7.10.21

Haste inteira

Cismo

com o sismo

            que é meu cisma.

Do sismo 

     que a esmo

            me crisma.

Nesta cisma

     rejeito o carisma

            contras os ismos.

Se no sismo

     valido o istmo

            cismo que sou cisma de mim.

#2164

[Crónicas do vírus, DCCXXXVI]

 

Legados da peste (52):

somos sentinelas,

um devir irrenunciável.

6.10.21

O contrabaixo fala mais alto

Vago a pele na tarde sem marca.

Havia musgo

versos e sintonia

entre a amálgama do saber

e o vazio da morte.

Se em meu pecúlio me escondo

não é um estertor a carpir um futuro;

é a serena exposição dos abetos 

arbustos como outros

a notável indiferença que somos sem mágoa.

A tola esperança na fadiga dos estetas

agrava os fusíveis sem escala

e nas trevas ferve o destemor

por conta das mãos contundentes

que não se desalojam das raízes fundas

a razia a prazo no pranto sem juras.

É neste magma que ordeno a lava.

Façam-se por conta das anónimas preces

os volteios que 

registados 

se fundam nos vitrais.

Entre a maré da tarde 

e a incontinência da noite

sou eu

marinheiro sem praça

a estiolar no clã que se estremunha

eu,

perdidos os versos na armadilha da fala,

sentido com tanta prodigalidade.

Da marca

não registada

levo a pele 

aberta por tatuagens sem autor.

#2163

[Crónicas do vírus, DCCXXXV]

 

Legados da peste (51):

a vida é um jogo

sem se fazer

um jogo com a vida.

#2162

[Crónicas do vírus, DCCXXXIV]

 

Legados da peste (50):

a liturgia dos oportunistas,

uma procissão inacabada.

5.10.21

Semáforo

Antes que seja cedo

e as miragens se abracem ao corpo

a fala angustia-se no teatro da rebeldia.

 

Ao entardecer

contam-se os abismos esquecidos

sem povoar as paredes com a prematura candeia.

 

Não se deixam louvores

aos mártires de outrora

pois deles é o heroísmo em volteios pueris.

#2161

[Crónicas do vírus, DCCXXXIII]

 

Legados da peste (49):

o breviário da vida

a opulência

nunca esquecida.

4.10.21

A espada contra

Arrumam-se as sílabas

no quarto onde o hotel 

se faz toponímia. 

Não tropecem nas palavras

como se uma fala ávida as apressasse

ditando a bulimia da gramática. 

 

As palavras não têm pressa. 

 

Só se a intenção

seja semear a eito

entorses na fala

e terminarmos 

na impossibilidade de entendimento. 

 

(E isso seja de propósito.)

#2160

[Crónicas do vírus, DCCXXXII]

 

Legados da peste (48):

oxalá

quem legifera

tivesse aprendido

a lição da elasticidade.

3.10.21

#2159

[Crónicas do vírus, DCCXXXI]

 

Legados da peste (47):

as emboscadas

não se dispõem 

no tabuleiro dos pressentimentos.

2.10.21

Aviso

Esta é a errata:

o fogo recenseado

agita a madrugada.

As mãos estendem o luar

cozinhando as estrelas outonais.

A noite não está sozinha

apesar das aparências.

Os vultos despidos

acenam pela promessa da manhã.

Não sabem

da sua transfiguração

em esqueletos válidos.

#2158

[Crónicas do vírus, DCCXXX]

 

Legados da peste (46):

o decoroso espetáculo

da vingança do exílio.

1.10.21

A roda da vida

A roda-viva

joga-se 

contra o olhar amedrontado. 

A roda

está viva

e falta saber

se o medo é a medida válida

do olhar. 

A vida à roda

não pede alvíssaras

e os vultos assisados

ficam a léguas do medo castrador. 

A vida roda

e o olhar sem freios

tem a fala mais alta

embainhado nas fronteiras de onde falam

os deslimites.

#2157

[Crónicas do vírus, DCCXXIX]

 

Legados da peste (45):

temos a certeza

que já não andamos

em areias movediças?

30.9.21

Os versos pagãos

Os versos pagãos 

não têm escolta.

As suas mãos almiscaradas

não se arruínam na doca da noite.

Acotovelam-se os disfarçados

como se a sua dança fosse ardil.

Os versos pagãos

escondem-se no crepúsculo.

Ditam as sílabas

para o túmulo onde descansam

as vozes mutiladas.

Não precisam de regresso:

a eternidade da véspera

cuidou de os emoldurar 

nas árvores marmoreadas.

Os versos pagãos

são a voz flagrante

conjeturada no ermo onde falam 

os silêncios.

#2156

[Crónicas do vírus, DCCXXVIII]

 

Legados da peste (44):

as estátuas que faltam,

ou a mnemónica 

dos tributos em débito.

29.9.21

Destilaria

Não espero grande colheita do saque. 

A matéria vã recusa a solidão. 

Entre a teimosia do nanismo 

e o precipício dos néones

os nenúfares inertes não se escondem 

nas sombras. 

