23.12.21

#2245

[Crónicas do vírus, DCCCXVII]

 

Legados da peste (133):

há máscaras açaimes;

e máscaras 

bandeiras da estética.

22.12.21

Ponte cedular

A ponte

maior 

do que o rio.

 

O estuário

acomoda-se.

É o fotógrafo

da paisagem

adereçada com a ponte.

 

A ponte

subleva-se

contra as fronteiras.

 

É poliglota das almas.

Casamenteira

(por que não admiti-lo?).

 

À ponte

lembra-se 

a serventia

quando reparações

a atrasam.

#2244

[Crónicas do vírus, DCCCXVI]

 

Legados da peste (132):

se em vez de atalhos

nos dessem

sol sem giestas

e poemas no adro.

21.12.21

Não contem às criancinhas sob pena de serem acusados de malvadez

No Natal

há circo

 

Há circo

no Natal.

#2243

[Crónicas do vírus, DCCCXV]

 

Legados da peste (131):

a cada curva da peste

um pontapé nos olhos,

cortesia dos regentes. 

#2242

[Crónicas do vírus, DCCCXIV]

 

Legados da peste (130):

de adiamento em concessão

transportados 

pelo pérfido buço da peste.

20.12.21

Novecentos e tal

A boca sem tamanho

maior do que a boca de um cão faminto

estipula a chuva tardia

no arranjo delicodoce das árvores matinais. 

Serve de estuário aos impropérios

diletante juramento das presas de infâmias

ou apenas um enclave

onde se situam as manhãs sem paradeiro

sem toponímia que as salve

sem fruição. 

O sangue sincopado mente aos costumes. 

A boca fanfarrona desdiz-se

e ninguém toma conta da mitomania. 

Pudera. 

Os costumes só são bons

se forem useiros no tributo à verdade

por mais que os seus apóstolos

mintam

com os dentes puídos que disfarçam

no impossível esconderijo da boca disforme. 

#2241

[Crónicas do vírus, DCCCXIII]

 

Legados da peste (129):

um vai-e-vem

interminável

a perguntar pela resistência.

19.12.21

#2240

[Crónicas do vírus, DCCCXII]

 

Legados da peste (128):

o enxovalho da desconfiança

é o perjúrio da dignidade.

Moratória

A moratória

espera pela lassidão do tempo.

Não se adiam

se não os coices da alvorada.

Entre as cicatrizes do futuro

e o fingimento do presente

pressente-se

uma máscara descida sobre rostos

amedrontados.

18.12.21

#2239

[Crónicas do vírus, DCCCXI]

 

Legados da peste (127):

o alfabeto grego

nunca foi

tão impopular.

17.12.21

Desportugalidade em curso

Por que será

que Portugal

rima com mal?

#2238

[Crónicas do vírus, DCCCX]

 

Legados da peste (126):

um falso tempo

o falar de um legado.

16.12.21

Deixamos as palavras de fora

Deixamos as palavras de fora

por serem corpos

os seus porta-vozes.

 

Na miríade de janelas

deitamos o olhar 

nas que desembaraçam os mares.

 

Pudessem os silêncios

esboçar o tanto que falam os corpos

e eram poemas os tradutores de loas.

 

Deixamos as palavras de fora

enquanto ciciamos os segredos

de que são procuradores os corpos.

 

De pouco mais linguagem precisamos

a não ser os corpos tutores das coreografias 

em rima com o silêncio.

Tradição

Tiram-se teimas

como se tiram

(eu sei lá)

as nódoas?

#2237

[Crónicas do vírus, DCCCIX]

 

Legados da peste (125):

somos 

o viveiro

do imenso nada

em que nos consumimos.

15.12.21

Candeeiro

A casa sem verbos:

 

desarruma-se o livro centrípeto

enquanto a maresia desenha as nuvens

e um pedinte, absorto, mergulha na nostalgia.

 

(Fosse esse

o seu único sortilégio.)

 

Não são as décadas que falam;

se ao menos as preces fossem pagas

delas diriam as cinzas 

que os amanhãs compensam.

Mas o caudal vaga na curvatura do rosto

sem que todos os peixes sejam extintos

e as mãos se gastem na estreiteza do labirinto.

 

Às vezes volteio os dados

como se soubesse que desse sortilégio

um desenho reinventado 

seria um oráculo remediado.

Não desisto dos medos que acautelam

em rimas desordenadas

a meias com a meação de que me dou

guardando a parte sobrante 

para juros ulteriores.

 

Se os feiticeiros fossem ao mar

quem sabe se a safra seria generosa?

 

(Ou apenas

a medida da incorrigível cobiça

a forca que se perpetra contra os Homens.)

 

Perguntas como esta

são como dádivas anónimas

um corvo vigilante que segue o rasto do sangue

antes que o sangue seja um diadema

e da carne se exponha uma fratura;

o tempo visível não está à mostra.

Cuidamos das armas que recusam a beligerância

e sabemos

em juras sem procurador

que não sobra ninguém no pútrido campo

onde se terçam as guerras.

Ao grama

Quanto 

é o peso

do ânimo leve?

#2236

[Crónicas do vírus, DCCCVIII]

 

Legados da peste (124):

são de pontes

para fugir de precipícios

os futuros públicos concursos.

14.12.21

#2235

[Crónicas do vírus, DCCCVII]

 

Legados da peste (123):

corremos 

atrás de um tempo

que não corre para trás.

13.12.21

Princípio geral da culpa

Se o bode 

é expiatório

é porque tem

as costas largas.

#2234

[Crónicas do vírus, DCCCVI]

 

Legados da peste (122):

não é o avesso

são corpos transfigurados.

12.12.21

#2233

[Crónicas do vírus, DCCCV]

 

Legados da peste (121):

eis a filatelia da época,

um conjunto de borrões

ou um disfarce 

por dentro do disfarce.

11.12.21

#2232

[Crónicas do vírus, DCCCIV]

 

Legados da peste (120):

que olhos míopes

os que trazem a tela

no baço arnês.

10.12.21

Dúvida metódica #3

Os progressistas,

os de forte pendor revolucionário,

abecedários de preconceitos mil

(muito embora se digam embaixadores

do contrário),

comem bolo-rei pelo Natal?

#2231

[Crónicas do vírus, DCCCIII]

 

Legados da peste (119):

a transgressão

já não é sinónimo de rebeldia,

anátema

que fere de morte 

a liberdade.

9.12.21

Sem esteio

O sangue não fala

se não no placo da beligerância

quando, 

pútrido e fora dos corpos,

ostenta a sua inutilidade.

#2230

[Crónicas do vírus, DCCCII]

 

Legados da peste (118):

cada um por si 

– o grau zero da aprendizagem.

8.12.21

Translation issues

Se appointment

é nomeação

disappointment 

não devia ser 

desnomeação? 

#2229

[Crónicas do vírus, DCCCI]

 

Legados da peste (117):

desexemplo,

estes desconcertantes

tempos.