Escondemo-nos na música
o idioma sem ultraje
geografia sem rei.
Escondemo-nos
a música como cenário
nem que seja
só para desenjoar do mundo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Atiro o alfabeto
contra a boca sedenta
e reverto a toada a favor
dos órfãos de sentido.
As letras
desenho-as com o cinzel furtado.
Meto-as numa aguarela primaveril
e desminto os ogres que voluteiam
entre os hemisférios perdidos.
À força de um labirinto
depois do ermo lugar
junto as mãos todas numa clepsidra:
oxalá sejam artífices
do mais alto verbo
e depois de um depois
se cumpram na fértil andança dos mares.
Dizem:
que não venham venenos sem antídoto
que não se soergam no ocaso
os mastins celebrados por atrocidades
que falem baixo
os tiranetes sem guarida;
que não se desestime a laje secular
o adro que não perde os velhos em repouso
a crisálida que se deita nas flores sedentas.
Amparo o alfabeto,
antes que fique órfão.
Espreito
pelos interstícios
onde ecoa a penumbra.
Espreito
a madrugada em sentido
o vocabulário tenente
que é o aforro dos tardios.
Espreito
este dorso incansável
que promete o amanhecer sem demora
o visível contrabando da fala.
Espreito
a madrugada sem sentido.
Ponto e vírgula;
o excedente que se abeirava
não era o abismo
a vertigem pela calada;
ponto e vírgula:
era o tempo poupado
para a miragem seguinte.
Em vez da vírgula
o som calado da montanha
o rumorejo da água escondida
e o sol em barda
batendo contra o corpo exilado.
Desacreditava;
e não precisava de ser metódico
com a pontuação.
Um bazar em Istambul
vale mais
do que a torre de marfim
que é o pináculo dos modernos
mercadores.
Desenganem-se
os astronautas da finança
por mais fecunda que pareça
a sua artilharia.
Pois espartanos são os seus modelos,
a léguas de importunarem
a metáfora do belo
que é o bazar de Istambul.
És storyteller,
sem redenção.
E eu
rendido
devolvo a paga
em sobremesas e teatro.
Cresço nos enredos
que exsudam de teus dedos.
Esvazio as barreiras
enquanto fico à tua espera,
à espera de um cosmos
que é metamorfose dos sonhos.
Pela mão das tuas estrofes
não quero saber onde me levas.
Só quero saber
que me leves.
As tuas estrofes
são a bala de confiança
que me industriam a ser
alguém por fora de mim.
Levanta-se o termo em volta da penumbra:
a manhã está pronta.
Desembaraça-se a luz,
ao início presa às amarras da noite,
autorizando os matinais percursores
na inauguração do dia.
Não há nada a dizer da rotina.
As pedras do cais
são sempre frias e húmidas,
mesmo quando o Verão está no auge.
O que será
dos que rumam contra a maré
e, noctívagos,
viram o tempo do avesso?
Dirão de sua rotina
ser uma rotina
no avesso da rotina
dos que são seus antípodas
– uma fortuna ao acaso,
como qualquer outra.
Não se fale de rendição
nem de perspicuidade.
Os lados dos dados não mudam
com um aceno da vontade.
Em vez da angústia,
a aceitação da rotina:
é uma prova de vida,
um ermo.
Uma chuva malsã
desarruma a sementeira
o inesperado absoluto
para prostração dos agrários.
As abelhas fugiram a tempo
mas o vinhedo estava sitiado.
Ao longe
nuvens pomposamente acerbadas
deram sinal de partida;
deixam atrás de si
a devastação.
Um caudal sem leito
desce os socalcos à procura de espaço.
É uma fotografia perturbante:
os rostos assimétricos da natureza
falam depois das loas
quando a sua fúria castradora
deixa os miseráveis à míngua.
O nome
embebido
sem homem na meada.
O homem
sem nome embebido
plástico.
Embebido
o nome órfão
no homem a prazo.
Ouve-se o ciciar de vultos perenes.
Não se traduz em palavras sufragadas,
o ciciar.