Os meticulosos dizeres prostituem-se 

por quem os treslê. 

Não é a noção de desperdício 

que avança a caução. 

Já tive a minha dose de embaixadores. 

Não vou pelas poses estadistas

nem sufrago os mentores de apocalipses. 

Sou de uma alcateia sem nome

a marca registada sem registo

e ao tira-teimas entrego 

as teimas impertinentes

só à espera de pronunciamento de culpa. 

Disso não espero pelo juízo alheio. 

#2155

[Crónicas do vírus, DCCXXVII]

 

Legados da peste (43):

dedicatória aos ausentes

na anamnese dos tempos.

28.9.21

Úbere

Fiz desta ametista

um dócil obelisco

não por falta de rima

mas por ausentes armas. 

Desavencei-me da matança

não por armas ausentes

mas porque acabara de ser coroado

com a ametista,

o meu o obelisco.

Se perguntarem

direi

em intervalo das empreitadas

que não fugi dos medos;

apenas fui eu

estuário por dentro de um delta

dádiva de um esbracejar descontínuo

na alma emparedada pelos lamentos furtivos

escândalo por vezes, 

talvez,

um arroubo fruindo do caudal da natureza

sempre, sempre,

na recusa de um nada. 

#2154

[Crónicas do vírus, DCCXXVI]

 

Legados da peste (42):

seremos o futuro 

arroteado 

pela semente de outrora?

27.9.21

Sou deste basalto que arrefeceu

Um tumulto

convoca a lava

e as horas ficam 

sem apeadeiro. 

Os tontos

levam de vencida

o jogo onde se jogam desejos 

– são embaixadores da descautela. 

 

No íman da manhã

por cima da chuva destemperada

os olhos combustíveis 

são devolvidos à letargia:

não combatem flagelos

nem acreditam em incendiários

na mais funda desilusão

dos outrora dedicados seguidores das bitolas. 

 

Já não há lugares ideais

nem idiotas úteis.

Sobre o significado de destino

Sei

que o destino

não é uma doença

calculada por deuses

sem paradeiro. 

 

O destino

é o oráculo do passado

sem as dioptrias dos prescientes,

dos eunucos à medida dos desprazeres.

#2153

[Crónicas do vírus, DCCXXV]

 

Legados da peste (41):

os dados estão lançados

e o futuro 

não se faz esperar.

26.9.21

Já não há O’Neills na publicidade

Do osso fundo

não franqueia

a publicidade.

Os artistas inválidos

não chegam

às ordens do pesar.

Se não fôssemos destratados

como imberbes impensantes

e a verve não seguisse a puerilidade

um módico seria recolhido

desta que é uma árvore 

desmatada.

#2152

[Crónicas do vírus, DCCXXIV]

 

Legados da peste (40):

ainda falta o inventário

de todas as cicatrizes

das batalhas travadas.

25.9.21

Democracia sem filtros

(Em dia de “reflexão” legalmente obrigatória em véspera de eleições)

 

São as desarmas

que têm voz

no espaço horizontal

que se atravessa

entre a matérias diferentes dos dias. 

A boca arranca um verbo ao silêncio. 

Joga-o

contra os mastins disfarçados

que colonizam a tirania

também ela um ardil. 

No gotejar noturno da lua

enquistam os boémios a matéria sanguínea

como um dia fosse feito de noite

e as arcadas sinónimo de desarrelias.

O resto

fica conta dos acasos

que em descasos se armadilham

à espera da alvorada baça

e dos corpos ainda mal acordados,

estremunhados no sarcasmo da rotina. 

Os olhos não vêm nada. 

Mergulham 

no niilismo da alma que os traduzem. 

Se as migalhas varridas das vésperas

forem a poluição de uma alquimia 

tirem-se à sorte as lotarias 

joguem-se os corpos 

contra a ebulição dos dias marasmos

e de um golpe só

vindimem-se os idiomas que se fundem

nas bocas várias que se entrecruzam. 

Os horários do futuro

são um segredo que todos sabem. 

Não há voto mais democrático. 

#2151

[Crónicas do vírus, DCCXXIII]

 

Legados da peste (39):

saímos das ruínas

averbadas pelo medo.

24.9.21

Certidão de amador

Olho 

por dentro do olhar

as cordilheiras amparadas no corpo

e arrumo a pele glacial no corrimão do dia. 

Olho

para dentro do olhar

a macieza dos livros fartos

e da foz onde as palavras se fundem no fogo

trago as cortinas desalojadas

as janelas pendendo sobre a matriz da manhã. 

Olho

depois do olhar

e encerro nas arestas gastas

o aprumo do passado. 

Olho 

por cima do olhar

por não ciciar segredos ao vento de atalaia

e caminho a esmo

sem temer os vultos perenes que esbracejam

no lugar mais ermo de todos. 

#2150

[Crónicas do vírus, DCCXXII]

 

Legados da peste (38):

tudo não foi 

mais do que um parêntesis.

23.9.21

Bula

O verbo

adverso 

no verso

do advérbio;

a tempestade perfeita

para o poema desastrado.