[Crónicas do vírus, CCCXXII]
O mosto lavrado no medo
enevoada tença
dos dias mudos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O pequeno barco
inunda o rio
na presença do entardecer.
À proa
o comandante apessoado
arruma o dia
no fusível dos arquivos.
Sabe lá
os nomes dos passageiros
enredado na urdidura da navegação
serpenteando entre boias
que mapeiam os rochedos
submersos como armadilhas.
Nem o manifesto lê,
o comandante;
não quer saber
dos nomes
a não ser
da parafernália
que habita a casa das máquinas
dos cardeais cartografados
e dos que se hasteiam
na sua privativa bandeira de consumições.
O que importa
é o lugar seguro no cais
à espera do navio
e a palavra de conforto da consorte
quando a noite se acende.
Seguro o passaporte
na véspera do dia surdo
e sou
eu mesmo
a bandeira que voluteia
num esgar do espaço.
Seguro,
que os sismos nascentes
sobressaltam as veias
e da miríade de paisagens
na retina aconchegam-se
as aleatórias.
Este é o fado da identidade
o grosseiro erro de estimativa
de que mestres de escola
e outros supinos educadores
fazem códigos de instrução.
Na mealha da minha boca
um decálogo imprudente
(dirás)
matéria involúvel ao tornado divisa
o enxerto sem vestígios dos sequazes.
Na minha boca
os verbos impróprios
a teia
(dirás)
quase gongórica
uma gramática sem paradeiro.
O pulso lento
desponta no sangue inteligível:
desconheço
de que matéria sou feito
a não ser
da modesta ambição
da invisibilidade.
O jogo sem calendário:
ausentes espíritos,
como que almas desmaterializadas,
os contendores rivalizam
no amparo da sorte,
desdizendo capacidades,
entregues ao ópio do acaso.
Escondem o jogo:
viabilizam ardis,
na soez ufania dos ardis,
contabilizam os ganhos
no avesso dos rivais
desejam-se iracundos azares:
outra vez
sofismando a confissão das incapacidades.
O jogo não tem regras:
fazem-se e desafazem-se
no reto direito dos poderosos
os que por entorse
a si chamam o império;
até que destronados sejam
por opoentes,
tão irrisoriamente fátuos quanto eles,
e tomem as rédeas das regras
só à espera que voltem a ser
morta letra.
O jogo inviável:
quem protestou a obrigatória demanda
a ferocidade dos passos artilhados
as armadilhas bajuladas
o imprestável sargaço deixado em restolho
a raça dos amestrados pela obnóxia descausa
impassíveis pela consumição do outro
por o outro
não saber da inversão de estatutos
no passaporte escancarado à inumana interação
desarticulando-se
no vómito que os incinera pelas entranhas?
Para jogos destes
antes
a apostasia do lúdico.
Dito pelo avesso da lua
às vezes
como se doze fossem os anos
e uma pueril cócega
enxertasse o presente com ilusões
no madraço contemplar da gramática.
Tido por estroina,
que os varões sintomáticos
desaprovam a utopia,
desabotoei o corrosivo uivar
e fui para a rua
só para apreciar o movimento,
prova de vida,
talvez,
uma simplicidade ímpar.
As mãos emaranhadas
tropeçavam
em seus dedos trémulos.
Desse lisérgico esquecimento
validava as virtudes sem elmo
os povoados falares contra a tirania
a excruciante medida escondida
nos rostos disfarçados de iconoclastas.
Amaciei as águas frias
e delas
devolvi ao regaço
a idade sem pesares limítrofes
a boca sem freio,
deleitosamente cais,
o não temível verbo contumaz
estruturalmente órfão.
E soube ser eu
tão diferente do diferente
estalão de coisa alguma
rosto destinado ao anónimo
profeta sem audiência
dizedor da palavra vaga
no socalco da meia tarde.
[Crónicas do vírus, CCCXIV]
O passaporte
sem marca de água;
uma página embotada
pela poeira insubmissa.
