6.9.22

#2515

O gatilho

leva sempre a direção errada

a menos que esteja

calado.

5.9.22

A janela

A janela não é nada

se não se abrir

para uma rua formosa.

 

A janela não é nada

se corromper o silêncio.

 

A janela

não é nada.

 

A não ser

que esbraceje a manhã sumptuosa

e no teatro fundacional

perfume a casa com o aroma 

inaugural.

#2514

Fujo do coro

e não coro

que a cor do coro

não é a cor

por que me ancoro.

#2513

Ninguém vai preso

por ter cão

ou pela sua ausência.

Injustiças indocumentadas (14)

Um nó,

górdio.

4.9.22

#2512

A solidão

não escolhe

os solitários.

3.9.22

#2511

Realojas o medo,

a franquia pesada

do futuro.

Injustiças indocumentadas (13)

Maus lençóis

porque

más são as camas.

2.9.22

Antropologia das bruxas

És uma bruxa,

ou és uma bruxa,

Derruído pelo abismo do tempo?

Uma bruxa que resfolega o mirante

sucedâneo de morteiro andante

morteiro mortal

            morteiro          mortal

 

(como se a musicalidade das sílabas

se abraçasse numa tela hedionda

onde está vertida a venalidade da espécie).

 

Bruxas

somos todos?

Se demandássemos um compasso,

um compasso comprovado

pelas entidades regulamentadoras,

diria de nós o compasso

que somos bruxas,

depravadas na exaustão que rima

com autofagia.

 

Espantam-se até os espantalhos,

primos diletos de todas as bruxas,

avoengos das rezes lisérgicas

que compõem a paisagem sem nome.

Pedem

que não se sonegue

a curadoria dos estultos.

#2510

Dêem-me

da vitamina mais forte

a poesia 

de toda a forma e feitio.

1.9.22

Castelo

As manhãs correm no seu tempo. 

Cada feixe de luz

devora a letargia herdada da noite. 

Não são os olhos estremunhados

que depõem o dia emergente. 

De cada vez 

que as veias incendeiam o sangue

abre-se a escotilha por onde espreitam

os mais ácidos marinheiros 

da vida. 

Não se intimida o espírito

com os laivos de apatia somados ao tempo;

o fogo que levita no magma

cuida dos preparos do dia

inventariando-o como porta-voz

de um saber viver 

que não se aprende nos compêndios.

#2509

A outra margem

não está fora de mim:

a mim, a ponte fundacional.

31.8.22

Bruma

Uma fotografia

arrependimento venal

tirania da memória

bebida no sangue diuturno

nas danças demenciais

nos dias furtivos 

escondidos da História.

#2508

Desarmadilhado,

o segredo ficou nu

à frente dos olhos.

30.8.22

O prazo não é um dilema

A poeira não sobe à boca:

não está vento de feição

e neste cais 

as paredes são fortaleza. 

Os tumultos desfazem-se na maré

elidindo os sobressaltos com escritura

dissolvidos num nada sem vestígios por dentro. 

Sem os olhos embaciados

a transgressão esconjura-se

e ficam por contar as centelhas venais

contra as miosótis promitentes

e as páginas esplêndidas que amanhecem

a despeito dos maus prognósticos. 

Os rostos 

amontoam-se nas esquinas da memória. 

Não falam:

passeiam as suas expressões sintomáticas

com a ajuda de sucessivas camadas de silêncio,

a proverbial consumição das palavras vãs. 

As folhas das árvores ainda não estão caducas. 

Resistem

como só os espíritos enraizados sabem resistir. 

Daqui a uns meses

quando as folhas cadáveres derem à estampa

saber-se-á da linhagem das gentes

se conservam a volumetria de deuses improváveis

ou se capitulam

na sincera decadência da sua fragilidade.

#2507

Na pele sem mapa

a boca extática,

tatuadora.

