23.3.22

#2339

[Crónicas do vírus, CMXVI]

 

Legados da peste (227):

Um cortejo de sombras

sitia a memória do futuro.

22.3.22

(Sistema) ABS

O cortejo a esmo

sísmico mear 

aproveitado pela maresia

que aos homens meãos

não se imputa cuidado mapear. 

 

Os pesares arrumados

calam lamentos pendidos

pelas mãos caiadas de audácia

desprendida dos apesares e dos poréns

que dantes tingiam o olhar com sombras. 

#2338

[Crónicas do vírus, CMXV]

 

Legados da peste (226):

A ferrugem

arrancada à boca,

o mosto indesejável

dos anos sem cortina.

21.3.22

Despoesia

Considere-se a varanda estendida sobre o ocaso.

De cada vez que o vento cicia

os arbustos pendem sobre o precipício

e isso faz-me lembrar vidas várias

que se convidam para o palco deletério.

Os braços não sossegam no sopé da maré-cheia

convidam os vultos a serem pagãos

sob a égide da bravura de um guerreiro limítrofe.

Se ao menos 

os desensinados não povoassem o medo

e os verbos não subissem nos poros das sílabas

a madurez das folhas não as faria outonais

e seria a escotilha a avisar da chegada.

De mangas arregaçadas

os pescadores mentem as preces que os protegem

dos mares não lúcidos e das marés assanhadas.

É um pouco como devia ser com os demais,

protestam curas militantes 

e crentes de variegadas cepas,

peticionando a usura das sotainas apessoadas

sem contar com os desalinhados

uns 

que não se aninham a deuses e seus mandatários

e outros 

que distraidamente povoam a indiferença.

Em vez dos mapas derruídos

os novos profetas convocam 

as lentes desembaciadas

e desenham,

a tinta-da-china,

os olhos açorados de desempoeirados anciãos.

Já outrora se dizia

que a antiguidade é um posto.

Ninguém cuidou de inaugurar a manhã

desconvocando a penumbra ensonada

para deslembrar

que a antiguidade é só um passo

e decidido

para a decadência.

Os seniores acatam sem resistência.

Sabem do exaurido da carne

dos ossos escombros

e o despensamento atraiçoa em desfavor da maré.

Suas 

são as varandas arqueadas sobre o precipício.

Despenham-se numa maresia inspiradora

enquanto resgatam

em precipitada cadência

os fragmentos representativos do estatuto 

vigente.

São eles que atendem a porta

quando os demónios amedrontam os pueris.

Desmentido o posto da antiguidade

que seja consagrada

como matéria-prima que debita a estabilidade

que participa dos corsários 

em tribunais sumários

contra o passado habitado 

por fantasmas e medos.

A tiracolo

os velhos trazem os olhos cansados

de quem soube colher 

as costuras do mundo inteiro.

Até que nas grutas da memória

sobre o vocabulário minimalista

em defesa dos sucessores que se habilitam

na vertigem de quem desacredita da senescência

os velhos aparem as unhas da mentira

e acertem contas com a anestesia geral

dos demais.

#2337

[Crónicas do vírus, CMXIV]

 

Legados da peste (225):

Vindimados

os anos plúmbeos

conseguimos ser o que éramos 

antes dos escombros?

20.3.22

Finitum est

A aritmética da morte

é isso mesmo

aritmética

a tradição dos corpos inertes

cadáveres que fermentam

no mosto das elegias prometidas

falésias onde se despenham

vidas

vidas extintas no vendaval precoce

um passaporte crepuscular

sem visto selado por embaixada

nem requerimento à espera de ser deferido

uma aritmética

fria e banal

como banais deviam ser 

as irremediáveis coisas

no andar mais fundo que a ossatura permite. 

Uma aritmética

sem mais

contabilidade lutuosa

vociferação dos vivos 

que protestam

em lugar antecipado

a morte que há de ser 

seu paradeiro. 

#2336

[Crónicas do vírus, CMXIII]

 

Legados da peste (224):

Corremos 

atrás do tempo perdido

ou dizemos aos relógios

para repetirem a contagem?

19.3.22

#2335

[Crónicas do vírus, CMXII]

 

Legados da peste (223):

A peste ainda não partiu

e a selvajaria vem recordar

que somos o nosso próprio algoz.

18.3.22

Concurso de oráculos e a meia-desfeita do futuro que os desmente

O oráculo dos feiticeiros

atira o dia solitário

para o templo sem morada

e os escombros do futuro

juram que não juram nada

depois de esconjurados em devido tempo.

 

Se o fingimento 

é arrematado à indulgência

não cuidem os prometidos escansões

de dirimir os medos

com poções enfeitadas pelos magos;

um destes dias

será o tira-teimas

e não é de esperar

que os teimosos saldem o pleito

com a coroa atribuída aos laureados.

 

Quanto ao demais

ficava deleitado na plateia

a assistir 

ao cortejo dos adivinhadores do reino

vendo-os assoberbados

a tirar as bainhas do futuro

a partir de seus puídos oráculos.

#2334

[Crónicas do vírus, CMXI]

 

Legados da peste (222):

Liberdade sitiada

por os rostos 

ainda não desalfandegados 

de seus açaimes.

17.3.22

Vocabulário

O sangue

à porta subindo

e toda a lama

portadora de almas

ou as almas

abraseadas pelo medo

extintas pelo sangue

combustível.

Um pedaço do Saara em nós

Hoje

puseram o dia

a preto e branco.