Dos jornais:
não grafitarás os comboios
sob pena de multa.
Em falta está saber
se os jovens que redecoram comboios
leem jornais.
Contar histórias de autoestradas
os rodados continuamente rodeando
o asfalto que não dorme
áreas de serviço que traduzem descanso
e dois pontos separados pela avidez.
Contar histórias de autoestradas
quando o tempo se encurta
e dele sobra um remédio
para à existência dar uma poupança.
Contar histórias de autoestradas
portagem para um mercado abastecedor
no volúvel esfiapar da paisagem.
Contar histórias de autoestradas
onde a pressa estilhaça a temperança.
Exila-se
o maltrapilho
abjeto detrito social
pária sem paradeiro
nem inventário por anotar
morador de pardieiros.
Do exílio
fará convalescença
objeto de estudo da metamorfose
um caldo a preceito
dos estudiosos do arrependimento.
No degredo
reabilitar-se-á
e depressa
o desexemplo será bota descalça
e sem a bengala da reprovação
conseguirá ser
alguém.
Pois da terra que foi proscrito
o maltrapilho
roçou os antípodas do paradigma
sempre a um canto
tratado com desconfiança
margeando as próprias margens.
Hoje
ao longe
extirpou os sedimentos da pária condição.
Exemplar
é agora a sua estirpe.
Convocado
pelo lugar de origem
o maltrapilho transfigurado mandou dizer
que havia proscrito esse lugar.
Sabemos:
a decadência
está sempre à espreita
é espada sem aviso
irreparável
no doloroso estertor
que aviva a margem apodrecida.
Não há calendário para a decadência:
ela contém o seu próprio oráculo
mnemónica sabida
só depois do tempo.
Só então:
a decana decadência
se improvisa,
indomável,
e por suas lentes
tem assento as coisas baças.
“Thives like us”,
disseste
e eu traduzi:
a afeição que os ladrões
têm por nós.
“Thives like us”,
reiteraste;
e eu percebi
o que dizias:
nós somos
como ladrões.
Esta é a roda dentada
o pastel na paleta de intenções
o fogo imperturbável
a centrifugação que desaloja impurezas
o acostumado torpor na anestesia da matilha
o carvão alisado na folha de almaço
a inspiração que se perde na boca de água
o modo que não se convence da moda
uma escada íngreme sem cuidados
o mosto que amputa o intemporal
a beleza encerrada nos curros
(fugitiva dos Homens)
o manual de conversação
o impecável instrumento do consentimento
o barril à espera de manteúdo
os dedos trémulos na forca do medo
o penhor de toda a lucidez
o manuscrito sem titulação
(passado a tinta da China)
a tenaz que apara o desassossego.
Esta
é a palavra dita
à revelia de conjeturas.
Pesa o sinédrio arcaico
no dorsal esmaecido
vitrina também gasta
do coloquial projeto de dia
na vez da indigência dos feitores
que ofende as balsas onde fermentam
as palavras imprudentes
o préstimo dos arbustos sem dono
a partitura onde se desenham versos
o avião longínquo
acertando no céu sem reticências.
Convoquem-se os ardinas
para que à luz nova tragam notícias.
Não interessa que notícias são;
se um dia quadrar com ausência de notícias
podemos interrogar a hibernação
ou o dia em capitulação?
Dolosos
os destroços armadilhados
nos templos inacessíveis
onde se tornam forasteiros
os contumazes devedores da alma
na contrafação dos espíritos.
Os ossos falam mais baixo
sussurram
o vencimento do dia
à medida
que as pessoas desenham seus vestígios
e sem mossa
se recolhem aos aposentos.
É fim de semana,
exclama o operariado,
exausto.
Amanhã
será trunfo outra rotina;
um sábado escaninho
a desautorização das horas
um estribo para o avesso da alma
um lampejo de outra fadiga.
Os destroços
são sempre armadilhados
– sempre dolosos
(e,
não por acaso,
dolo
é anagrama
de lodo).