[Crónicas do vírus, DCCXXVI]
Legados da peste (42):
seremos o futuro
arroteado
pela semente de outrora?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCXXVI]
Legados da peste (42):
seremos o futuro
arroteado
pela semente de outrora?
Um tumulto
convoca a lava
e as horas ficam
sem apeadeiro.
Os tontos
levam de vencida
o jogo onde se jogam desejos
– são embaixadores da descautela.
No íman da manhã
por cima da chuva destemperada
os olhos combustíveis
são devolvidos à letargia:
não combatem flagelos
nem acreditam em incendiários
na mais funda desilusão
dos outrora dedicados seguidores das bitolas.
Já não há lugares ideais
nem idiotas úteis.
Sei
que o destino
não é uma doença
calculada por deuses
sem paradeiro.
O destino
é o oráculo do passado
sem as dioptrias dos prescientes,
dos eunucos à medida dos desprazeres.
[Crónicas do vírus, DCCXXV]
Legados da peste (41):
os dados estão lançados
e o futuro
não se faz esperar.
Do osso fundo
não franqueia
a publicidade.
Os artistas inválidos
não chegam
às ordens do pesar.
Se não fôssemos destratados
como imberbes impensantes
e a verve não seguisse a puerilidade
um módico seria recolhido
desta que é uma árvore
desmatada.
[Crónicas do vírus, DCCXXIV]
Legados da peste (40):
ainda falta o inventário
de todas as cicatrizes
das batalhas travadas.
(Em dia de “reflexão” legalmente obrigatória em véspera de eleições)
São as desarmas
que têm voz
no espaço horizontal
que se atravessa
entre a matérias diferentes dos dias.
A boca arranca um verbo ao silêncio.
Joga-o
contra os mastins disfarçados
que colonizam a tirania
também ela um ardil.
No gotejar noturno da lua
enquistam os boémios a matéria sanguínea
como um dia fosse feito de noite
e as arcadas sinónimo de desarrelias.
O resto
fica conta dos acasos
que em descasos se armadilham
à espera da alvorada baça
e dos corpos ainda mal acordados,
estremunhados no sarcasmo da rotina.
Os olhos não vêm nada.
Mergulham
no niilismo da alma que os traduzem.
Se as migalhas varridas das vésperas
forem a poluição de uma alquimia
tirem-se à sorte as lotarias
joguem-se os corpos
contra a ebulição dos dias marasmos
e de um golpe só
vindimem-se os idiomas que se fundem
nas bocas várias que se entrecruzam.
Os horários do futuro
são um segredo que todos sabem.
Não há voto mais democrático.
Olho
por dentro do olhar
as cordilheiras amparadas no corpo
e arrumo a pele glacial no corrimão do dia.
Olho
para dentro do olhar
a macieza dos livros fartos
e da foz onde as palavras se fundem no fogo
trago as cortinas desalojadas
as janelas pendendo sobre a matriz da manhã.
Olho
depois do olhar
e encerro nas arestas gastas
o aprumo do passado.
Olho
por cima do olhar
por não ciciar segredos ao vento de atalaia
e caminho a esmo
sem temer os vultos perenes que esbracejam
no lugar mais ermo de todos.
Dizem do Outono que é feito de folhas caducas. As folhas não caducam. Beijam o chão em frente do tempo que se enxuga à espera de uma Primavera. O Outono é a clepsidra que bebe nas águas tumultuosas das primeiras chuvas. Não é decadência. É jura de um tempo depois, a safra de um exílio necessário. E antes que adulterem a ode ao Outono somando-lhe um f, que conste, para os devidos efeitos, que deste poema foi lavrado registo que tutela a sua exclusiva posse.
[Crónicas do vírus, DCCXX]
Legados da peste (36):
caucionemos
com toda a propriedade
que este é o Outono
do nosso contentamento.
Sabes?
O escuro ensina a ler
como as algas sobem ao mar
e acabam como punição do areal
ali despojadas
cadáveres.
Sabes?
O exame de código
não é pera doce,
segredavas
como se fosse preciso
guardar segredo das obviedades.
