[Crónicas do vírus, DCCXXI]
Legados da peste (37):
nunca houve
sede tão grande de viver
como esta.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCXXI]
Legados da peste (37):
nunca houve
sede tão grande de viver
como esta.
Dizem do Outono que é feito de folhas caducas. As folhas não caducam. Beijam o chão em frente do tempo que se enxuga à espera de uma Primavera. O Outono é a clepsidra que bebe nas águas tumultuosas das primeiras chuvas. Não é decadência. É jura de um tempo depois, a safra de um exílio necessário. E antes que adulterem a ode ao Outono somando-lhe um f, que conste, para os devidos efeitos, que deste poema foi lavrado registo que tutela a sua exclusiva posse.
[Crónicas do vírus, DCCXX]
Legados da peste (36):
caucionemos
com toda a propriedade
que este é o Outono
do nosso contentamento.
Sabes?
O escuro ensina a ler
como as algas sobem ao mar
e acabam como punição do areal
ali despojadas
cadáveres.
Sabes?
O exame de código
não é pera doce,
segredavas
como se fosse preciso
guardar segredo das obviedades.
Sabes?
Guardamo-nos em arraiais caóticos
para nos pormos a cobro
do averno.
Sabes?
Os aventais não escondem a nudez
apenas a puerilidade que se cozinha
em degraus que são o espelho
da ingenuidade dos anciãos.
Sabes?
Às perguntas de retórica
dizemos sempre
“sim, sei”,
mesmos nos casos
em que somos profetas do iletrismo.
Do idioma lacerado
com vírgulas a destempo
e palavras torturadas
o mosto fora de prazo
e um logro banal.
A semiótica desaprende-se
no lagar da língua que se torna viva
deixando a sua antecessora
no lugar do morto.
De tanto usurpar a gramática;
a interrogação indeclinável:
será da propensão para a anarquia
ou da tentação da ignorância?
Depois das marés negras
que se acometem sobre o idioma
o desemprego está fadado
aos esculápios do idioma.
[Crónicas do vírus, DCCXVIII]
Legados da peste (34):
indisfarçáveis,
como dantes,
sem o freio do açaime.
[Crónicas do vírus, DCCXVII]
Legados da peste (33):
antes que sejamos
os nossos piores adversários
um novo código de conduta.
Percussão:
um cheirinho de idílio
não fossem os lírios definhar
e as sacerdotisas das virtudes
lavadas em lágrimas de unto
demorar-se nas portarias dos prédios.
Os gatos atiram unhas ao logradouro
e são as aves lacustres que aprendem
nos moinhos encantados
as doses necessárias para a moagem.
Antes fossem operários do pão
a chamar pelo rubicão
mas não estava vivalma por perto
e a ocasião ficou adiada.
A noite parida em luares
não desistiu dos lagares:
ao menos
as árvores não engravidam.
(E toda a gente
foi descansada para casa.)
[Crónicas do vírus, DCCXVI]
Legados da peste (32):
o mundo meândrico
disse
que não somos
a árvore centrípeta.
Mordomias
– diziam
antes que a noite desfalecesse.
Vultos intrusos
tornavam-se edis sem procuração
e os sonhos desmaiavam
em cadeiras que ardiam
ateadas por tochas contumazes.
Mordomias, não
– que os sonhos
não se transfiguram em pesadelos
no proveito que se acalenta
nas almas tão avarentas.
As estradas
escondem as veias
dos síndicos que as habitam.
Oxalá
houvesse artesãos
pagos para serem escafandros
das estrofes de um dia sábio.
As vozes
aumentam o tamanho das bocas
jogam-se contra a tirania do silêncio
em marés-vivas que sentenciam os cabos belicosos.
Tomara
todos os reclusos da alma
soubessem do sal das estradas
o sortilégio que se insinua na lava das veias
deixando pendidos
os esgares herdados da angústia.
As apostas
adornam o passado sem paradeiro
na exata medida
do entardecer que se deita sobre o olhar
em sucessivas ondas que esbracejam
a virtude de um mar atlanticamente enfurecido.
[Crónicas do vírus, DCCXIII]
Legados da peste (30):
uma coleção de desventuras
(instrução de leitura:
estrofe politicamente relevante).
As portas do avesso
o espelho das munições gastas
e no bolso
o coldre sem vírgulas
as arestas alinhadas no mosto do tempo.
O desfile das hipóteses
arremata as condições
e no dorso
a maresia sem cor
as lágrimas inventariadas nas mãos por gastar.
No lume da noite
o luar à espera de ser caiado
e na alma
o remédio sem amálgamas
os lábios povoados no corrimão do amor.
[Crónicas do vírus, DCCXII]
Legados da peste (29):
aos açaimes involuntários
seguem-se
vendas voluntárias sobre o olhar.
A vida devora.
Mas não é a carne tomada,
que amanhece num fogo de tochas,
a selar o descompromisso.
A vida
devora:
e os dedos
contam a matéria combustível
enquanto adivinham o inverno.
No fim das trevas,
quando os fantasmas forem extintos,
levantar-se-á a tela,
enfim desembaciada,
com uma inscrição:
a vida devolve.
Que mar sem nome
se dá como o cais que protege?
No leilão do medo
convocam-se epitáfios estremunhados,
as pouco convincentes palavras
que dão mote às epifanias sem paradeiro.
As notas amontoadas
são a morada das músicas esquecidas
a meio de uma manhã inglória
e os braços sapadores
que, exaustos,
desfalecem ao próximo amplexo.
Que poltrona já decadente
se oferece na litania do remanso?
As almas que se curam
não se empossam
na curadoria de quem não são;
pegam nos pertences
e hasteiam a fuga,
o exílio, se preciso for,
para serem poupadas às vilanias sem travão.
Há um mosto sem paga
o ramal vindicado à candeia vigente
no dorso da manhã imprevista.
Há um penhor amarrotado
na cordilheira arrematada em promessa
e de mim é o leilão
onde se inventaria o outono.
[Crónicas do vírus, DCCVII]
Legados da peste (26):
uma matemática
cheia de vírgulas,
o algoritmo da incerteza.
Sobre a manhã contrariada
uma causa perdida.
Uma luta
contra as palavras assintomáticas
as boas rebeldes presas a uma véspera.
O corpo não responde,
prolonga o torpor
herdado de pesadelos sem remoço.
Digo que não há começo
para apaziguar com o impassível recomeço.
O dia não será fugitivo.
Espero
em espera diligente
que mude a maré
enquanto muda insiste
a voz.
Dizem
que da antropológica pequenez
vicejam deuses,
duendes que nos amesquinham
no nanismo terminal.
Dizem
talvez por ser costume
dizer quando melhor seria
calar.
Pois se do fundo fado
não somos feudo
não será por metafísicas poses
que seremos desmedo.
[Crónicas do vírus, DCCV]
Legados da peste (24):
as promessas
deixaram de ser
páginas de um sonho.
O bramido
idioma da multidão
cala as vozes únicas
que a discordância se afoga
na estrénua vociferação.
As vozes únicas
átomos perdidos
perdem o direito a serem voz
a menos
que recheiem o caudal tumultuoso
do bramido tonitruante.
O coro imperativo
ensina as sílabas minuciosas
e gravita na gramática rudimentar.
Já se sabia
que os números esbracejam
a antítese da excelência.