5.8.22

#2482

Avarias, avarias, avarias;

Vinte e seis minutos de avarias:

ou um mundo

com um desenho não caricatural.

 

[GNR, “Avarias”]

4.8.22

Distâncias

Tudo se reduz a nenhures

a largueza de um deserto

resumida a um grão de areia

os mapas que disfarçam imensidões

ou antes se limitam a rasurá-las

na pequena moldura do olhar. 

Os limites não se enganam

na artilharia amputada dos legítimos guerreiros

que cortam tiranos pela raiz. 

Nada se agiganta depois do horizonte;

a finitude 

ou a sensação de ela ter um palco

anestesia as almas sobressaltadas. 

Não precisam de geografias sem fim:

gigantes são as empreitadas

que desassossegam as almas. 

#2481

Se procurares

nas veias dos destroços,

encontrarás uma Bastilha.

3.8.22

A garganta da terra

Na garganta da terra:

os lençóis revirados

marca registada do avesso

tatuavam a crisálida

que avivava a melancolia. 

Tirava as medidas ao comboio

que rompia o silêncio noturno;

de vez em quando

ecoavam os nomes

em seus disfarces

de fantasmas.

Os proveitos versados,

anotados em folhas amarelas,

eram olimpicamente ignorados:

falava-se de desmaterializar a matéria

por tudo o impossível que soasse

nas arcádias povoadas pelo escol.

As falas não eram importunadas

ainda que se atropelassem 

num caudal contínuo.

Delas se dizia serem o manancial

de águas frutadas que empunhavam 

poemas.

Esses poemas

eram as mãos que desciam à terra funda,

as mãos fundamentadas

– mãos sinceramente à prova de medo – 

e traziam à superfície

com a mediação de periscópios rigorosos

uma forma de arroz enfatuado,

mas com a devida autorização

dos tutores da república. 

Pois a terra

tinha a sua garganta

e ai de quem 

a quisesse silenciar. 

#2480

Serve-se imoderação a esmo

no panteão dos vivos

que nenhuma palavra

serve para atapetar o rés-do-chão.

2.8.22

Despatriotismo

De silogismo em silogismo, 

as bandeiras decaíam 

no esgotamento dos costumes. 

Dizia-se:

somos peritos em farsas

e avançamos pelo avental

do fingimento

fundindo em verbos ostensivos

o boçal ornamento da fala intransitável.

Os bocejos tornaram-se adjetivo

e da fundura dos estigmas

ninguém reparou na indigência

no mais aviltante destratar de si.

As loucas vozes gritavam

mas ninguém ouvia o clamor

ninguém

queria saber do livro de estilo

onde se ensinava a decadência. 

As mãos caíram no barro

mas não souberam ser escultoras.

Agora ficávamos à mercê do acaso

antes que do avesso de nós

colhêssemos a agitação própria

de quem está fora de validade. 

As bandeiras despedaçadas 

sem servidão

esqueceram-se do hino.

As pessoas esqueceram-se

do hino e das bandeiras;

esqueceram-se

de quem são.

#2479

Avenidas intermináveis,

esboços mentais

de uma altivez sedutora.

1.8.22

Escola primária

Não tendo vocação

para as grandezas

quando chegou a sua vez

entoou

com a solenidade dos condenados à irrelevância:

 

“quando for grande

quero ser

a ursa menor.”

#2478

Não é em gramas

que se mede

o ânimo. 

31.7.22

Marsupial

Desta pele

as escamas

sudário que se convoca

diante das provações

dos mastins em variável grau;

a pele

intensa

abecedário de resolução

o poente que promete inaugurações

poema válido

dos nomes que não se escondem

em cicatrizes

nem se tatuam com disfarces.

#2477

Não se desdenhe o arnês

que o credo na boca

não é idioma escrupuloso.

30.7.22

LCD

O ocaso

não é a mora do medo

é a véspera da glória

que se evade dos destroços.

#2476

Postergar o Verão 

é a vacina contra os incêndios.

29.7.22

Alarme

Promessa

homessa

sem vírgula

ou tomas a pílula

na trave do remédio

não vá ser tédio

e jura, mancebo

antes que te tirem o sebo.

 

Depois confessa

desta que é sua meça

a demais remessa

no patíbulo

versículo

jorna farsante

em forma de Dante.

 

No viés em que pereça

o furriel não adormeça

no baldio em que messa 

antes que desapareça.

Calendário a destempo

O dever de março é uma impostura:

a Primavera adia os tentáculos

sobrando um março que soa a janeiro 

 

– e o corpo delira

em sua exsudação estival

sonhando com uma estação 

a preceito.

O devir de julho

é açambarcar o desejo

com um inverno 

como nos bons velhos tempos.

 

(e havia tanto a dizer

sobre os bons velhos tempos,

ou o que a expressão idiomática contém,

mas hoje 

não é dia de empreitadas gongóricas.)

#2475

Recebes o dia

mesmo não sabendo

se dele ficas credor.

28.7.22

#2474

No labirinto 

de uma palavra

o rosto não fingido

de todos que somos atores.

27.7.22

#2473

Não se deixe de fora

o regatear do dia completo

para não ultrajar 

o de si sempre escasso tempo.

