17.9.21

Quem sabe o que é o grunge?

Mordomias 

– diziam

antes que a noite desfalecesse. 

Vultos intrusos

tornavam-se edis sem procuração

e os sonhos desmaiavam

em cadeiras que ardiam

ateadas por tochas contumazes. 

Mordomias, não 

– que os sonhos 

não se transfiguram em pesadelos 

no proveito que se acalenta

nas almas tão avarentas. 

#2142

[Crónicas do vírus, DCCXIV]

 

Talvez,

na volta do correio,

o beijo envenenado

do bumerangue.

16.9.21

Veludo

As estradas

escondem as veias

dos síndicos que as habitam. 

Oxalá

houvesse artesãos

pagos para serem escafandros

das estrofes de um dia sábio. 

As vozes

aumentam o tamanho das bocas

jogam-se contra a tirania do silêncio

em marés-vivas que sentenciam os cabos belicosos. 

Tomara

todos os reclusos da alma

soubessem do sal das estradas

o sortilégio que se insinua na lava das veias

deixando pendidos

os esgares herdados da angústia. 

As apostas 

adornam o passado sem paradeiro

na exata medida 

do entardecer que se deita sobre o olhar

em sucessivas ondas que esbracejam

a virtude de um mar atlanticamente enfurecido.

#2141

[Crónicas do vírus, DCCXIII]

 

Legados da peste (30):

uma coleção de desventuras

(instrução de leitura:

estrofe politicamente relevante).

15.9.21

Condição perpétua

As portas do avesso

o espelho das munições gastas

e no bolso

o coldre sem vírgulas

as arestas alinhadas no mosto do tempo.

 

O desfile das hipóteses

arremata as condições

e no dorso

a maresia sem cor

as lágrimas inventariadas nas mãos por gastar.

 

No lume da noite

o luar à espera de ser caiado

e na alma

o remédio sem amálgamas

os lábios povoados no corrimão do amor.

#2140

[Crónicas do vírus, DCCXII]

 

Legados da peste (29):

aos açaimes involuntários

seguem-se

vendas voluntárias sobre o olhar.

14.9.21

Escotilha

A vida devora. 

Mas não é a carne tomada,

que amanhece num fogo de tochas,

a selar o descompromisso. 

 

A vida

devora:

e os dedos

contam a matéria combustível

enquanto adivinham o inverno. 

 

No fim das trevas,

quando os fantasmas forem extintos,

levantar-se-á a tela,

enfim desembaciada,

com uma inscrição:

 

a vida devolve.

#2139

[Crónicas do vírus, DCCXI]

 

Legados da peste (28):

a vontade

traduzida

na voz 

mais soante.

13.9.21

Pluviómetro

Que mar sem nome

se dá como o cais que protege?

No leilão do medo

convocam-se epitáfios estremunhados,

as pouco convincentes palavras

que dão mote às epifanias sem paradeiro. 

As notas amontoadas 

são a morada das músicas esquecidas 

a meio de uma manhã inglória

e os braços sapadores

que, exaustos,

desfalecem ao próximo amplexo. 

Que poltrona já decadente

se oferece na litania do remanso?

As almas que se curam

não se empossam 

na curadoria de quem não são;

pegam nos pertences

e hasteiam a fuga,

o exílio, se preciso for,

para serem poupadas às vilanias sem travão. 

#2138

[Crónicas do vírus, DCCX]

 

A verosimilhança do riso

nos rostos desalfandegados.

12.9.21

#2137

[Crónicas do vírus, DCCIX]

 

O dia

em que deixamos de ser

seres açaimados.

11.9.21

#2136

[Crónicas do vírus, DCCVIII]

 

Legados da peste (27):

vestimos,

enfim,

o sabre da modéstia.

10.9.21

Serão

Há um mosto sem paga

o ramal vindicado à candeia vigente

no dorso da manhã imprevista. 

Há um penhor amarrotado

na cordilheira arrematada em promessa

e de mim é o leilão

onde se inventaria o outono.

#2135

[Crónicas do vírus, DCCVII]

 

Legados da peste (26):

uma matemática

cheia de vírgulas,

o algoritmo da incerteza.

9.9.21

Em câmara muito lenta

Sobre a manhã contrariada

uma causa perdida. 

Uma luta

contra as palavras assintomáticas

as boas rebeldes presas a uma véspera. 

O corpo não responde,

prolonga o torpor 

herdado de pesadelos sem remoço. 

Digo que não há começo

para apaziguar com o impassível recomeço. 

O dia não será fugitivo. 

Espero 

em espera diligente

que mude a maré

enquanto muda insiste

a voz. 

