9.11.20

Povoado

Não é a matilha

que comanda o Norte

é, que se saiba, a anilha

a desencomendar a morte.

Podes desaprovar a pandilha

antes que ela do chá aborte

e devolvê-la à erma ilha

onde o litigar tem um corte.

Sobra um rosto na vasilha

e no muro uma palavra em transporte

para então silenciarmos a cavilha 

e às mãos darmos aquela cor forte.

E se nos olhos da filha

alcanças um grande porte

não feches a escotilha

abraça essa grande sorte.

#1791

[Crónicas do vírus, CCCLXIII]

 

A casa

voltou a ser

casa

(por decreto).

7.11.20

Mito urbano

Um Calígula

disfarçado de rosto

estampado no peito dos jovens

de herói fazendo de conta

apascenta a maré de ilusões.

 

Um Calígula

que se desce à praia

mouchão de verbo pantanoso

cancioneiro que paredes envenena

nos sonhos perdidos

de adolescentes.

#1790

[Crónicas do vírus, CCCLXII]

 

O mosto do dia,

beligerante.

6.11.20

Um dia destes

Um dia

serei dança

no nevoeiro da floresta.

 

Um dia

serei poema

em aberta maresia.

 

Um dia

serei arguto

em vinho eflúvio.

 

Um dia

serei manhã

à espera de seres noite.

 

Um dia

serei espada

a trespassar o desejo.

 

Um dia

serei voz

no segredo da tua fala.

 

Um dia

serei mãos

em desatada corda.

 

Um dia

serei vetusto

em teu invulnerável regaço.

 

Um dia

não serei morte

no penhor do teu imorredoiro rosto.

#1789

[Crónicas do vírus, CCCLXI]

 

Somos remidos do parentesco

estranhos uns dos outros

ou imersos no seu esquecimento.

#1788

[Crónicas do vírus, CCCLX]

 

Quem nos protege

de quem nos quer

proteger?

 

(Inspirado numa crónica de António Roma Torres no Público, e adaptado às circunstâncias)

5.11.20

Em parte incerta

Um esboço de ideia

interino

a dádiva jogada contra a dúvida

no quartel destronado 

por pajens arrependidos. 

As costuras da ideia

levantam-se 

de um chão enlodaçado

dão vivas à janela que é um peito

descarnado. 

Já vai o tempo

em que destemidos figurantes do verbo

se agigantavam 

entre o código amuralhado

e a apatia semântica

estilhaçando-o 

em víveres de indiferença. 

Não se cobre já a nostalgia

que os relógios ainda não estão a destempo. 

As juras juram a juras precedentes

que não voltarão a jurar. 

É o retrato ideal

da humanidade,

o erro grosseiro 

escapando entre os dedos

à medida 

que uma certa estultícia

retira do passado o seu paradeiro.

#1787

[Crónicas do vírus, CCCLIX]

 

Agora 

que somos acrobatas

não deixamos fugir

o abismo.

4.11.20

Código morse

Código morse:

recriam a linguagem

os anões apoderados

sob o olhar tétrico

das fadistas mudas

deserdadas de estrofes.

Código morse:

ciciam as viúvas

desoladamente desamparadas

nos murais onde se acertam as lágrimas

alijadas de seus consortes

em juras eternas

de amores nunca acontecidos.

Do código morse

sobram os vestígios de sons

uma remota eloquência em hipótese

a linguagem por cifrar.

#1786

[Crónicas do vírus, CCCLVIII]

 

Apetrechados de ciência 

e somos o fardo 

da nossa fragilidade.

3.11.20

Sala de estar

Dei a fala ao gatilho

e ele empunhou miosótis

as suas pétalas 

um poema contra 

a decadência. 

 

É o amanhã!

(Alguém exclamou)

Está a morder as bainhas

do todo-impoderoso saber

os destroços embainhados

no projeto de passado

sem as juras por inventariar

e os projetos por sair do estirador,

para não falhar.

#1785

[Crónicas do vírus, CCCLVII]

 

Estamos à espera

do começo

mas a autorização

está desmoralizada.

2.11.20

Arcaísmo

Tamanho o feiticeiro

no lúgubre casario na encosta

onde as vozes se descasam 

no fastio do inverno.

Desenganam-se os forasteiros:

a vertigem da paisagem

esconde segredos inválidos

e da fúria em silêncio

sobra a infâmia sem rosto.

#1784

[Crónicas do vírus, CCCLVI]

 

Dia

de todos 

os tolos. 

1.11.20

#1783

[Crónicas do vírus, CCCLV]

 

Enfim

deixaram os mortos

em paz.

31.10.20

Ponto de cruz

Não é da fazenda puída

que contam os dedos válidos

nem da cruz alvoraçada

que se terçam mentiras.

Que se emalhem os pertences 

 

(não há equívoco,

caro leitor:

o verbo é 

emalhar)

 

no episódico insurgir da maré,

não por acaso chamada

maré-viva,

que o ponto de cruz

emoldura

para memória futura

os estragos da viva maré.

