23.9.21

#2149

[Crónicas do vírus, DCCXXI]

 

Legados da peste (37):

nunca houve 

sede tão grande de viver 

como esta.

22.9.21

Ode ao Outono

Dizem do Outono que é feito de folhas caducas. As folhas não caducam. Beijam o chão em frente do tempo que se enxuga à espera de uma Primavera. O Outono é a clepsidra que bebe nas águas tumultuosas das primeiras chuvas. Não é decadência. É jura de um tempo depois, a safra de um exílio necessário.  E antes que adulterem a ode ao Outono somando-lhe um f, que conste, para os devidos efeitos, que deste poema foi lavrado registo que tutela a sua exclusiva posse.

#2148

[Crónicas do vírus, DCCXX]

 

Legados da peste (36):

caucionemos

com toda a propriedade

que este é o Outono 

do nosso contentamento.

21.9.21

Meridiano do Canidelo

Sabes?

O escuro ensina a ler

como as algas sobem ao mar

e acabam como punição do areal

ali despojadas

cadáveres.

 

Sabes?

O exame de código

não é pera doce,

segredavas

como se fosse preciso 

guardar segredo das obviedades.

 

Sabes?

Guardamo-nos em arraiais caóticos

para nos pormos a cobro

do averno.

 

Sabes?

Os aventais não escondem a nudez

apenas a puerilidade que se cozinha

em degraus que são o espelho

da ingenuidade dos anciãos.

 

Sabes?

Às perguntas de retórica

dizemos sempre

“sim, sei”,

mesmos nos casos

em que somos profetas do iletrismo.

#2147

[Crónicas do vírus, DCCXIX]

 

Legados da peste (35):

sem a voz do medo

o verbo completo.

20.9.21

Filologia

Do idioma lacerado

com vírgulas a destempo

e palavras torturadas

o mosto fora de prazo

e um logro banal. 

 

A semiótica desaprende-se

no lagar da língua que se torna viva

deixando a sua antecessora

no lugar do morto. 

 

De tanto usurpar a gramática;

a interrogação indeclinável:

será da propensão para a anarquia

ou da tentação da ignorância?

 

Depois das marés negras

que se acometem sobre o idioma 

o desemprego está fadado

aos esculápios do idioma.

#2146

[Crónicas do vírus, DCCXVIII]

 

Legados da peste (34):

indisfarçáveis,

como dantes,

sem o freio do açaime.

#2145

[Crónicas do vírus, DCCXVII]

 

Legados da peste (33):

antes que sejamos

os nossos piores adversários

um novo código de conduta.

19.9.21

Ao menos as árvores não engravidam

Percussão:

um cheirinho de idílio

não fossem os lírios definhar

e as sacerdotisas das virtudes

lavadas em lágrimas de unto

demorar-se nas portarias dos prédios.

Os gatos atiram unhas ao logradouro

e são as aves lacustres que aprendem

nos moinhos encantados

as doses necessárias para a moagem.

Antes fossem operários do pão

a chamar pelo rubicão

mas não estava vivalma por perto

e a ocasião ficou adiada.

A noite parida em luares

não desistiu dos lagares:

ao menos

as árvores não engravidam.

 

(E toda a gente 

foi descansada para casa.)

#2144

[Crónicas do vírus, DCCXVI]

 

Legados da peste (32):

o mundo meândrico

disse

que não somos

a árvore centrípeta.

18.9.21

#2143

[Crónicas do vírus, DCCXV]

 

Legados da peste (31):

conseguiremos

deixar de ser

o ser latente.

17.9.21

Quem sabe o que é o grunge?

Mordomias 

– diziam

antes que a noite desfalecesse. 

Vultos intrusos

tornavam-se edis sem procuração

e os sonhos desmaiavam

em cadeiras que ardiam

ateadas por tochas contumazes. 

Mordomias, não 

– que os sonhos 

não se transfiguram em pesadelos 

no proveito que se acalenta

nas almas tão avarentas. 

#2142

[Crónicas do vírus, DCCXIV]

 

Talvez,

na volta do correio,

o beijo envenenado

do bumerangue.

16.9.21

Veludo

As estradas

escondem as veias

dos síndicos que as habitam. 

Oxalá

houvesse artesãos

pagos para serem escafandros

das estrofes de um dia sábio. 

As vozes

aumentam o tamanho das bocas

jogam-se contra a tirania do silêncio

em marés-vivas que sentenciam os cabos belicosos. 

Tomara

todos os reclusos da alma

soubessem do sal das estradas

o sortilégio que se insinua na lava das veias

deixando pendidos

os esgares herdados da angústia. 

