[Crónicas do vírus, DCII]
Afinal a História
sempre se repete.
(Ou: o moderno ultimato britânico)
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCII]
Afinal a História
sempre se repete.
(Ou: o moderno ultimato britânico)
Perseguia a manhã sem nome
e dei às mãos sedentas
a tua silhueta.
A enseada escondia os segredos murmurados.
À altura do entardecer
pedimos água à pele suturada
com o suor do dia.
Dissemos:
este
é o tempo
de que somos procuradores
um remoinho sem vento por dentro
os dentes à mostra
decifrando todas as sílabas
no Norte
sem fim.
[Crónicas do vírus, DCI]
Um jogo de espelhos
para que nos seja devolvida
a imagem
que nos foi expropriada.
Não fosse
o verbo puído;
não estimasse
o mosto sofrido;
não imaginasse
o nome corroído;
não contemplasse
o tempo condoído;
não chamasse
o mar derrogado;
não prometesse
o ás não falado;
não inventasse
o medo açambarcado;
não derrubasse
o muro embuçado;
não desdissesse
o sábio empertigado;
não rejeitasse
o corpo desarmado;
não fugisse
do cais empenhado;
não fingisse
um sobressalto adiado.
[Crónicas do vírus, DC]
Sobrestimamos os juízos
até sermos intérpretes do naufrágio
(outra vez).
Não se me sejam insinuadas
desideias,
que me desalmo.
Em caso de desaprovação
desigualo os empatas
só para seguir com a desambição
de desandar à retaguarda.
Não desarrumo as desavenças
não por apetite de desnorte
mas por tributo à derrota da desunião.
Nem que venham a medrar
desideias
desalinhadas no desatino.
Uma bala perdida
é a prova de vida dos inocentes.
Numa câmara de sombras
onde vagueiam vultos serenos
o coldre vazio é o aval
das noites perdidas na angústia do medo.
Mesmo a tempo
de as mãos sinceras
serem a represa onde se estilhaçam
as balas perdidas.
[Crónicas do vírus, DXCVIII]
Da descida aos infernos
à reabilitação da casta,
o intervalo da desmemória.
Navegas nesta cordilheira
se não te falharem
os ouvidos-intempérie.
Se endossasses o referendo
não se te saberia o sal sem sono;
sabes
ao menos
que não te empenhas às marés sem rosto
nem naufragas nas sílabas proteladas.
Teu é o domínio
que se empareda no astrolábio banal,
a promessa colossal
aos dias sem nome.
[Crónicas do vírus, DXCVII]
Do nacionalismo às avessas:
o dia
em que os forasteiros
puderam fazer
o que nos é proibido.
Os loucos
não são achados
na loucura maior
que os transcende.
Desde a inauguração dos tempos
maior é a demência
dos que não estão inventariados
nos registos civis
e em consultórios de peritos.
No tântrico teatro
que é a loucura imorredoira,
o nome próprio do planeta,
que se descontasse a loucura banal
da contabilidade inexistente
da loucura geral.
Essa
é a prodigiosa loucura
sem sentença.
Não chegava.
Não chegava a maré
depois da tarde.
Os marinheiros falavam.
Diziam palavras sem geografia.
Eles só sabem do mar
e o mar não se traduz
pelos ventos da diferença.
A geografia
era um vocabulário frugal.
Deste miradouro
não se pressente a decadência.
Já trago o arnês
para não ser a presa seguinte
no mar tempestuoso da decadência.
A próxima maré
é minha.
[Crónicas do vírus, DXCV]
Malefícios da peste em extinção:
os velhos bárbaros
voltam a semear incivilização.
Escolhi a manhã.
Neófita
traduz a luz iniciática
ainda sem o jugo
da poluição.
O sabre das multidões
não frequenta a manhã.
(Podia também alvitrar
a bruma espapaçada
o orvalho que desapega do musgo
o rio lânguido que estacionou
à espera da sua foz
os poucos rostos, estremunhados,
o punhal que se abate
sobre o desamparo da noite
que é sempre demorada,
até no solstício do Verão).
Escolhi a manhã.
Antecipo as almas amestradas
irrompendo nas artérias ocupadas
arrastando-se até a manhã perder gabarito.
Não deito a perder
uma única manhã.
O rapaz
montado furiosamente na guitarra
desenha os contornos da música
e descarrega o seu corpo franzino
na corrente que dava alimento ao som
numa catarse vertida do avesso.
Fiquei a pensar
se o rapaz fosse das letras
que poeta seria.
Era a torre de Babel,
dizia-se em surdina;
mas talvez fosse
(após cuidadosa inspeção)
a caixa de Pandora.
Ninguém desceu a escadaria
para abrir a porta.
Seria
– possivelmente –
medo
(ou apenas
a aritmética da exceção).
A noite é a besta negra que descoloniza a lucidez.
À noite, as luzes bruxuleantes são sentinelas.
As luzes ímanes, tatuadas na pele, desenham a coreografia dos opostos.
As luzes lisérgicas desocupam o sono de um mapa amarrotado.
As luzes são desfiladeiros habitados por fantasmas deserdados.
Por fantasmas que traduzem a liberdade para um idioma com deslimites.
A noite invernal atravessa as ruas e o corpo quente que a desmente.
É a noite que se deita nas mãos artesãs, a espoliar o medo.
A noite contumaz, verbo ou equação, morada do sortilégio.
A noite que espera pela manhã.
A noite que desafia a manhã, desembainhando a espada que roça o abismo.
A noite, que enquanto não é manhã mergulha na vertigem dos sentidos.
A noite que tutela a lua caiada de estrofes.
A noite, penhor da solidão.
Miradouro que se atreve a escrever as palavras proibidas.
À boca da noite, um palimpsesto dos rostos imarcescíveis.
Na noite que é maternidade no estirador de uns olhos diligentes.
Da noite que não devora os corpos.
No fojo
por onde fuja
o lobo em metáfora:
o mel diuturno
chama o algoz
à espera das tornas
da lua.
Entontecidos
os rapazes
tiram-se do mar.
Os velhos
protestam um silêncio.
O mar não é menor
à espera da maré
entre remoinhos bastardos
que desmaiam na areia.
Dizem:
o mar
esqueceu-se do sal;
ou então
o sal exilou-se
nos rapazes estouvados.
Dizem:
os rapazes
foram o fojo
para o sal entediado.
E os rapazes
transfigurados,
cais
das mais temíveis
tempestades.
[Crónicas do vírus, DXC]
Um toque de Midas,
apenas um toque de Midas,
para a bússola fazer sentido
outra vez.
Antes se inventasse
um dicionário de onomatopeias;
seria a melhor recomendação
para reunir os garatujos avulsos
da fala pré-histórica.
Um manual de intenções
contra os mundanos mal-entendidos
que entontecem as almas sitiadas.
O objeto cortante
antecipa a véspera da fala.
Se ao púlpito chegassem as preces
seria mínimo o dano
e os provectos eremitas não cuidariam
da hermética gramática sem conhecedores.
Os tribunos esqueceram-se da forma
e nem aos tribunais recorrem,
suspeitos de serem réus em primeira linha.
Não se sabe
quem tem o objeto cortante na mão.
“Agora já não é como dantes”
(a ladainha que percute a pele gasta
dos arcanos que vivem aprisionados
num tempo esquecido):
os detetives estão todos reformados.