[Crónicas do vírus, CMV]
Legados da peste (216):
Estivemos
na boca do inferno
e agora estamos
à boca do inferno.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMV]
Legados da peste (216):
Estivemos
na boca do inferno
e agora estamos
à boca do inferno.
[Crónicas do vírus, CMIV]
Legados da peste (215):
Tomar partido
pela ética assimilada
no reatar do sangue avivado.
Um vulto esbraceja
sentado
na embocadura da voz
e diz, em matinal murmúrio,
que o pecado está de atalaia
só à espera da nossa distração.
E nós
obedientes
julgamos a matemática possível
para ao velho vulto
a vontade fazer.
E o vulto
sossegadamente
escolhe outra freguesia
que os fogos por atear
passam da conta humanamente possível.
E depois
há quem não entenda
que as igrejas
andam à míngua de freguesia.
[Crónicas do vírus, CMIII]
Legados da peste (214):
Cai a cortina da peste
e a palco
sobe a nudez da guerra.
Era uma água inaugurada
as patas desdentadas da noite
em talhadas de fúria servidas.
A boca arrancava o suor do chão
numa métrica desmatada
no provérbio dito em idioma alheio.
E as pessoas diziam
entoemos o pão que o amanhã dará
antes que os vitrais de estilhacem
– antes que as modas sejam olvido
e dos desastres lacrados no atlas
seja servida a lenha em lenta combustão.
O quarto sem luz
emancipa-se do medo diuturno
e os rostos emprestam-se ao dia seráfico
antes que os versos terminem gongóricos
– antes que as partículas acelerem
e o céu expluda para lá da fronteira
numa chuva de flores crepusculares.
E dessa água inaugurada
bebem os cavalos a sede das estepes
pois das neves ausentes se entendiam
em cofragem que desfalece
na fragilidade que povoa os Homens.
Por fora
os faróis não deixam ninguém sozinho.
Na cumeada
acendidas pela noite sem claridade
minúsculas vírgulas vermelhas bruxuleiam
sem saberem se o vento as socorre
ou se deixa ao convés ermo e deserto
a embaixada dos órfãos da loucura.
As apostas correm as páginas da geografia
reféns de apóstatas de lucidez
que irrompem numa correria irreparável
contra as barragens que nos dividem do medo.
Até que a falésia se despenha atrás de nós
sem deixar vestígios
e a pele curtida na angústia
abandona o seu tirocínio inválido.
[Crónicas do vírus, CMII]
Legados da peste (213):
As antenas
sintonizadas
no desexemplo
que não deixamos de ser.
O que se penhora
não tem fundo
e do fundo do vulcão
os pertences gastos fogem do periscópio
onde levita o sangue sem fala.
Temperamento colérico
nas brandas que espevitam o céu baço
cobra o preço último
enquanto a multidão coloniza as ruas
em silêncio.
As ruas servem de corrimão
aos que sem elas
seriam desamparados.
Em pose observadora,
como se fosse antropólogo,
junto as estrofes que desentorpecem a espécie
junto-as num compêndio de significados
enquanto retiro aos demónios
a albumina que os protege;
antes desprotegidos os demónios
do que por eles acossados
os inocentes.
E há inocentes?
Há verbos que se conjugam
na tumular profecia em abono dos inocentes,
ou tudo não passa da soberba
de quem dá aval a conceitos por determinar?
Dos púlpitos sem pertença
o vazio esvoaça
contundente
emasculadamente impuro.
Nos preparos
o tóxico raciocinar adere à retórica
e os lugares soam a prisões
melhor:
a navios onde viajam desterrados
que não têm cais que os queira
e por isso
talvez estejam destinados ao naufrágio.
Nunca se disse
que os eugenistas eram higienizadores.
Os palcos errantes
somam-se à cacofonia dos eruditos.
Oxalá fossem militantes do silêncio
que em poemas seria substituto perfeito
da prosápia sem arrefecimento.
Por enquanto
o sofrimento só pertence ao dicionário.
Não se vê que seja um senão
se até os deuses advertem
com mnemónica diligentemente doutrinada
que o sofrimento não se divorcia do Homem.
A menos que hoje
por ser dia em que a mulher é celebrada
(e porque se achou apenas um dia
no imenso calendário de um ano
para celebrar a mulher
é matéria que ultrapassa a lógica)
não se diga que os homens merecem palco
pois eles
são os procuradores máximos da beligerância
fautores máximos da impiedade
com lugar direto ao banco dos réus
onde juízas aprumadas no escorreito manejo das leis
esperam pela vingança sem opróbrio.
Pois delas é a mitologia
e dos homens
a fé cega na marcial expropriação do tempo.
Queria voltar a ser criança
só para dizer
que queria ser forasteiro
quando fosse adulto.
O sonho maior
era sair sem mapa
que me pudesse ensinar
um destino.