Na lonjura da planície
os lobos depositam o uivar
enquanto fogem das mandíbulas
dos mastins mais do que eles.
Que não haja fingimento deste xadrez
que sobe constantemente à cena:
é um jogo de algozes e presas
e às vezes troca-se de lugar.
Serão as vozes enformadas
inábeis consumidoras das imagens sem freio
à espera de portagens extintas?
Os embaraços fustigam a ideia do presente.
Açambarcam a fala
deixada numa fratura exposta
e as sílabas ensonadas
são a metamorfose de perguntas.
Ah!
Não sei que paradeiro hei de dar
dos loucos
que desafiam as gastas arestas do mundo.
Invejo-os,
os loucos sem saberem da simetria das regras
nem dos penhores que organizam a obediência.
Os risos ecoam no espaço à volta.
Mas não há rostos
não há matéria sensível
a cortar centímetros entre os lugares.
Há um labirinto que foge da mediana
contra o ultraje que desvia os olhos
e deixa-os hipotecados na hibernação.
Mas os vultos perenes
não deixam de se fazer notar;
inclinam-se vagarosamente,
matéria sem ossos,
para trás e para a frente,
como se fossem maestros implícitos
da colheita que se repete
todos os dias.
Em fogo larvar
o dó sem partida
imarcesce no goto das veias.
Não há resgate das almas
no chão lunar das profecias vãs
nem se chamam os nomes certos
aos meãos hesternos
escondidos em seus lúgubres lugares.
O mundo
é pequeno:
“deixem-me sair daqui”
diz-se à boca grande
como se ela abocanhasse o mundo
e ele, enfim,
medrasse por dentro do húmus interior.
O mundo
é pequeno:
e na vertigem do carrossel
já sem distinguir a música ligeira
as teimas tiradas no sargaço do futuro.
Vamos ao fundo das luzes
e trazemos a lava agarrada
o ingrediente singular
nas abóbadas do plural.
[Crónicas do vírus, DL]
Legifere-se
a esperança
– o voluntarismo do legislador
dobrará o braço da peste.
Dou à pele
um mar de corsário
um cortejo sem pajens
no rumor dos dias pensados.
Habito entre as marés
antes que de Neptuno seja refém
e nos calabouços das ideias
arrumo as minhas,
antes que sejam desarrumação infiel.
É nestes mares adestrados por meus olhos
que vinham os erros colossais,
matéria antecipada
nos provérbios armadilhados.
Sou eu
– não sei –
em povoados sem idioma
sulcando a geografia notária dos postais
enquanto as cavidades ancestrais amarelecem,
puídas pela estouvada correria do tempo.
Sou eu
sentinela dos marinheiros órfãos
apólice contra os naufrágios,
com a mão domando o mar encrespado
antes que revire os olhos
e se torne furibundo.
No meu vocabulário
não encontro espaço para a melancolia.
Não arranjo as avarias,
que as obras diletantes dos sacerdotes da vida
previnem a perfeição.
Sou eu
– o puramente imperfeito
mastro em que se hasteia o pólen
do que há de ser
alma à procura de o ser
ou vulto desossado de uma alma frágil.
Deixo de herança
o esquecimento de mim,
desexemplo por excelência
o fugitivo que verte tinta nas nuvens,
o mentor do nada
que em improfícuos mergulhos
traduz montanhas perfumadas a azul.
Eu,
o corsário inábil
gato furtivo sem gente por perto
modesto embaixador do etéreo
entre talhadas de loucura servidas em mão
e páginas esquecidas no torniquete da memória.
Eu,
essoutro à procura de paradeiro
na vinificação dos espíritos desatrelados.
À espera de vez,
à espera de monções do tempo
servidas sem arnês,
na possibilidade do desdito
sem encorpar se não nas estrofes
de um vate sem nome próprio.
Se a cabeça
coubesse num elmo
podia disfarçar as cicatrizes
que a corrompem.
Mas o elmo
não cabe na cabeça
e recusa ser pretexto
para as cicatrizes que a arruínam.