[Crónicas do vírus, DCCCXVII]
Legados da peste (133):
há máscaras açaimes;
e máscaras
bandeiras da estética.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCXVII]
Legados da peste (133):
há máscaras açaimes;
e máscaras
bandeiras da estética.
A ponte
maior
do que o rio.
O estuário
acomoda-se.
É o fotógrafo
da paisagem
adereçada com a ponte.
A ponte
subleva-se
contra as fronteiras.
É poliglota das almas.
Casamenteira
(por que não admiti-lo?).
À ponte
lembra-se
a serventia
quando reparações
a atrasam.
[Crónicas do vírus, DCCCXVI]
Legados da peste (132):
se em vez de atalhos
nos dessem
sol sem giestas
e poemas no adro.
[Crónicas do vírus, DCCCXV]
Legados da peste (131):
a cada curva da peste
um pontapé nos olhos,
cortesia dos regentes.
[Crónicas do vírus, DCCCXIV]
Legados da peste (130):
de adiamento em concessão
transportados
pelo pérfido buço da peste.
A boca sem tamanho
maior do que a boca de um cão faminto
estipula a chuva tardia
no arranjo delicodoce das árvores matinais.
Serve de estuário aos impropérios
diletante juramento das presas de infâmias
ou apenas um enclave
onde se situam as manhãs sem paradeiro
sem toponímia que as salve
sem fruição.
O sangue sincopado mente aos costumes.
A boca fanfarrona desdiz-se
e ninguém toma conta da mitomania.
Pudera.
Os costumes só são bons
se forem useiros no tributo à verdade
por mais que os seus apóstolos
mintam
com os dentes puídos que disfarçam
no impossível esconderijo da boca disforme.
[Crónicas do vírus, DCCCXIII]
Legados da peste (129):
um vai-e-vem
interminável
a perguntar pela resistência.
[Crónicas do vírus, DCCCXII]
Legados da peste (128):
o enxovalho da desconfiança
é o perjúrio da dignidade.
A moratória
espera pela lassidão do tempo.
Não se adiam
se não os coices da alvorada.
Entre as cicatrizes do futuro
e o fingimento do presente
pressente-se
uma máscara descida sobre rostos
amedrontados.
Deixamos as palavras de fora
por serem corpos
os seus porta-vozes.
Na miríade de janelas
deitamos o olhar
nas que desembaraçam os mares.
Pudessem os silêncios
esboçar o tanto que falam os corpos
e eram poemas os tradutores de loas.
Deixamos as palavras de fora
enquanto ciciamos os segredos
de que são procuradores os corpos.
De pouco mais linguagem precisamos
a não ser os corpos tutores das coreografias
em rima com o silêncio.
[Crónicas do vírus, DCCCIX]
Legados da peste (125):
somos
o viveiro
do imenso nada
em que nos consumimos.
A casa sem verbos:
desarruma-se o livro centrípeto
enquanto a maresia desenha as nuvens
e um pedinte, absorto, mergulha na nostalgia.
(Fosse esse
o seu único sortilégio.)
Não são as décadas que falam;
se ao menos as preces fossem pagas
delas diriam as cinzas
que os amanhãs compensam.
Mas o caudal vaga na curvatura do rosto
sem que todos os peixes sejam extintos
e as mãos se gastem na estreiteza do labirinto.
Às vezes volteio os dados
como se soubesse que desse sortilégio
um desenho reinventado
seria um oráculo remediado.
Não desisto dos medos que acautelam
em rimas desordenadas
a meias com a meação de que me dou
guardando a parte sobrante
para juros ulteriores.
Se os feiticeiros fossem ao mar
quem sabe se a safra seria generosa?
(Ou apenas
a medida da incorrigível cobiça
a forca que se perpetra contra os Homens.)
Perguntas como esta
são como dádivas anónimas
um corvo vigilante que segue o rasto do sangue
antes que o sangue seja um diadema
e da carne se exponha uma fratura;
o tempo visível não está à mostra.
Cuidamos das armas que recusam a beligerância
e sabemos
em juras sem procurador
que não sobra ninguém no pútrido campo
onde se terçam as guerras.
[Crónicas do vírus, DCCCVIII]
Legados da peste (124):
são de pontes
para fugir de precipícios
os futuros públicos concursos.
[Crónicas do vírus, DCCCVII]
Legados da peste (123):
corremos
atrás de um tempo
que não corre para trás.
[Crónicas do vírus, DCCCV]
Legados da peste (121):
eis a filatelia da época,
um conjunto de borrões
ou um disfarce
por dentro do disfarce.
[Crónicas do vírus, DCCCIV]
Legados da peste (120):
que olhos míopes
os que trazem a tela
no baço arnês.
Os progressistas,
os de forte pendor revolucionário,
abecedários de preconceitos mil
(muito embora se digam embaixadores
do contrário),
comem bolo-rei pelo Natal?
[Crónicas do vírus, DCCCIII]
Legados da peste (119):
a transgressão
já não é sinónimo de rebeldia,
anátema
que fere de morte
a liberdade.
O sangue não fala
se não no placo da beligerância
quando,
pútrido e fora dos corpos,
ostenta a sua inutilidade.
[Crónicas do vírus, DCCCII]
Legados da peste (118):
cada um por si
– o grau zero da aprendizagem.