os pais

das várias naturezas mortas.

Todos merencórios,

não vá o sal ingente

dobrá-los

sobre o peso do nevoeiro.

Já se dizia

em infusão sebastiânica

que um remédio

(se não um remendo)

seria o selo da posteridade.

A natureza

morta

continua à espera.

#1709

[Crónicas do vírus, CCLXXX]

 

Um campo minado 

– e é preciso indagar

sobre o (f)autor das minas?

#1708

[Crónicas do vírus, CCLXXIX]

 

Um campo minado 

– e não se sabe

quem fermentou as minas.

25.8.20

Madrigal

Não digas

“matar o tempo”

não vá o tempo

em braço de ferro

condenar-te

ao malogro.

Pois se eleges

este como o espaço teu

que saibas dotá-lo 

de uma cartografia.

E se em remissão

deres ornamento à fala

da gramática

cuida não haver dano.

Pois a gramática

é a cartografia da fala

e uma certa unção

do tempo.

#1707

[Crónicas do vírus, CCLXXVIII]

 

Máscaras

enquanto 

em espera

a vacina.

24.8.20

Bife tártaro

Uma espécie de bife tártaro:

sobre finas camadas

o fino pensar

que não se destina às águas pluviais.

Se o certo se toma por incerto

não é por contumaz lucidez.

Ora

se em vozes escamosas

as candeias forem acesas

não será por defeito:

eruditos

os lupanares exortam à esquerda

 

(aviso ao leitor:

sem conotação política)

 

e o guiador espera por incentivo

para saber para onde virar.

Não se esqueça

da mostarda de Dijon,

o precipício inesperado

para o reinventado manual

do bife tártaro.

#1706

[Crónicas do vírus, CCLXXVII]

 

De um leito semântico

o torrencial desacerto

das metáforas.

23.8.20

#1705

[Crónicas do vírus, CCLXXVI]

 

As celebrações

não importam.

(A menos que o fingimento

seja verbo fecundo.)

22.8.20

#1704

[Crónicas do vírus, CCLXXV]

 

O selo do tempo:

“tenho saudade de te dar um abraço”.

(Ouvido num restaurante)

21.8.20

Sobra de esforço

Arranquem-me o sal do tempo

façam cornucópias em vez de versos

abundem o dia com os rostos sibilinos

e encomendem

ao tempo pretérito

o peito pétreo onde se dissolve a angústia. 

 

Tragam à manhã as sílabas uivadas

no dorso de violinos fantasmas

e digam,

digam, 

como se não houvesse nada mais por dizer,

que não são precisos mastros

nem obeliscos matriciais

ou demónios em vão de escada 

para avivar a cal deitada nas cicatrizes. 

 

Pois da dor

cultiva-se

em forma de memória futura

a dieta em que medra 

o perene tirocínio. 

#1703

[Crónicas do vírus, CCLXXIV]

 

Quando se pede unidade

cancela-se a política

(e faz-se, surdamente, política).

20.8.20

#1702

[Crónicas do vírus, CCLXXIII]

 

Um bocejo da alma

no gerúndio

da transfiguração sem rosto.  

19.8.20

S. Lourenço da Galafura

Marcada à mão do Homem, 

a moldura do xisto 

afinal permeável. 

 

Sobra à paisagem 

a pauta imorredoira 

do tempo 

que não se cansa.

18.8.20

#1701

[Crónicas do vírus, CCLXXII]

 

O medo

traduzido na decrepitude

da condição humana.

17.8.20

Pendente

O dente de leão

já não morde.

O ocaso miscigena-se

na noite.

Os versos emprestam-se

a outra latitude.

O inquérito

procura respostas.

Há um odor a suspensão do tempo

enquanto os touros agradecem o caos

e os usos regressaram ao internato.

Ah!

Se ao menos os pontos de interrogação

não fossem facas desvairadamente espetadas

se a criação do tempo vindouro

não estivesse hipotecada às algemas

dos viciados nos costumes

se os verbos não fossem uma imagem puída

se os trota mundos 

bebessem a seiva dos lugares 

e não guardassem para si o fim da função;

se ao menos

o menos não fosse um modesto pecúlio

e do módico houvesse farta safra,

os lápis desenhavam os deslimites de tudo

e os sacerdotes compungidamente pesarosos

lamentariam

“os tempos foram à diferença

e nós não conhecemos esse molde”.

E o fim de tudo

não seria um fim em si mesmo

mas a exegese das almas infrequentadas

o tirocínio permanente

a dúvida finalmente metódica

e as palavras desembrulhadas 

num creme de pasteleiro reinventado

para gáudio

dos eternamente crianças

dos que não se escondem 

da matriz das interrogações em contínuo.

 

#1700

[Crónicas do vírus, CCLXXI]

 

Como a névoa 

que se abraça ao estuário

a palavra entorse 

no viés do futuro.

16.8.20

#1699

[Crónicas do vírus, CCLXX]

 

Das bocas embotadas

palavras (pela) metade.

15.8.20

Comoção cerebral

Entro no sal do mar

a água vencida no dorso

por entre sereias inventariadas

na boca da espuma

e um beijo tirado no acaso.

Durmo 

com a voz do salitre

a murmurar nas costas do sonho. 

Levito as mãos simétricas

pode ser que saiba escrever

o nome do mar. 

Enquanto espero

que o mar ganhe um nome

tomo as sílabas dos versos noturnos

o diadema inesperado dos druidas sem rosto. 

Sem rosto,

os druidas,

como sem nome, 

o mar 

– e ambos desatam a combustão

em que se dissolvem

num mapa embebido em nomes.