Falo da metáfora
que se aviva
na limalha do ocaso.
O crepúsculo macilento
é refúgio dos sortilégios,
e a fala
debate-se com a vertigem
arrancada ao precipício da noite.
Falo por metáforas
que o medo de ser entendido
fala por cima.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVIII]
Legados da peste (209):
O irrisório dano da peste
comparado com o dano
que o Homem pratica
em si mesmo.
Deslembrado
o lastro em que assentamos
sobramos como desmemória
ofensores do futuro
párias em sangue próprio.
Às vezes pressinto:
a humanidade
não é digna de si mesma
não sabe dar conta de si
e merecia extinção.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVII]
Legados da peste (208):
O tempo hibernou
e agora
cuidamos do degelo.
Se pudesse ao tempo ordenar
para meter marcha-atrás
só para ser revisor dos planos pueris
(o que queres ser em grande?)
só
para me ajuramentar
futuro gangster
e das juras sina tornar
para
em grande
andarilhar de estepe em estepe
a fazer de Robin das estepes
mas virado do avesso
e contra os justiceiros desembainhar o coldre
julgando-os na ponta da arma
por mitomania compulsiva
logro militante
e oportunismo sem desculpa.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVI]
Legados da peste (207):
Com vagar
a tela em que somos tecidos
desabilita-se das caricaturas que fomos.
Soube do mar
pela janela
que subia pelo luar.
Jurei
que o mar
não seria penhor
da solidão.
Havia dias,
dias tempestuosos,
em que o mar e eu
partilhávamos a solidão.
Era capaz de jurar
que o mar traduzia
os meus avulsos pensamentos
a julgar
pelo tumulto
deixado
em memória futura.
[Crónicas do vírus, DCCCXCV]
Legados da peste (206):
As almas segredam
no mapa dos rumores,
resgatadas ao exílio inconsciente.
Correria num estreito labirinto
na correria desenfreada de quase todos
e nos lampejos de loucura
desenharia a lucidez desamparada
contra os fulgurantes sábios de si mesmos.
E na desalinhada pele destatuada
diria os versos arrancados aos ossos
por dentro de um limite sem marcos geodésicos
ou balizas estertores.
Correria na correria de um só
no plúmbeo areal escondido das esquinas
afocinhadas no braço
e de resto
contra todas as probabilidades
daria conta das contas sem conta no fim.
Depois da correria
diria ao corpo cansado
para se exilar nas paredes húmidas da noite
onde o luar se engana com tolos
e os versos tropeçam em páginas preenchidas.
Até a correria ser parecida
com um moinho de vento
e às sereias alinhadas no cais
vozes de vultos fossem avoengas prescrições
contra os impropérios da distração.
[Crónicas do vírus, DCCCXCIV]
Legados da peste (205):
Contra os dias soterrados
a avalanche que deixou os rostos
submersos,
a memória do futuro.
[Crónicas do vírus, DCCCXCIII]
Legados da peste (204):
A corrosão
deixada em destroços
a tempo de ser invalidada.
Somos
a fatura
do medo.
Somos
– em terrífica dilação –
astronautas
do desdesejo.
Párias,
amiúde,
na imunda contrafação
o leite pútrido
que nos fermenta
em sistemática negação.
Somos
pátrias gastas
funestos zeladores de nada
coldres gastos
ardendo na lava sem gasto
alpinistas a fundo
procuradores do desmedo
traduzido
em tresloucado verbo.
É do medo
que levamos
esta fatura
em futura expedição
nos compêndios legados
na armadilhada faca
que desfeita o porvir.
Falamos
o idioma do medo
e no medo
consumidos
arrefecemos o sangue
deixamos de ser
promessas vindouras,
murchados.
[Crónicas do vírus, DCCCXCII]
Legados da peste (203):
No acerto de contas
com o tempo de chumbo
quanto de nós
é matéria já diferente?
[Crónicas do vírus, DCCCXCI]
Legados da peste (202):
Reconciliação
com a parcela forçada
ao fingimento.
Procuro
na tua pele
agasalho.
Entendo
as cores do mundo
pelo teu olhar.
Sacio
a sede
no teu suor vertido.
Amparo
a angústia
no teu manancial.
Revejo
o porvir
nos versos
da tua fala.
Armo-me
da alegria
que esparges.
Encerro
num mar sitiado
demónios contumazes.
Cresce
em bandeiras sem algemas
a gramática
do prazer.
Amanheço
no desembaciado lugar
que ofereces
em deslimite.
Traduzo
na boca sem peias
a paga merecida.
Tomo
no teu corpo
a ideia de mim.
Concebo
o atlas
na página de rosto
da tua pele.
Desenho
o idioma particular
que entrelaça.
Procuro
num relógio a ouro
o tesouro de teu nome.
E sei
que o ocaso
não se furta nas mãos.