As apostas 

adornam o passado sem paradeiro

na exata medida 

do entardecer que se deita sobre o olhar

em sucessivas ondas que esbracejam

a virtude de um mar atlanticamente enfurecido.

#2141

[Crónicas do vírus, DCCXIII]

 

Legados da peste (30):

uma coleção de desventuras

(instrução de leitura:

estrofe politicamente relevante).

15.9.21

Condição perpétua

As portas do avesso

o espelho das munições gastas

e no bolso

o coldre sem vírgulas

as arestas alinhadas no mosto do tempo.

 

O desfile das hipóteses

arremata as condições

e no dorso

a maresia sem cor

as lágrimas inventariadas nas mãos por gastar.

 

No lume da noite

o luar à espera de ser caiado

e na alma

o remédio sem amálgamas

os lábios povoados no corrimão do amor.

#2140

[Crónicas do vírus, DCCXII]

 

Legados da peste (29):

aos açaimes involuntários

seguem-se

vendas voluntárias sobre o olhar.

14.9.21

Escotilha

A vida devora. 

Mas não é a carne tomada,

que amanhece num fogo de tochas,

a selar o descompromisso. 

 

A vida

devora:

e os dedos

contam a matéria combustível

enquanto adivinham o inverno. 

 

No fim das trevas,

quando os fantasmas forem extintos,

levantar-se-á a tela,

enfim desembaciada,

com uma inscrição:

 

a vida devolve.

#2139

[Crónicas do vírus, DCCXI]

 

Legados da peste (28):

a vontade

traduzida

na voz 

mais soante.

13.9.21

Pluviómetro

Que mar sem nome

se dá como o cais que protege?

No leilão do medo

convocam-se epitáfios estremunhados,

as pouco convincentes palavras

que dão mote às epifanias sem paradeiro. 

As notas amontoadas 

são a morada das músicas esquecidas 

a meio de uma manhã inglória

e os braços sapadores

que, exaustos,

desfalecem ao próximo amplexo. 

Que poltrona já decadente

se oferece na litania do remanso?

As almas que se curam

não se empossam 

na curadoria de quem não são;

pegam nos pertences

e hasteiam a fuga,

o exílio, se preciso for,

para serem poupadas às vilanias sem travão. 

#2138

[Crónicas do vírus, DCCX]

 

A verosimilhança do riso

nos rostos desalfandegados.

12.9.21

#2137

[Crónicas do vírus, DCCIX]

 

O dia

em que deixamos de ser

seres açaimados.

11.9.21

#2136

[Crónicas do vírus, DCCVIII]

 

Legados da peste (27):

vestimos,

enfim,

o sabre da modéstia.

10.9.21

Serão

Há um mosto sem paga

o ramal vindicado à candeia vigente

no dorso da manhã imprevista. 

Há um penhor amarrotado

na cordilheira arrematada em promessa

e de mim é o leilão

onde se inventaria o outono.

#2135

[Crónicas do vírus, DCCVII]

 

Legados da peste (26):

uma matemática

cheia de vírgulas,

o algoritmo da incerteza.

9.9.21

Em câmara muito lenta

Sobre a manhã contrariada

uma causa perdida. 

Uma luta

contra as palavras assintomáticas

as boas rebeldes presas a uma véspera. 

O corpo não responde,

prolonga o torpor 

herdado de pesadelos sem remoço. 

Digo que não há começo

para apaziguar com o impassível recomeço. 

O dia não será fugitivo. 

Espero 

em espera diligente

que mude a maré

enquanto muda insiste

a voz. 

#2134

[Crónicas do vírus, DCCVI]

 

Legados da peste (25):

a voz emudecida,

ou apenas emaciada.

8.9.21

Maledicências

Dizem

que da antropológica pequenez

vicejam deuses,

duendes que nos amesquinham

no nanismo terminal. 

Dizem

talvez por ser costume 

dizer quando melhor seria

calar.

Pois se do fundo fado

não somos feudo

não será por metafísicas poses

que seremos desmedo.

#2133

[Crónicas do vírus, DCCV]

 

Legados da peste (24):

as promessas

deixaram de ser

páginas de um sonho.

7.9.21

Misantropia militante

O bramido

idioma da multidão

cala as vozes únicas

que a discordância se afoga

na estrénua vociferação. 

 

As vozes únicas

átomos perdidos

perdem o direito a serem voz

a menos 

que recheiem o caudal tumultuoso

do bramido tonitruante. 

 

O coro imperativo

ensina as sílabas minuciosas

e gravita na gramática rudimentar. 

 

Já se sabia

que os números esbracejam

a antítese da excelência.