20.6.21

#2048

[Crónicas do vírus, DCXX]

 

Paga-se

em juros negativos

a usura da impaciência.

19.6.21

#2047

[Crónicas do vírus, DCXIX]

 

Fomos pródigos

na polinização da gleba.

Somos servos

outra vez.

#2046

[Crónicas do vírus, DCXVIII]

 

Um certo sabor a déjà-vu

ou a persistente incapacidade

para aprendermos.

18.6.21

Estrada nacional

Cicatrizes em hibernação

na combustão do esquecimento. 

Retiram-se as costuras aos verbos

e ficam só os nomes 

a arcaica compostura dos distintos. 

Se os minotauros não fossem magros

tomariam aos fantasmas o lugar. 

Mas as janelas baças

escondem o puído do dia,

talvez por ser tardio. 

A carne exposta

entrega-se aos espelhos suados. 

Em convulsões,

desenha o poema furtivo

na praça onde se põem

em todos os entardeceres

as glicínias apalavradas. 

No esteio largo dos homens sem medo

a pele torna-se o magma esperado. 

O sono

pode virar a sua página.

#2045

[Crónicas do vírus, DCXVII]

 

Já não sabemos

quem são os bombeiros

e que são os pirómanos.

17.6.21

#2044

[Crónicas do vírus, DCXVI]

 

Novos, 

os passaportes

para desimpedir

as fronteiras da peste.

16.6.21

As bocas do mundo (prefácio de uma anomalia)

O mundo tem uma cara

mas andamos nas bocas do mundo.

 

Eu suspeitava 

que o mundo é deficiente.

Agora tive a confirmação:

 

como podem múltiplas bocas

conviver no mesmo rosto?

 

Para além da esquizofrenia

que senta o mundo no divã do psiquiatra

o mundo é uma ameaça perene

um lugar definitivamente perigoso para se ser:

 

temos de aprender a ser esquivos

para não sermos presas

das tantas bocas que o mundo enverga.

#2043

[Crónicas do vírus, DCXV]

 

Entre 

procuradores e mandatários,

nós

à mercê da tentativa e erro.

15.6.21

Exílio

O exílio por dentro

desembaraça uma bandeira. 

 

A voz 

não se adianta às palavras

numa mudez mortiça,

sem luz. 

 

Os idiomas 

dançam

num jardim sem rostos,

procuram uma morada

que não encontram. 

 

Os lugares são todos órfãos. 

 

Os nomes

deviam pertencer

apenas

às pessoas.

#2042

[Crónicas do vírus, DCXIV]

 

As juras da impaciência

contra 

o posfácio da prudência. 

Re-gramática

Hoje em dia

ontem em noite

amanhã em manhã

depois de amanhã é tarde

(para a lógica da semiótica).

14.6.21

#2041

[Crónicas do vírus, DCXIII]

 

Entre o salto em frente

e a marcha-atrás que pende

a encruzilhada que não se desfaz.

13.6.21

Tarefa

Encho a minha sombra

com a fala sem adiamento.

Navego nas palavras

pendurado nas sílabas 

povoadas pela boca.

A minha sombra

tem a caução das mãos

e adeja sobre o avesso de mim.

Não seria nada

na ausência de uma sombra. 

#2040

[Crónicas do vírus, DCXII]

 

A janela sobre o futuro

à medida 

de um campo desminado.

12.6.21

O retrato dos derribados

A tortura 

que se disfarça

no avesso das pálpebras

enquanto os olhares adormecem

entre os esbirros que se calam. 

Se houvesse um perfeccionista sistema

e as ruas nunca precisassem de higiene

ninguém seria refém da mudez

ninguém seria penhor 

do seu próprio medo. 

Em vez disso

a anestesia geral:

os rostos obedientes 

as palavras sempre domadas

e o princípio geral do respeito

os verbos enevoados do amesquinhar 

sem direito a protesto

no dócil orquestrar de uma gadaria

sob a direção de maestros meãos.

