Avarias, avarias, avarias;
Vinte e seis minutos de avarias:
ou um mundo
com um desenho não caricatural.
[GNR, “Avarias”]
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Avarias, avarias, avarias;
Vinte e seis minutos de avarias:
ou um mundo
com um desenho não caricatural.
[GNR, “Avarias”]
Tudo se reduz a nenhures
a largueza de um deserto
resumida a um grão de areia
os mapas que disfarçam imensidões
ou antes se limitam a rasurá-las
na pequena moldura do olhar.
Os limites não se enganam
na artilharia amputada dos legítimos guerreiros
que cortam tiranos pela raiz.
Nada se agiganta depois do horizonte;
a finitude
ou a sensação de ela ter um palco
anestesia as almas sobressaltadas.
Não precisam de geografias sem fim:
gigantes são as empreitadas
que desassossegam as almas.
Na garganta da terra:
os lençóis revirados
marca registada do avesso
tatuavam a crisálida
que avivava a melancolia.
Tirava as medidas ao comboio
que rompia o silêncio noturno;
de vez em quando
ecoavam os nomes
em seus disfarces
de fantasmas.
Os proveitos versados,
anotados em folhas amarelas,
eram olimpicamente ignorados:
falava-se de desmaterializar a matéria
por tudo o impossível que soasse
nas arcádias povoadas pelo escol.
As falas não eram importunadas
ainda que se atropelassem
num caudal contínuo.
Delas se dizia serem o manancial
de águas frutadas que empunhavam
poemas.
Esses poemas
eram as mãos que desciam à terra funda,
as mãos fundamentadas
– mãos sinceramente à prova de medo –
e traziam à superfície
com a mediação de periscópios rigorosos
uma forma de arroz enfatuado,
mas com a devida autorização
dos tutores da república.
Pois a terra
tinha a sua garganta
e ai de quem
a quisesse silenciar.
Serve-se imoderação a esmo
no panteão dos vivos
que nenhuma palavra
serve para atapetar o rés-do-chão.
De silogismo em silogismo,
as bandeiras decaíam
no esgotamento dos costumes.
Dizia-se:
somos peritos em farsas
e avançamos pelo avental
do fingimento
fundindo em verbos ostensivos
o boçal ornamento da fala intransitável.
Os bocejos tornaram-se adjetivo
e da fundura dos estigmas
ninguém reparou na indigência
no mais aviltante destratar de si.
As loucas vozes gritavam
mas ninguém ouvia o clamor
ninguém
queria saber do livro de estilo
onde se ensinava a decadência.
As mãos caíram no barro
mas não souberam ser escultoras.
Agora ficávamos à mercê do acaso
antes que do avesso de nós
colhêssemos a agitação própria
de quem está fora de validade.
As bandeiras despedaçadas
sem servidão
esqueceram-se do hino.
As pessoas esqueceram-se
do hino e das bandeiras;
esqueceram-se
de quem são.
Não tendo vocação
para as grandezas
quando chegou a sua vez
entoou
com a solenidade dos condenados à irrelevância:
“quando for grande
quero ser
a ursa menor.”
Desta pele
as escamas
sudário que se convoca
diante das provações
dos mastins em variável grau;
a pele
intensa
abecedário de resolução
o poente que promete inaugurações
poema válido
dos nomes que não se escondem
em cicatrizes
nem se tatuam com disfarces.
Promessa
homessa
sem vírgula
ou tomas a pílula
na trave do remédio
não vá ser tédio
e jura, mancebo
antes que te tirem o sebo.
Depois confessa
desta que é sua meça
a demais remessa
no patíbulo
versículo
jorna farsante
em forma de Dante.
No viés em que pereça
o furriel não adormeça
no baldio em que messa
antes que desapareça.
O dever de março é uma impostura:
a Primavera adia os tentáculos
sobrando um março que soa a janeiro
– e o corpo delira
em sua exsudação estival
sonhando com uma estação
a preceito.
O devir de julho
é açambarcar o desejo
com um inverno
como nos bons velhos tempos.
(e havia tanto a dizer
sobre os bons velhos tempos,
ou o que a expressão idiomática contém,
mas hoje
não é dia de empreitadas gongóricas.)