26.7.22

Um comboio

O comboio perdido;

promessa

venda sobreposta nas mãos

a palavra fendida

irradiando o luar fingido

nos baldios onde não há nomes. 

 

O comboio furtivo;

ciciar dos mendigos

das almas que peticionam paradeiro

almas que dispensam o arnês

enquanto se movem

arrancando sílabas ao silêncio.

 

O comboio sem apeadeiro;

miragem

compêndio da loucura itinerante

dos vassalos dos lugares sem limites. 

#2472

Corto a eito

no atalho vicejante

sem a espera da demora.

25.7.22

O reino dos agnósticos

As mezinhas

são mazinhas

ainda que sejam obra

de mãezinhas

e ajuramentadas

em missinhas.

#2471

A inauguração do dia

nas camadas que se somam

à espera que da luz desembaciada.

24.7.22

A peseta escarchada

Os descendentes de Cervantes

montam nos decibéis

fazendo parecer um galinheiro

quando concorrem para um ajuntamento. 

A estridência não é musical

como no caso dos herdeiros de Petrarca

mas estes 

não têm o Pata Negra no património

nem as legítimas paellas. 

Nos ajuntamentos

os sucessores de Goya

abrem a boca inteira 

e é como se metessem a mão nas entranhas

para a voz romper a escala medida em decibéis. 

Não são gestualmente espampanantes

como os herdeiros de Balzac

nem têm a linhagem de vinhos seculares

mas para a troca estes oferecem

escusadamente

um chauvinismo arcaico

ficando só três centímetros à frente

dos que vieram depois de Unamuno. 

Saltaricam nas socas condimentadas do flamenco

não se envergonham de serem medievais

na desigual safra da tourada

mas é na vozearia que se desaconselha

no precato de quem previne poluição sonora

que aos sucessores de Miró se poderia suplicar

tomando de empréstimo

a súplica do outrora suserano

“por que não se calam”?

#2470

Este vento

que faz escala

de sorte nenhuma

tão órfão.

23.7.22

Pele exposta

O sangue escorrega nas sombras

sem se separar da vida que não se extingue

amarrada à estrela que se chama

velocidade-luz

e, num sobressalto sem contar,

o tempo estranhamente torna-se vagaroso

como se cada centímetro da sombra

fosse entretecido na pele exposta.

#2469

Não rasguem as vestes

os tão ofendidos arcanjos

que de seus nus sobejarem

ainda menos dignificante

o espetáculo será.

22.7.22

Aluvião

Faz do ventre

o chão fértil

onde se consomem

os sentidos. 

 

Torna ao húmus original

úbere dos desejos sem fastio

e desta seiva faz 

santuário. 

 

Corre contra as maldições

os arcanos oráculos

que irradiam os manuais 

a que se deve

obediência.  

 

Opõe-te

com a veemência dos insubmissos

a favor das desregras,

que são as regras que nos levitam. 

Porque 

se somos um idioma

ele é feito das estrofes

que arrancamos ao suor

as não rimas 

que acertam com o ânimo da rebeldia 

– só a nós devemos o débito

do que fazemos dar em crédito

ao paradeiro do que somos. 

 

Faz do vento 

da minha fala

a geografia em falta. 

 

Do meu sangue

arranca o fermento do futuro. 

 

À minha boca

devolve a carne extasiada

no promontório que irradia 

os dias consecutivos 

de perenidade. 

 

Desenha,

nos poros da minha pele,

o idioma de que somos procuradores

e de todos os poemas em forma de beijo

estiliza, 

com a elegância devida,

aos foros de que somos comandantes.

 

A porta do porto abriu-se

e nós

simples servidores 

da fala que nos conduz

deixamos que o dia corrente  

seja um oráculo

do que quisermos que ele seja. 

#2468

Ah,

esta competição de metáforas

um desfile 

de mal-amanhados eruditos.

21.7.22

Lição da manhã

O torrencial amanhecer

despeja sobre os sentidos

uma embriaguez inaugural

o álibi perfeito para esconjurar

a letargia. 

O aparato da luz ainda timorata

ateia os ossos

desmente o impreterível torpor. 

Na escassez que se convoca

fundeia-se o fósforo à espera 

de ignição. 

E o sangue encomenda a sua combustão

como se o dia tivesse pressa

como 

se os diademas se desencontrassem 

na solicitude do dia nascente. 

A matéria-prima 

desmente as conjugações efémeras

não sem apostar

na efemeridade de tudo. 

O movimento contínuo 

alimenta o viável entardecer

como se de um Outono se tratasse

a metáfora por inventar

no mosto nunca gasto 

do sortilégio de cada dia inteiro. 

A manhã opulenta

manhã reivindicada

reificada no deleite incomensurável

ornamentada pelas arestas 

que são uma desbenção 

dos pesadelos a insubmissos. 

Apanhamos o primeiro barco

para a rua que alcança o dia guloso

uma gastronomia que fazemos verosímil

no coalho fértil 

das paisagens sem geografia.

#2467

Não é a mostarda

que sobe ao nariz;

é a boca que cresce 

para a mostarda.