[Crónicas do vírus, DXCVI]
O beijo da praia:
outra espera
à espera de ser saldada.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não chegava.
Não chegava a maré
depois da tarde.
Os marinheiros falavam.
Diziam palavras sem geografia.
Eles só sabem do mar
e o mar não se traduz
pelos ventos da diferença.
A geografia
era um vocabulário frugal.
Deste miradouro
não se pressente a decadência.
Já trago o arnês
para não ser a presa seguinte
no mar tempestuoso da decadência.
A próxima maré
é minha.
[Crónicas do vírus, DXCV]
Malefícios da peste em extinção:
os velhos bárbaros
voltam a semear incivilização.
Escolhi a manhã.
Neófita
traduz a luz iniciática
ainda sem o jugo
da poluição.
O sabre das multidões
não frequenta a manhã.
(Podia também alvitrar
a bruma espapaçada
o orvalho que desapega do musgo
o rio lânguido que estacionou
à espera da sua foz
os poucos rostos, estremunhados,
o punhal que se abate
sobre o desamparo da noite
que é sempre demorada,
até no solstício do Verão).
Escolhi a manhã.
Antecipo as almas amestradas
irrompendo nas artérias ocupadas
arrastando-se até a manhã perder gabarito.
Não deito a perder
uma única manhã.
O rapaz
montado furiosamente na guitarra
desenha os contornos da música
e descarrega o seu corpo franzino
na corrente que dava alimento ao som
numa catarse vertida do avesso.
Fiquei a pensar
se o rapaz fosse das letras
que poeta seria.
Era a torre de Babel,
dizia-se em surdina;
mas talvez fosse
(após cuidadosa inspeção)
a caixa de Pandora.
Ninguém desceu a escadaria
para abrir a porta.
Seria
– possivelmente –
medo
(ou apenas
a aritmética da exceção).
A noite é a besta negra que descoloniza a lucidez.
À noite, as luzes bruxuleantes são sentinelas.
As luzes ímanes, tatuadas na pele, desenham a coreografia dos opostos.
As luzes lisérgicas desocupam o sono de um mapa amarrotado.
As luzes são desfiladeiros habitados por fantasmas deserdados.
Por fantasmas que traduzem a liberdade para um idioma com deslimites.
A noite invernal atravessa as ruas e o corpo quente que a desmente.
É a noite que se deita nas mãos artesãs, a espoliar o medo.
A noite contumaz, verbo ou equação, morada do sortilégio.
A noite que espera pela manhã.
A noite que desafia a manhã, desembainhando a espada que roça o abismo.
A noite, que enquanto não é manhã mergulha na vertigem dos sentidos.
A noite que tutela a lua caiada de estrofes.
A noite, penhor da solidão.
Miradouro que se atreve a escrever as palavras proibidas.
À boca da noite, um palimpsesto dos rostos imarcescíveis.
Na noite que é maternidade no estirador de uns olhos diligentes.
Da noite que não devora os corpos.
No fojo
por onde fuja
o lobo em metáfora:
o mel diuturno
chama o algoz
à espera das tornas
da lua.
Entontecidos
os rapazes
tiram-se do mar.
Os velhos
protestam um silêncio.
O mar não é menor
à espera da maré
entre remoinhos bastardos
que desmaiam na areia.
Dizem:
o mar
esqueceu-se do sal;
ou então
o sal exilou-se
nos rapazes estouvados.
Dizem:
os rapazes
foram o fojo
para o sal entediado.
E os rapazes
transfigurados,
cais
das mais temíveis
tempestades.
[Crónicas do vírus, DXC]
Um toque de Midas,
apenas um toque de Midas,
para a bússola fazer sentido
outra vez.
Antes se inventasse
um dicionário de onomatopeias;
seria a melhor recomendação
para reunir os garatujos avulsos
da fala pré-histórica.
Um manual de intenções
contra os mundanos mal-entendidos
que entontecem as almas sitiadas.
O objeto cortante
antecipa a véspera da fala.
Se ao púlpito chegassem as preces
seria mínimo o dano
e os provectos eremitas não cuidariam
da hermética gramática sem conhecedores.
Os tribunos esqueceram-se da forma
e nem aos tribunais recorrem,
suspeitos de serem réus em primeira linha.
Não se sabe
quem tem o objeto cortante na mão.
“Agora já não é como dantes”
(a ladainha que percute a pele gasta
dos arcanos que vivem aprisionados
num tempo esquecido):
os detetives estão todos reformados.
Os ossos gastos
conspiram a rebelião.
Dentro de um lago baço
inventam as palavras ruínas
tornam-se fluentes no verbo gasto.
As lâminas de um fogo inesperado
ajudam as rimas:
não são os trunfos na mão
que ajeitam o tabuleiro;
em vez das cores de cor
a boca estatística desgasta a estultícia
e conserva de cor as baias das cores.
Amanhã
reservo o desmedo
antes que seja cedo.
Não sei dos números em barda
os que falam em vez do silêncio
em ondas sem cessar
que ajeitam o dia.
Não combino farsas
com os circenses que se pavoneiam
deixo para depois as cortinas com enfeites
e parto do cais para chegar a casa.
Não abandono as ideias sem patrono
nem deixo que sejam órfãs
as palavras arrancadas aos escândalos.
Não fujo do âmbar das palavras
nem que um cerco sem remédio
tome conta do peito.
Aos sinos sem fala
não conto o desenho do amanhã.
Prefiro que sejam os instantes
a caiar as paredes vetustas.
A cabeça em água
não pode ser se não um louvor.
Se a água é o elemento dominante
da Terra
uma cabeça feita em água
é o panegírico da moderna ecologia.
Todavia
as pessoas queixam-se
das cefaleias que liquefazem a cabeça
dos tremores que condensam a angústia.
Se pudessem,
carregavam barragens na nuca
só para abrirem as comportas
e a água desabitar as suas cabeças.
Ah!
se ao menos soubessem
que uma cabeça cheia de água
é uma fronteira que se fecha
ao vento que dela se apodera.
Um bom tema de conversa:
há quem demande o santo Graal
como se tudo fosse contingente
e um bastão ingente,
a qualidade,
adejasse como sentença definitiva.
Não sabem
os que precisam de ser desenganados,
que a fala dispensa adjetivos.