O comboio perdido;
promessa
venda sobreposta nas mãos
a palavra fendida
irradiando o luar fingido
nos baldios onde não há nomes.
O comboio furtivo;
ciciar dos mendigos
das almas que peticionam paradeiro
almas que dispensam o arnês
enquanto se movem
arrancando sílabas ao silêncio.
O comboio sem apeadeiro;
miragem
compêndio da loucura itinerante
dos vassalos dos lugares sem limites.
As mezinhas
são mazinhas
ainda que sejam obra
de mãezinhas
e ajuramentadas
em missinhas.
Os descendentes de Cervantes
montam nos decibéis
fazendo parecer um galinheiro
quando concorrem para um ajuntamento.
A estridência não é musical
como no caso dos herdeiros de Petrarca
mas estes
não têm o Pata Negra no património
nem as legítimas paellas.
Nos ajuntamentos
os sucessores de Goya
abrem a boca inteira
e é como se metessem a mão nas entranhas
para a voz romper a escala medida em decibéis.
Não são gestualmente espampanantes
como os herdeiros de Balzac
nem têm a linhagem de vinhos seculares
mas para a troca estes oferecem
escusadamente
um chauvinismo arcaico
ficando só três centímetros à frente
dos que vieram depois de Unamuno.
Saltaricam nas socas condimentadas do flamenco
não se envergonham de serem medievais
na desigual safra da tourada
mas é na vozearia que se desaconselha
no precato de quem previne poluição sonora
que aos sucessores de Miró se poderia suplicar
tomando de empréstimo
a súplica do outrora suserano
“por que não se calam”?
O sangue escorrega nas sombras
sem se separar da vida que não se extingue
amarrada à estrela que se chama
velocidade-luz
e, num sobressalto sem contar,
o tempo estranhamente torna-se vagaroso
como se cada centímetro da sombra
fosse entretecido na pele exposta.
Não rasguem as vestes
os tão ofendidos arcanjos
que de seus nus sobejarem
ainda menos dignificante
o espetáculo será.
Faz do ventre
o chão fértil
onde se consomem
os sentidos.
Torna ao húmus original
úbere dos desejos sem fastio
e desta seiva faz
santuário.
Corre contra as maldições
os arcanos oráculos
que irradiam os manuais
a que se deve
obediência.
Opõe-te
com a veemência dos insubmissos
a favor das desregras,
que são as regras que nos levitam.
Porque
se somos um idioma
ele é feito das estrofes
que arrancamos ao suor
as não rimas
que acertam com o ânimo da rebeldia
– só a nós devemos o débito
do que fazemos dar em crédito
ao paradeiro do que somos.
Faz do vento
da minha fala
a geografia em falta.
Do meu sangue
arranca o fermento do futuro.
À minha boca
devolve a carne extasiada
no promontório que irradia
os dias consecutivos
de perenidade.
Desenha,
nos poros da minha pele,
o idioma de que somos procuradores
e de todos os poemas em forma de beijo
estiliza,
com a elegância devida,
aos foros de que somos comandantes.
A porta do porto abriu-se
e nós
simples servidores
da fala que nos conduz
deixamos que o dia corrente
seja um oráculo
do que quisermos que ele seja.
O torrencial amanhecer
despeja sobre os sentidos
uma embriaguez inaugural
o álibi perfeito para esconjurar
a letargia.
O aparato da luz ainda timorata
ateia os ossos
desmente o impreterível torpor.
Na escassez que se convoca
fundeia-se o fósforo à espera
de ignição.
E o sangue encomenda a sua combustão
como se o dia tivesse pressa
como
se os diademas se desencontrassem
na solicitude do dia nascente.
A matéria-prima
desmente as conjugações efémeras
não sem apostar
na efemeridade de tudo.
O movimento contínuo
alimenta o viável entardecer
como se de um Outono se tratasse
a metáfora por inventar
no mosto nunca gasto
do sortilégio de cada dia inteiro.
A manhã opulenta
manhã reivindicada
reificada no deleite incomensurável
ornamentada pelas arestas
que são uma desbenção
dos pesadelos a insubmissos.
Apanhamos o primeiro barco
para a rua que alcança o dia guloso
uma gastronomia que fazemos verosímil
no coalho fértil
das paisagens sem geografia.