22.1.22

Naftalina antes do tempo

Deste estilo que se esconde

a impossibilidade do vento

açambarca as palavras vãs.

 

Diz-se:

 

o pensamento é masculino

(porque a gramática assim ordena)

e um pé-de-vento corre o terreiro.

 

O estilo que pressagia o porvir

não compensa:

 

esse é um tempo

que está por vir

e ninguém 

confirma a sua chegada.

#2276

[Crónicas do vírus, DCCCXLVIII]

 

Legados da peste (164):

Os dias ainda baços

que servem para assear

a metamorfose duradoura.

21.1.22

#2275

[Crónicas do vírus, DCCCXLVII]

 

Legados da peste (163):

Desengorda o ego obeso

nos estilhaços 

da sua disfarçada fragilidade.

20.1.22

Decreto a lei do desejo

A boca troveja 

a espuma alcançada

no mar lívido. 

 

Devolve

em dobro

a vertigem

amanhecida  

numa aurora boreal. 

 

No poema majestático

ficam desarrumados

os lençóis:

 

nesta arena

só têm admissão reservada

as armas que os corpos manejam

 

na gramática do desejo. 

#2274

[Crónicas do vírus, DCCCXLVI]

 

Legados da peste (162):

Pagamos

em medo, obediência e conspirações

o legado da peste.

19.1.22

O fim do jogo

Jogados os dados

os dedos são a sua trama. 

Dantes encolerizado

o magma eflúvio transita as veias

e adormece à boca de cena. 

Há um ardor que sobra da combustão

as paredes interiores abraseadas

que quase irromperam em desmazelo. 

Os dados cingiram a temperança

e os dedos,

enfim aplacados,

sorriem por dentro dos ossos

a favor do sortilégio.

#2273

[Crónicas do vírus, DCCCXLV]

 

Legados da peste (161):

O tempo

que se arrasta

fermenta o mosto

da fadiga.

18.1.22

O direito ao mito

A muda do corpo

esta deságua que lava o sangue

lava muda que desagua nas mãos

encorpando as paredes que amparam o dia.

#2272

[Crónicas do vírus, DCCCXLIV]

 

Legados da peste (160):

Uma guerra de teimosos

tende a tornar-se

em beligerância imorredoira.

17.1.22

Elefante na sala

Uma fração do medo

como

o número ímpar que se adia

e depois

arruma os braços

contra o pedestal do fingimento. 

Mas o medo não se divide

e no luar singular

conspiramos por junto

sem remorso

sem capitular 

a menos que os anátemas sejam derrotados. 

Não é o medo

fragilidade que se entoe;

os interstícios das palavras

desembaraçam o medo

que a meio se reduz

a museologia para memória futura.

Anéis que não têm dedos

Todas as fotografias

resumos inacabados, estéreis,

a safra adiada dos tempos com mofo. 

 

Todos os pesares

diademas ancilares, inúteis,

a lua cheia escondida num castelo de nuvens. 

 

Todas as euforias

juras inverosímeis, farsantes,

modo motriz das vias vindouras. 

 

Todos os olhares

colonizadores impacientes, ávidos,

tutores dos mapas à procura de revelação. 

 

Todos os sabores,

bocas e corpos combustíveis, transidos,

no paradeiro que não se invalida.

#2271

[Crónicas do vírus, DCCCXLIII]

 

Legados da peste (159):

As mangas arregaçadas

para obras 

sem prazo de validade.

16.1.22

#2270

[Crónicas do vírus, DCCCXLII]

 

Legados da peste (158):

A pele

ainda não está pronta

para o novo mapa

que é a sua casa.

15.1.22

#2269

[Crónicas do vírus, DCCCXLI]

 

Legados da peste (157):

Os rostos

ainda não são 

passaporte.

14.1.22

O Inverno que se não gasta

O Inverno marca a herança 

dos sábios. 

A penumbra constante 

é o mosto que ascende desde a manhã

e cobre o dia inteiro

como se à sua totalidade fosse reservado

uma plácida imagem. 

No Inverno

as cores levitam

desmaiadas. 

Arranjam-se as veias

que precisam de seu sazonal repouso

antes que a embriaguez de cores

e a pulsão dos corpos habitados pela Primavera

ocupem o lugar destemido. 

No Inverno

busca-se hibernação

a alternativa para custear a existência

no inconfessado deleite 

de a averbar no convés da alteridade. 