 

E depois

não há quem inquira

por que sortilégio do idioma

 

            (ou distração dos peritos)

 

a uma maré destas

assim devastadora

se chama

maré-viva,

se tantas vezes o que espalha

é morte.

#1782

[Crónicas do vírus, CCCLIV]

 

Doámo-nos as culpas

no maior remorso

dos tempos.

30.10.20

Consoante muda

Muda

a consoante,

antes que a consoante

fique muda.

Contra a mudez

em remoinho

os novelos da fala

pouco podem terçar.

 

Mas se a consoante emudece

não perde ela serventia:

experimente-se outra extração

a consoante tornada invisível

e digam

se não faz falta

a consoante muda.

 

Fica provado:

um silêncio

é 

(por vezes)

fala não tumular.

#1781

[Crónicas do vírus, CCCLIII]

 

São os deuses que dormem

ou não têm arcaboiço

para a peste?

29.10.20

Faz-tudo

Faz tudo

ou 

o faz-tudo

deseremita destemido

versátil sem par

despachante de mistérios

operário sobredotado

avençado das empreitadas improváveis.

E

no fim de contas

perito de nada.

#1780

[Crónicas do vírus, CCCLII]

 

A metonímia credível:

o cão

azamboado

sempre a andar à roda

atrás da cauda.

28.10.20

Validade

Regressado da ausência

reponho a hierarquia.

 

Anoto 

as pessoas que passam

os rostos que vertem

uma quota de parecença

a paridade não desdenhada.

 

Anoto

o módico esvoaçar do dia

que esbraceja contra 

a entediante peregrinação do mesmo

e colhe

abertamente lúcido

a flor válida que se oferece

à janela já não mitigada.

#1779

[Crónicas do vírus, CCCLI]

 

Como sonâmbulos,

num palco

sem arnês. 

27.10.20

Diz-me

Diz-me 

se a fala 

é desta boca

ou apenas de um síndico

que papagueia as sílabas disformes

de uma fala sem passaporte.

 

Diz-me

se os morangos estão doces

e na fruteira se exibem os frutos

à espera da madurez.

 

Diz-me

que tenho ouro nas mãos

e que sabes ser santuário

com a procuração do meu corpo.

 

Diz-me

que não somos mudos ao outono

e que somos a fogueira que apaga o frio

enquanto a noite se demora na sua escassez.

 

Diz-me

que os dias são todos diferentes

e que o teu peito como ancoradouro

é a justa recompensa para o lugar porfiado.

 

E diz-me

antes que emudeça a noite

que atravessamos os carris desalinhados

subimos aos promontórios inacessíveis

desenhamos os mapas contingentes

fazemos rimas com o amparo das gargalhadas

e anoitecemos entrelaçados

como alimento recíproco

as almas desapoquentadas que se incensam

na luz não pálida apalavrada 

pelas nossas bocas distintas.

 

Diz-me

que somos o étimo da singularidade

e dos dedos uníssonos 

estilhaçamos os contratempos

e compomos as estrofes algorítmicas

que povoam o nosso espaço vital.

 

Diz-me

acima de tudo

o tudo que sobe à boca

sem que sobre nada por dizer.

 

Diz-me

em perene derrota 

do silêncio castrador.

#1778

[Crónicas do vírus, CCCL]

 

As pessoas

já sentem falta

de ver bocas.

#1777

[Crónicas do vírus, CCCXLIX]

 

O jogo

é diferente

e das regras sabe-se

um desconhecido conhecido.

26.10.20

Opcional

Este é o chumbo que tinge o tempo

uma mortalha irremissível

o protesto encorpado no vinco do rosto

sem estar à espera de nada

sem arrumar as esperas 

para o relógio diuturno que arregaça o dia

sem arruinar os anéis vertidos em ternura.

Não são as mesas gastas

o palco adiantado ao crepúsculo;

não são as mãos suadas

que aquecem o arrefecimento noturno;

não são os jacarandás floridos fora do tempo

o atestado de salubridade do pensamento:

não há certidão lavrada no mosto da melancolia

e de vulcões ideados é colhida a sementeira

os juros a pagar no vindouro

entre a fala amuralhada e o vinho delituoso.

Não são os trovões medonhos

que acordam da hibernação plúmbea

nem o ocaso feérico se transfigura

em alvorada a destempo.

Esta é a boca ávida

o transiente esfacelar da fala anciã

a nova gramática 

que desponta no viés das parras acobreadas

o autor sem nome nem paradeiro

um outono macilento 

que desaprova a gente que o desaprova.

Este é o túmulo sem inquilino

a turfa tremeluzente que bebe toda a chuva

o mirífico legado do porvir jurado

em estandartes magníficos

na solene indumentária

da nudez.

#1776

[Crónicas do vírus, CCCXLVIII]

 

Falta inventar

a linguagem

para ler o medo.

25.10.20

#1775

[Crónicas do vírus, CCCXLVII]

 

Uma extração de déspotas

no descaminho da peste.