#2333

[Crónicas do vírus, CMX]

 

Legados da peste (221):

Quem fica a cuidar

das cicatrizes 

da desliberdade?

16.3.22

Ópera dos (que estão) sentidos

Não é a contabilidade da redenção

nem um patriotismo celeste

ou a arqueologia arcana

que determina 

a raiz quadrada do pensamento. 

 

Se aos alvores 

forem as mãos tentaculares

na sua sede pela sede do conhecimento

não se apostrofem as intenções assim delidas

nem 

aos procuradores da angústia 

se enderecem culpas;

no refúgio demandado

o travejamento das almas

encontra região demarcada

e, seja como for,

das intenções não confessáveis

não se dá conta de paradeiro conhecido.

 

Aos segredos

fica reservado

o lugar do segredo 

sem sepultura.

#2332

[Crónicas do vírus, CMIX]

 

Legados da peste (220):

O rosto puído da desumanidade

dita o olvido da guerra 

ainda não vencida.

#2331

[Crónicas do vírus, CMVIII]

 

Legados da peste (219):

Derruído o crepúsculo

ficou de atalaia

o mosto da manhã reavivada.

15.3.22

Perdido a meio da tradução

Como se explica

que feriado em inglês

seja dia santo

e em português

apenas feriado?

Bolçar, depois do noticiário

O ramo prístino

itinerante

em vez 

da palavra-arremesso

e o peito nu

sem contrato

apenas 

guerreiro das guerras proibidas

ou o verso condomínio

quimérico

em vez

de vendas baças

e da falésia

sem vinculação

apenas

um eu formulado

na pauta 

onde vagueiam

miragens.

#2330

[Crónicas do vírus, CMVII]

 

Legados da peste (218):

Resgatado o leme

só falta saber 

do Norte.

14.3.22

Tempos desinteressantes

Cortam-se as sílabas no invólucro do medo. 

A fala intumesceu

e as palavras assoaram o ranho 

dos dias pesarosos e lamentáveis. 

As armas falam pelos corpos. 

As águas poluídas são o mosto dos dias farsantes. 

O desalento levanta-se na roda-viva do tempo

à espera dos provérbios roubados

e da insídia que coloniza 

a geografia dos Homens. 

As cores foram anestesiadas

e até o tempo não se terça

a propósito dos arco-íris. 

Temos medo do amanhã. 

Temos medo 

do que nunca deixamos de ser.

#2329

[Crónicas do vírus, CMVI]

 

Legados da peste (217):

O idioma da guerra

é o esperanto que nos cobre 

de infâmia.

13.3.22

Agilidade antropológica

E quando 

só ficarem espadas

sem ninguém

para as empunhar?

#2328

[Crónicas do vírus, CMV]

 

Legados da peste (216):

Estivemos 

na boca do inferno

e agora estamos

à boca do inferno.

12.3.22

#2327

[Crónicas do vírus, CMIV]

 

Legados da peste (215):

Tomar partido

pela ética assimilada

no reatar do sangue avivado. 

11.3.22

O des-lamento do pecado (ou: só se lamentam os des-pecados)

Um vulto esbraceja

sentado

na embocadura da voz

e diz, em matinal murmúrio,

que o pecado está de atalaia

só à espera da nossa distração. 

E nós

obedientes

julgamos a matemática possível

para ao velho vulto

a vontade fazer. 

E o vulto

sossegadamente 

escolhe outra freguesia

que os fogos por atear 

passam da conta humanamente possível. 

E depois 

há quem não entenda

que as igrejas 

andam à míngua de freguesia. 

#2326

[Crónicas do vírus, CMIII]

 

Legados da peste (214):

Cai a cortina da peste

e a palco

sobe a nudez da guerra. 

10.3.22

Derruição

Era uma água inaugurada

as patas desdentadas da noite

em talhadas de fúria servidas.

A boca arrancava o suor do chão

numa métrica desmatada

no provérbio dito em idioma alheio.

E as pessoas diziam

entoemos o pão que o amanhã dará

antes que os vitrais de estilhacem 

– antes que as modas sejam olvido

e dos desastres lacrados no atlas

seja servida a lenha em lenta combustão.

O quarto sem luz

emancipa-se do medo diuturno

e os rostos emprestam-se ao dia seráfico

antes que os versos terminem gongóricos 

– antes que as partículas acelerem

e o céu expluda para lá da fronteira

numa chuva de flores crepusculares.

E dessa água inaugurada

bebem os cavalos a sede das estepes

pois das neves ausentes se entendiam

em cofragem que desfalece

na fragilidade que povoa os Homens.

Por fora

os faróis não deixam ninguém sozinho.

Na cumeada

acendidas pela noite sem claridade

minúsculas vírgulas vermelhas bruxuleiam

sem saberem se o vento as socorre

ou se deixa ao convés ermo e deserto

a embaixada dos órfãos da loucura.

As apostas correm as páginas da geografia

reféns de apóstatas de lucidez

que irrompem numa correria irreparável

contra as barragens que nos dividem do medo.

Até que a falésia se despenha atrás de nós

sem deixar vestígios

e a pele curtida na angústia

abandona o seu tirocínio inválido.

#2325

[Crónicas do vírus, CMII]

 

Legados da peste (213):

As antenas

sintonizadas

no desexemplo 

que não deixamos de ser.

9.3.22

#2324

[Crónicas do vírus, CMI]

 

Legados da peste (212):

A guerra,

ou o Homem

metamorfoseado

em peste.

#2323

[Crónicas do vírus, CM]

 

Legados da peste (211):

A guerra,

a continuação da peste

com a marca do Homem.