#2268

[Crónicas do vírus, DCCCXL]

 

Legados da peste (156):

Corremos

pelo corredor afora

e não sabemos

do precipício que fica depois.

13.1.22

Hinos

Um hino que espera

por uma mole humana

pois os hinos não são autoridade

se não forem navegantes

de lealdades. 

Um hino

tão emotivamente entoado

mesmo que as estrofes sejam de cor

e delas não saibam ser hermeneutas

quem das suas gargantas o melhor oferece. 

Um hino é um jogo de sombras. 

Exige vultos

a preceito

e desafinadas vozes

que açambarcam um coração apeado. 

Ontologia do asseio

Maior é a desonra

de corresponder

o lavar a cara à gato

a pouco asseio

se à demais fauna

(sem excluir a humana espécie)

os gatos 

dão lições de asseio.

#2267

[Crónicas do vírus, DCCCXXXIX]

 

Legados da peste (155):

um sonho

pela rama

num idioma

que se chama farsa.

12.1.22

Sonhos-quartel

É nesta miríade de noites

que amanhecem os sonhos. 

Não são promessas

ou 

um presságio tangível. 

Talvez 

apenas

uma morada diferente

como se a um palco imaterial

o corpo aportasse. 

À matéria-prima daninha

não se acrescenta o verbo diurno. 

Os palcos assim terçados

continuam vazios. 

Os sonhos

esperam ainda

pelo seu paradeiro.

#2266

[Crónicas do vírus, DCCCXXXVIII]

 

Legados da peste (154):

do estoicismo gratuito:

cair de pé

e nunca mais fermentar.

11.1.22

#2265

[Crónicas do vírus, DCCCXXXVII]

 

Legados da peste (153):

de que lado da cortina

fomos deixados

a adiar?

10.1.22

Pérgula

Jogo o jogo dos seixos que sobram

da maré. 

O tempo, hipnotizado,

não é um embaraço. 

Se soubesse desenhar

tirava partido da areia molhada

deixada pela arqueologia de uma maré cheia

para emoldurar as baias do mundo. 

Não fosse o cadáver de um caranguejo

que não pedia epitáfio

ou a vozearia das crianças outras

que jogavam às escondidas

com a timidez absoluta. 

#2264

[Crónicas do vírus, DCCCXXXVI]

 

Legados da peste (152):

os estilhaços

preenchem a paisagem

como campos minados.

9.1.22

#2263

[Crónicas do vírus, DCCCXXXV]

 

Legados da peste (151):

nem sempre

a vindima de cachos apodrecidos

é colheita tardia.

8.1.22

#2262

[Crónicas do vírus, DCCCXXXIV]

 

Legados da peste (150):

a tradução da fala,

ou o véu que se abate

sobre a boca.

7.1.22

Passagem de nível (outro patamar)

As horas são cortinas que ascendem 

na matricial pose do corpo. Pegam-se 

nos mastros que dominam o estuário 

e os olhos convocados exoneram a culpa

dos órfãos do medo. Se ao menos 

a contagem obedecesse aos caprichos 

de cada alma não seríamos subúrbios 

da vontade. Todas as verdades 

se extinguem na sua formulação. 

Sobram as palavras não sopesadas, 

as palavras desenfreadas que saltam 

por cima das fronteiras, ficando à espera

dos internos sobressaltos arrancados 

ao magma combustível. As horas deviam

ser silêncios estendidos na geografia 

onde os corpos habitam. Deviam olhar 

para dentro da carne, isentando o seu 

labirinto dos modos que se hasteiam 

na mais pura fala totalitária. Ficam 

nas mãos os desenhos furtivos que isolam

as horas dos minutos que as alimentam. 

Quem sabe se não é esse o segredo.

#2261

[Crónicas do vírus, DCCCXXXIII]

 

Legados da peste (149):

as bandeiras

retêm o bolor

dos ventos a desfavor.

6.1.22

D. Sebastião (com a devida genuflexão)

Sai-te a fava

mas encomenda-os

à mesma

antes 

que a fava se torne fada

e a fama se converta 

em fado. 

#2260

[Crónicas do vírus, DCCCXXXII]

 

Legados da peste (148):

empossados como guerreiros

na perene fragilidade 

do prélio contra os sicários 

que tomam de assalto

o nosso domínio.