[Crónicas do vírus, DCCLXVIII]
Legados da peste (84):
enlutados,
sem parecer que sim,
na gloriosa marcha
até ao próximo precipício.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCLXVIII]
Legados da peste (84):
enlutados,
sem parecer que sim,
na gloriosa marcha
até ao próximo precipício.
[Crónicas do vírus, DCCLXVII]
Legados da peste (83):
náufragos,
habitantes
de uma boia salva-vidas.
[Crónicas do vírus, DCCLXVI]
Legados da peste (82):
contra a deslembrança
a boca faminta do monstro
a sair do esconderijo.
Não se esconde
a ira da Terra.
As veias incensadas
arrematam a terra por fora
e de sua lava amanhece um ontem
transfigurado.
Um apanhado de estetas
extasia-se
provavelmente insultando
(sem darem conta)
os que perderam tudo
para a boca faminta da lava
rejeitada pelo vulcão.
[Crónicas do vírus, DCCLXV]
Legados da peste (81):
A maré que se abate
outra vez
com a fiança da altivez.
Não constam do património
os restos de dias sem bitola.
Os murmúrios
rugem nas arcadas da memória.
Não se desembaraçam
na sua infinita complexidade
como se neles houvesse labirintos puídos.
Às vezes
o caudal desvia-se das intenções
e são os pés gastos que narram a história.
Sem o avesso da pele
não contamos;
nem como cobaias de nós mesmos.
Oxalá houvesse fronteiras.
Só pelo prazer de as atravessar.
[Crónicas do vírus, DCCLXIV]
Legados da peste (80):
navegamos entre
o investimento na euforia
e a desconfiança dos fantasmas.
O lugar vago
não é o paradeiro sem intenção
uma espécie de orfandade estiolada
um pesar que se pesa
na lassidão de um silêncio.
O lugar que se vaga
é uma metáfora que se desenha
na urdidura dos dedos artesãos
afidalgados por uma vontade estrénua.
Os lugares que vagam
estão à espera
do lugar de um corpo.
Nunca chegam a vagar
enquanto não for vaga a vontade
dos corpos que se não rendem
ao vagar.
[Crónicas do vírus, DCCLXIII]
Legados da peste (79):
a perpetuação
da arqueologia
da vulnerabilidade.
Dia
de todos os santos
incluindo eu.
(Ou:
dia de miopia agravada
e de julgamento em causa própria.)
[Crónicas do vírus, DCCLXII]
Legados da peste (78):
um forte sem fronteiras,
a usura do desmedo
(ou a província da impaciência).
Amoedo a diplomacia cortante
as armas guardadas no quartel
e a demais guarnição
(como não?)
aquartelada.
(Se fosse mandante
seria das poucas ordenanças
por mim lavrada:
desarmar o exército.)
Se a teimosia vingasse
as rodas dentadas mudavam de lugar
e o mundo,
este mundo tão perfeito
e ao mesmo repleto de deformidades,
não seria o mesmo.
E eu
ainda estou a tentar perceber
se um diferente mundo
seria menção recomendável.
[Crónicas do vírus, DCCLXI]
Legados da peste (77):
o regateio
das vozes que resgatam
o lugar dissipado.
[Crónicas do vírus, DCCLX]
Legados da peste (76):
não na boca do lobo
na pele do lobo
(outra vez).
Dizia:
a eternidade
o lance venal que se deita
nos segredos improcedentes
de um rio que se não sustém
na demanda do estuário
onde visitado é pelo anúncio
do estertor.
[Crónicas do vírus, DCCLIX]
Legados da peste (75):
a corruptela da altivez
no venal esquecimento.
O outono falava.
A desarrumação do chão
(folhas caducas já sem lugar nos ramos)
o céu antagonista
o mar que queria transbordar
transportando no seu azimute
uma ira mal calculada
a chuva arrastada pelo vento insubmisso;
as pessoas mal-humoradas
de tão mal-habituadas a um outono severo.
[Crónicas do vírus, DCCLVIII]
Legados da peste (74):
agora
é a voz da cacofonia
pois dantes
foi a vez da mordaça.
Como somos:
se não a réplica
do que julgamos ser
feriado enxertado em página baça
intransigência com o avesso recusado
turno onde nós desafeiçoamos do dia.
Somos
o contrário do avesso
em que juramos não habitar.
Somos
a indiferença
por dentro de nós.
Nestes preparos
de que serve
o bestiário de nos vestirmos
tão solenemente importantes
se nem por dentro de nós
disso retiramos importância?
[Crónicas do vírus, DCCLVII]
Legados da peste (73):
a deserção
do deserto interior
em retaliação
contra a misantropia forçada.
A absolvição
não se abraça à lucidez.
Toma-se
em doses homeopáticas
antes que seja do tempo irado
a safra restante.
As escamas puem a pele aturdida
num opúsculo de decadência
que não estava no programa.
Fala-se da senescência
e as mãos furtivas
procuram um outro mapa
desencantadas
com o augúrio do tempo presente
que parece conspirar com um porvir belicoso.
Fogem os dedos trémulos
(decantados numa miríade crepuscular)
das estrofes aprisionadas em labirintos
gastas em fogos noturnos
como se andassem à candeia
no chamamento de uma lua embaciada.
Os corpos adiantam-se ao tempo
(diz-se, com angústia sentida).
Aos altares sem paradeiro
responde-se com a contumácia indiscreta
antes que sejam tardios
os murmúrios que se emaranham nos sonhos.
A ferrugem das ideias
não parece ter sido vertida no estuário
enquanto o corpo extático se arrasta
na marca da usura
(ou com a usura das marcas hasteadas,
quem sabe?).
[Crónicas do vírus, DCCLVI]
Legados da peste (72):
das juras desandadas
às bandeiras por arrematar.
Chamamos os diamantes por grosso
um lápis assentando no xisto
a tentar fazer a diferença.
O fortuito pesar não pesa nas olheiras
que antes de serem um acaso
fruem das varandas deitadas
sobre as luzes varonis.
Sedentos de labirintos escondidos
os moradores das almas gastas
todavia
desencomendavam-se da decadência
atribuindo-a vizinho primeiro.
Antes que viesse a noite
que desse lugar ao luar furtivo
deixando a ossatura bem composta,
desistindo do empalidecido dia insistente
na vertigem de um beijo ajuramentado,
juntámos as páginas num sobressalto sem nome.
Sempre dissemos
que não tínhamos medo de aeroportos
e as avenidas fartas à mercê de idiomas tantos
disso fizeram prova.
O testamento dar-se-á a conhecer
em memória futura.
A espera é o que nos espera
enquanto não nos debatemos
com a exaustão da lisura.
[Crónicas do vírus, DCCLIV]
Legados da peste (70):
voltamos,
ao que parece,
a escrever a fala
a tinta-da-china.
[Crónicas do vírus, DCCLIII]
Legados da peste (69):
as bandeiras que bordam uma fala,
porta-vozes da vingança.
No nome de um rio
um fingimento:
quanto do caudal
leva os pergaminhos dos afluentes
e aquela água é um espelho cosmopolita
até esmaecer no lugar remoto
onde se metamorfoseia em mar.
No rio centrípeto
os caudais afluentes
dissolvem-se num nome sem petição.
E no mar
quanto do seu nome
é feito de rios
que nele perderam voz.