Sabes?
Guardamo-nos em arraiais caóticos
para nos pormos a cobro
do averno.
Sabes?
Os aventais não escondem a nudez
apenas a puerilidade que se cozinha
em degraus que são o espelho
da ingenuidade dos anciãos.
Sabes?
Às perguntas de retórica
dizemos sempre
“sim, sei”,
mesmos nos casos
em que somos profetas do iletrismo.
Do idioma lacerado
com vírgulas a destempo
e palavras torturadas
o mosto fora de prazo
e um logro banal.
A semiótica desaprende-se
no lagar da língua que se torna viva
deixando a sua antecessora
no lugar do morto.
De tanto usurpar a gramática;
a interrogação indeclinável:
será da propensão para a anarquia
ou da tentação da ignorância?
Depois das marés negras
que se acometem sobre o idioma
o desemprego está fadado
aos esculápios do idioma.
[Crónicas do vírus, DCCXVIII]
Legados da peste (34):
indisfarçáveis,
como dantes,
sem o freio do açaime.
[Crónicas do vírus, DCCXVII]
Legados da peste (33):
antes que sejamos
os nossos piores adversários
um novo código de conduta.
Percussão:
um cheirinho de idílio
não fossem os lírios definhar
e as sacerdotisas das virtudes
lavadas em lágrimas de unto
demorar-se nas portarias dos prédios.
Os gatos atiram unhas ao logradouro
e são as aves lacustres que aprendem
nos moinhos encantados
as doses necessárias para a moagem.
Antes fossem operários do pão
a chamar pelo rubicão
mas não estava vivalma por perto
e a ocasião ficou adiada.
A noite parida em luares
não desistiu dos lagares:
ao menos
as árvores não engravidam.
(E toda a gente
foi descansada para casa.)
[Crónicas do vírus, DCCXVI]
Legados da peste (32):
o mundo meândrico
disse
que não somos
a árvore centrípeta.
Mordomias
– diziam
antes que a noite desfalecesse.
Vultos intrusos
tornavam-se edis sem procuração
e os sonhos desmaiavam
em cadeiras que ardiam
ateadas por tochas contumazes.
Mordomias, não
– que os sonhos
não se transfiguram em pesadelos
no proveito que se acalenta
nas almas tão avarentas.
As estradas
escondem as veias
dos síndicos que as habitam.
Oxalá
houvesse artesãos
pagos para serem escafandros
das estrofes de um dia sábio.
As vozes
aumentam o tamanho das bocas
jogam-se contra a tirania do silêncio
em marés-vivas que sentenciam os cabos belicosos.
Tomara
todos os reclusos da alma
soubessem do sal das estradas
o sortilégio que se insinua na lava das veias
deixando pendidos
os esgares herdados da angústia.
As apostas
adornam o passado sem paradeiro
na exata medida
do entardecer que se deita sobre o olhar
em sucessivas ondas que esbracejam
a virtude de um mar atlanticamente enfurecido.
[Crónicas do vírus, DCCXIII]
Legados da peste (30):
uma coleção de desventuras
(instrução de leitura:
estrofe politicamente relevante).
As portas do avesso
o espelho das munições gastas
e no bolso
o coldre sem vírgulas
as arestas alinhadas no mosto do tempo.
O desfile das hipóteses
arremata as condições
e no dorso
a maresia sem cor
as lágrimas inventariadas nas mãos por gastar.
No lume da noite
o luar à espera de ser caiado
e na alma
o remédio sem amálgamas
os lábios povoados no corrimão do amor.
[Crónicas do vírus, DCCXII]
Legados da peste (29):
aos açaimes involuntários
seguem-se
vendas voluntárias sobre o olhar.
A vida devora.
Mas não é a carne tomada,
que amanhece num fogo de tochas,
a selar o descompromisso.
A vida
devora:
e os dedos
contam a matéria combustível
enquanto adivinham o inverno.
No fim das trevas,
quando os fantasmas forem extintos,
levantar-se-á a tela,
enfim desembaciada,
com uma inscrição:
a vida devolve.