#2134

[Crónicas do vírus, DCCVI]

 

Legados da peste (25):

a voz emudecida,

ou apenas emaciada.

8.9.21

Maledicências

Dizem

que da antropológica pequenez

vicejam deuses,

duendes que nos amesquinham

no nanismo terminal. 

Dizem

talvez por ser costume 

dizer quando melhor seria

calar.

Pois se do fundo fado

não somos feudo

não será por metafísicas poses

que seremos desmedo.

#2133

[Crónicas do vírus, DCCV]

 

Legados da peste (24):

as promessas

deixaram de ser

páginas de um sonho.

7.9.21

Misantropia militante

O bramido

idioma da multidão

cala as vozes únicas

que a discordância se afoga

na estrénua vociferação. 

 

As vozes únicas

átomos perdidos

perdem o direito a serem voz

a menos 

que recheiem o caudal tumultuoso

do bramido tonitruante. 

 

O coro imperativo

ensina as sílabas minuciosas

e gravita na gramática rudimentar. 

 

Já se sabia

que os números esbracejam

a antítese da excelência. 

#2132

[Crónicas do vírus, DCCIV]

 

Legados da peste (23):

o direito à véspera,

resgatado das trevas.

6.9.21

Auto vindima

Com o mosto,

a filigrana de mim,

um inventário em falta:

aqueles inquéritos em moda

 

(dizem-se estivais

como se a época tola

precisasse de notários)

 

convocam as interiores peregrinações

que não tropecem no medo

ou na mentira. 

 

E talvez o medo 

seja o avesso da mentira

e os dois ilustram um binómio

 

(contudo, pouco reconhecido).

 

Uma história

depressa se transfigura

em estória

e das vozes estroinas 

ecoam palavras apenas lúgubres

ou a simulação das palavras intuídas. 

 

Cobram-se as folhas caducas

no pressentimento do Outono

 

(convém avivar a memória:

o Outono despoja o Verão);

 

à época tola 

arruma-se no demais restolho

e as fantasias

as elucubrações de que se compõem

os fingimentos

ficam sem apeadeiro. 

É nesta altura

que se vindimam as cepas

antes que caramelizem

e os frutos se esqueçam na podridão. 

 

(E, todavia,

as colheitas tardias

apuram a doçura.)

#2131

[Crónicas do vírus, DCCIII]

 

Legados da peste (22):

abraçamos as janelas

que desamedrontam o futuro.

5.9.21

Poemática

Fazer um poema

é como 

tirar as natas

depois de o leite fervido. 

#2130

[Crónicas do vírus, DCCII]

 

Legados da peste (21):

os códigos transfigurados

sem caução legífera.

4.9.21

#2129

[Crónicas do vírus, DCCI]

 

Legados da peste (20):

as máscaras tribalizadas

admitem a concurso

a hipótese do teatro perene.

#2128

[Crónicas do vírus, DCC]

 

Legados da peste (19):

as máscaras

já não são

a marca do teatro.

3.9.21

Introdução

Este é o prefácio. 

Antes do começo,

um esgrimir de intenções

que amanhecem regras do jogo. 

Os verbos telúricos

abraçam-se à vontade sem tutor. 

Quando já não houver páginas

e o crepúsculo ditar o seu império

nem de posfácios será embainhada

a memória.

#2127

[Crónicas do vírus, DCXCIX]

 

Legados da peste (18):

mudaram as etiquetas

e os azimutes

mas não mudámos de mais.

2.9.21

Exílio 3.0

Os moinhos adestrados

ensaiam o vento. 

No vale

um rumorejo

denúncia o rio

ainda infante. 

A manhã adolescente

aprende com o sol

no compasso 

das árvores que esbracejam. 

O silêncio campestre

povoa o planalto. 

O corpo ascende

como se tomasse conta

do horizonte. 

Não fala:

o silêncio estrutural

embebido

como idioma. 

Um avião

corta o céu

como se fosse uma vírgula

tartamudeada na paisagem.

A urze irrompe

pressentindo o outono. 

O olhar fixa-se nas cumeadas

como se estivesse à espera

de miradouros. 

No cruzamento

três caminhos oferecem-se

como hipóteses. 

A um canto,

discretamente,

umas alminhas apascentam 

um bouquet

enquanto as velas exibem

à exaustão do combustível. 

Ninguém diria

que tão ermo lugar

é curadoria de uma alma dispensada. 

Há vezes

em que o exílio se convoca

imperativo

no desmentido dos contos idílicos

industriados pela cidade. 

#2126

[Crónicas do vírus, DCXCVIII]

 

Nas ruas

às cegas

o mapa

sem fronteiras.