29.8.22

Estrelas furtivas

Um astrolábio rudimentar

como oráculo:

se fossem visíveis

as constelações apareciam 

com os nomes de flores

e os nomes outros seriam

imitação das constelações.

 

Dizias:

não quero outro paradeiro

a não ser as tuas mãos desordeiras

e eu concordava;

os molhos de jasmim 

cuidavam da minha estultícia,

a estultícia 

(julgava eu)

irremediável,

à mercê do teu patronato diligente

em forma de dissolução desse mal.

 

Teríamos estrelas de atalaia

no intenso precipício acobreado

o breve flúmen pendido no fundo

quase renunciável

quase martirizado pelo estio a desoras.

 

Sabes:

remexi a terra emoliente com as mãos nuas,

nem parece meu, eu sei,

e de lá trouxe os miríficos saberes

que não se cuidam em compêndios vetustos.

 

Se as constelações arcarem os nomes de flores

sabê-las-ei de cor

mesmo nada sabendo sobre as flores

que têm esses nomes.

Sossegas-me

contemplativamente juntando ao havido

que esses são nomes furtivos

como se pertencessem à curadoria

das estrelas-cadentes.

#2506

A lua

que se quer

(outra vez)

à légua de um sonho.

Injustiças indocumentadas (12)

O coração

ao pé da boca

deve ser um pouco

indigesto.

28.8.22

#2505

Não vale a pena:

o dia ainda traz

muitas ondas a tiracolo.

27.8.22

Ecos

Os ecos

património ou destroços

em equação que sinaliza

a vontade desembaraçada.

Os ecos:

o que fazes com eles

é gramática que é teu assunto

fabulosa erupção sem som.

Desse estendal

retira para o lado 

as mentiras sem quartel.

#2504

Como na matilha 

sabiamente organizada

os despojos repartidos

silenciam o medo.

26.8.22

Elefante

Sou 

esta pele

o mapa sem rugas

sei-me por fora

das janelas,

representação ínfima

estilhaço devolvido

à fonte. 

 

Está é a pele

emigrada

a veia gutural

ferida sem cicatriz

maré que se válida

na posse dos nomes

anestesiados. 

#2503

Faz de conta

que nada conta

no conto que te contam.

25.8.22

Capítulo seis

Os estilhaços do Verão

juntam-se às algas 

em despojos onde a maré termina.

 

Os espíritos estivais protestam:

o Verão devia ser mais duradouro

apesar dos corpos suados

das noites de sono embaciado

das ideias anestesiadas

do torpor hasteado em nome do cansaço 

herdado do tempo precedente

ou talvez 

apenas por causa

da indolência que não paga multa

na demorada temporada

do mui constitucional direito ao ócio.

 

Os estilhaços do Verão

pressentem a temporada consecutiva

o rame-rame outra vez

o adiamento das coisas que importam

a perene sensação da exiguidade do tempo

a sensação de tirania 

exercida sobre quem da faina precisa

para manter o pescoço acima da linha de água

 

(um eufemismo para a sobrevivência).

#2502

Serve-se a loucura

em pezinhos de lã

disfarçada

de decretos-lei.

Injustiças indocumentadas (11)

E se fosse o gato

a ser atirado ao pau

o que diria o PAN?

24.8.22

Atirar a mostarda ao nariz-compasso

O terrível nariz de mostarda

espera pela suite prometida

pois 

aos odores não se atraiçoa o delido.

 

O palco não se desfaz nas paredes caiadas

se ao alpendre subirem as divindades perdidas:

 

pratique-se à besta casmurra

o mesmo destrato que aos tiranetes:

 

colheres de mostarda de Dijon a esmo

até as veias do cérebro se esgotarem

nos filões ávidos de ideias 

lisérgicas.

Injustiças indocumentadas (10)

Puxar o pé para o chinelo

é como empurrar o corpo

para o abismo.

#2501

Partidários do nada

no magma

em que tem ebulição

a pátria do eu.