#2039

[Crónicas do vírus, DCXI]

 

Uma odisseia

com muitos decibéis,

que delas não temos 

desábito.

11.6.21

Rasante

Caderno de encargos:

tirar o avesso do por-do-sol

desenhar as páginas

com palavras irredutíveis

comprar o hoje no leilão do passado

abrir as janelas enquanto o sol se valida

nascer no úbere da vida

atirar os dados contra o cais folgado

avivar o estuário com a boca faminta

despenhar num abismo sem mapa

estiolar o medo contumaz

servir de chão aos poetas 

(ou ser poeta entre as palavras chãs)

ser o sal que o mar demanda

amanhecer a qualquer hora do dia

agradecer aos desdeuses 

que se povoam no vazio

imaginar os socalcos tatuados na cal

tratar o amanhã por tu;

e prometo:

virar a vaca do avesso.

#2038

[Crónicas do vírus, DCX]

 

O desmedo

em velocidade de cruzeiro,

ou ainda a destempo?

10.6.21

#2037

[Crónicas do vírus, DCIX]

 

Só não nos vacinamos

contra nós mesmos.

9.6.21

#2036

[Crónicas do vírus, DCVIII]

 

Os dias inteiros

convocam

a avidez das vidas.

Fugitivo

Um fugitivo

não sabe de cor

as armas em que se dissolve

a angústia.

Não aprende

nem por tentativa e erro

o ritual que o empossa,

resistente,

contra mastins que coabitam

na melancolia.

Um fugitivo

não é um pária.

É arquiteto das suas escolhas

refém da sua vontade.

Um fugitivo

fala pelas omissões.

Distingue-se

dos que fingem assiduidade

e desertam em comissões venais,

mascarados de hipocrisia.

Os fugitivos

só fogem de si mesmos.

Que não se abata sobre eles

a exprobração.

8.6.21

#2035

[Crónicas do vírus, DCVII]

 

Já é pré-pós-peste

e os países

ainda pregam partidas

uns aos outros.

7.6.21

Fora de lei

Que sabíamos dos compêndios

onde vertidos estão os códigos de conduta?

Antes que os costumes 

se assenhoreassem da palavra nossa

precipitaríamos a fala insubmissa:

no desdém das convenções

subimos a parada no estado avulso da vontade. 

E em alamedas ornamentadas com jasmim

evocaríamos o futuro rebelde

em suas rimas impuras. 

Alguém nos pediria

que déssemos a autoria 

a um destes códigos de conduta. 

Não,

é o que diríamos

a esta improvável hipótese

pois língua de trapos não é do nosso domínio.

#2034

[Crónicas do vírus, DCVI]

 

Juram:

a miragem será apenas

arqueologia do vocabulário.

6.6.21

Conferência

O tempo vigilante

não deixa portas

por tecer. 

 

O tempo diligente

não responde

pelos ausentes. 

 

O tempo não subserviente

é o torno onde se emoldura

o esquecimento. 

 

O tempo ausente

a dádiva improcedente

no arrojo dos altivos. 

 

O tempo pungente

o cais em fuga 

da pertença. 

 

O tempo farsante

penhor dos olhares

em falta.

#2033

[Crónicas do vírus, DCV]

 

A peste,

a virar

países contra países.

#2032

[Crónicas do vírus, DCIV]

 

Da impaciência dos negócios

aos arrufos diplomáticos.

5.6.21

#2031

[Crónicas do vírus, DCIII]

 

Estamos

entre viver a vida

e deitar muito a perder.

4.6.21

O come sílabas

Não é tolice

soletrar os nomes

ao correr do relógio ímpar.

Todas as sílabas

merecem sufrágio

e deixar algumas pelo caminho

é a identidade dos trapalhões. 

 

(E quem gosta 

de ter um trapalhão 

como mandante?)

#2030

[Crónicas do vírus, DCII]

 

Afinal a História

sempre se repete.

(Ou: o moderno ultimato britânico)