[Crónicas do vírus, DCXX]
Paga-se
em juros negativos
a usura da impaciência.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Cicatrizes em hibernação
na combustão do esquecimento.
Retiram-se as costuras aos verbos
e ficam só os nomes
a arcaica compostura dos distintos.
Se os minotauros não fossem magros
tomariam aos fantasmas o lugar.
Mas as janelas baças
escondem o puído do dia,
talvez por ser tardio.
A carne exposta
entrega-se aos espelhos suados.
Em convulsões,
desenha o poema furtivo
na praça onde se põem
em todos os entardeceres
as glicínias apalavradas.
No esteio largo dos homens sem medo
a pele torna-se o magma esperado.
O sono
pode virar a sua página.
O mundo tem uma cara
mas andamos nas bocas do mundo.
Eu suspeitava
que o mundo é deficiente.
Agora tive a confirmação:
como podem múltiplas bocas
conviver no mesmo rosto?
Para além da esquizofrenia
que senta o mundo no divã do psiquiatra
o mundo é uma ameaça perene
um lugar definitivamente perigoso para se ser:
temos de aprender a ser esquivos
para não sermos presas
das tantas bocas que o mundo enverga.
O exílio por dentro
desembaraça uma bandeira.
A voz
não se adianta às palavras
numa mudez mortiça,
sem luz.
Os idiomas
dançam
num jardim sem rostos,
procuram uma morada
que não encontram.
Os lugares são todos órfãos.
Os nomes
deviam pertencer
apenas
às pessoas.
Hoje em dia
ontem em noite
amanhã em manhã
depois de amanhã é tarde
(para a lógica da semiótica).
[Crónicas do vírus, DCXIII]
Entre o salto em frente
e a marcha-atrás que pende
a encruzilhada que não se desfaz.
Encho a minha sombra
com a fala sem adiamento.
Navego nas palavras
pendurado nas sílabas
povoadas pela boca.
A minha sombra
tem a caução das mãos
e adeja sobre o avesso de mim.
Não seria nada
na ausência de uma sombra.
A tortura
que se disfarça
no avesso das pálpebras
enquanto os olhares adormecem
entre os esbirros que se calam.
Se houvesse um perfeccionista sistema
e as ruas nunca precisassem de higiene
ninguém seria refém da mudez
ninguém seria penhor
do seu próprio medo.
Em vez disso
a anestesia geral:
os rostos obedientes
as palavras sempre domadas
e o princípio geral do respeito
os verbos enevoados do amesquinhar
sem direito a protesto
no dócil orquestrar de uma gadaria
sob a direção de maestros meãos.
Caderno de encargos:
tirar o avesso do por-do-sol
desenhar as páginas
com palavras irredutíveis
comprar o hoje no leilão do passado
abrir as janelas enquanto o sol se valida
nascer no úbere da vida
atirar os dados contra o cais folgado
avivar o estuário com a boca faminta
despenhar num abismo sem mapa
estiolar o medo contumaz
servir de chão aos poetas
(ou ser poeta entre as palavras chãs)
ser o sal que o mar demanda
amanhecer a qualquer hora do dia
agradecer aos desdeuses
que se povoam no vazio
imaginar os socalcos tatuados na cal
tratar o amanhã por tu;
e prometo:
virar a vaca do avesso.
Um fugitivo
não sabe de cor
as armas em que se dissolve
a angústia.
Não aprende
nem por tentativa e erro
o ritual que o empossa,
resistente,
contra mastins que coabitam
na melancolia.
Um fugitivo
não é um pária.
É arquiteto das suas escolhas
refém da sua vontade.
Um fugitivo
fala pelas omissões.
Distingue-se
dos que fingem assiduidade
e desertam em comissões venais,
mascarados de hipocrisia.
Os fugitivos
só fogem de si mesmos.
Que não se abata sobre eles
a exprobração.
Que sabíamos dos compêndios
onde vertidos estão os códigos de conduta?
Antes que os costumes
se assenhoreassem da palavra nossa
precipitaríamos a fala insubmissa:
no desdém das convenções
subimos a parada no estado avulso da vontade.
E em alamedas ornamentadas com jasmim
evocaríamos o futuro rebelde
em suas rimas impuras.
Alguém nos pediria
que déssemos a autoria
a um destes códigos de conduta.
Não,
é o que diríamos
a esta improvável hipótese
pois língua de trapos não é do nosso domínio.
O tempo vigilante
não deixa portas
por tecer.
O tempo diligente
não responde
pelos ausentes.
O tempo não subserviente
é o torno onde se emoldura
o esquecimento.
O tempo ausente
a dádiva improcedente
no arrojo dos altivos.
O tempo pungente
o cais em fuga
da pertença.
O tempo farsante
penhor dos olhares
em falta.
Não é tolice
soletrar os nomes
ao correr do relógio ímpar.
Todas as sílabas
merecem sufrágio
e deixar algumas pelo caminho
é a identidade dos trapalhões.
(E quem gosta
de ter um trapalhão
como mandante?)
[Crónicas do vírus, DCII]
Afinal a História
sempre se repete.
(Ou: o moderno ultimato britânico)